1 Prólogo - Sinais no Caminho
2 Deus como Mistério
3 Deus como Trindade
4 Deus como Criador
5 Deus como Homem
6 Deus como Espírito
7 Deus como Oração
8 Epílogo - Deus como Eternidade
O Pastor de
Hermas
5. A vida cristã. Mas a
reciprocidade das "duas mãos" não termina aqui. Assim como o Espírito
envia o Filho à Anunciação, o Batismo. e a Transfiguração, e assim como o
Filho, por sua vez, envia o Espírito no Pentecostes, assim, depois do Pentecostes, a tarefa do Espírito é
testemunhar Cristo, tornando o Senhor ressuscitado sempre presente entre nós.
Se o objetivo da Encarnação é o envio do Espírito no Pentecostes, o Pentecostes
é a continuação da Encarnação de Cristo dentro da vida da Igreja. Isto é
precisamente o que o Espírito faz na epiclesis na consagração Eucarística; e
esta epiclesis consagrada serve como modelo e paradigma para o que está
acontecendo ao longo de toda a nossa vida em Cristo.
Notas:
O Espírito de
Deus que foi dado a esta nossa carne não pode suportar tristeza ou restrição.
Quando o
Espírito de Deus desce sobre um homem e o ofusca com a plenitude do seu
derramamento, sua alma transborda com alegria que não pode ser descrita, pois o
Espírito Santo transforma em alegria tudo o que ele toca.
O reino dos céus
é paz e alegria no Espírito Santo.
Adquira a paz
interior, e milhares ao seu redor encontrarão salvação.
São Serafim de
Sarov
Punhos
fechados ou mãos abertas?
Nas paredes das
catacumbas de Roma, às vezes há pintada a figura de uma mulher que reza,
os Orans. Ela está olhando para o céu, as mãos abertas levantadas com as palmas
para cima. Este é um dos mais antigos ícones cristãos. A quem ela representa -
a Santíssima Virgem Maria, a Igreja ou a alma em oração? Ou talvez os três de
uma só vez? Como quer que seja interpretado, esse
ícone retrata uma atitude básica cristã: a da invocação ou epiclesis, o chamar
ou aguardar o Espírito Santo.
Existem três
posições principais que podemos assumir com nossas mãos, e cada uma tem seu
próprio significado simbólico. Nossas mãos podem estar fechadas, nossos punhos
fechados, como um gesto de desafio ou esforço para agarrar e segurar,
expressando agressão ou medo. No outro extremo, nossas mãos podem ficar
penduradas com indiferença em nossos lados, nem desafiadoras nem receptivas. Ou
então, como uma terceira possibilidade, nossas mãos podem ser levantadas como
dos Orans, não mais fechadas, mas abertas, não mais indiferentes, mas prontas
para receber os dons do Espírito. Uma lição importante sobre o Caminho é
entender como descerrar nossos punhos e abrir as mãos. Cada hora e minuto
devemos fazer nossa própria ação do Orans: invisivelmente devemos levantar as
mãos abertas para os céus, dizendo ao Espírito, Venha.
Todo o objetivo
da vida cristã é ser um portador do Espírito, viver no Espírito de Deus,
respirar o Espírito de Deus.
O vento e o fogo
Há uma qualidade secreta e oculta
do Espírito Santo, o que torna difícil falar ou escrever sobre ele. Como diz
São Simeão, o Novo Teólogo:
Ele deriva seu nome daquilo sobre o
qual ele descansa,
Pois ele não tem um nome distinto
entre os homens.
Em outro lugar São Simeão escreve
(não, de fato, como referência específica ao Espírito, mas suas palavras se se
aplicam muito bem à terceira pessoa da Trindade):
É invisível, e nenhuma mão pode
segurá-lo;
Intangível, e ainda assim pode ser
sentido em todos os lugares ...
O que é? Ó maravilha! O que não é?
Pois não tem nome.
Na minha tolice, tentei
compreendê-lo,
E fechei a mão, pensando que eu o
segurava:
Mas escapou, e eu não conseguia
mantê-lo em meus dedos.
Cheio de tristeza, abri minhas mãos
E eu o vi novamente na palma da
minha mão.
Ó maravilha indescritível! Ó
estranho mistério!
Por que nos incomodamos em vão? Por
que todos nos deviamos?
Essa elusividade
é evidente nos símbolos usados pelas Escrituras para apontar para o Espírito.
Ele é como "um vento rápido e forte" (Atos 2: 2): o próprio título
"Espírito" (em grego, pneuma) significa vento ou respiração. Como
Jesus diz a Nicodemos: "O vento (ou espírito) assopra onde quer, e ouves a
sua voz, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai" (João 3: 8). Nós
sabemos que o vento está ali, ouvimos ele nas árvores quando acordamos à noite,
nós sentimos em nossas faces quando caminhamos nas colinas. Mas se
tentarmos agarrá-lo e segurá-lo em nossas mãos, nós o perdemos. Assim é com o
Espírito de Deus. Não podemos pesar e medir o Espírito, ou mantê-lo em uma
caixa sob chave e cadeado. Em um de seus poemas, Gerard Manley Hopkins compara
a Santíssima Virgem Maria ao ar que respiramos: a mesma analogia pode ser
aplicada igualmente ao Espírito. Como o ar, o Espírito é fonte de vida,
"presente em todos os lugares e preenchendo todas as coisas", sempre
ao nosso redor, sempre dentro de nós. Assim como o ar permanece invisível para
nós, mas atua como o meio pelo qual vemos e ouvimos outras coisas, assim o
Espírito não nos revela sua própria face, mas nos mostra sempre a face de
Cristo.
Na Bíblia, o
Espírito Santo também é comparado ao fogo. Quando o Paráclito desce sobre os
primeiros cristãos no dia de Pentecostes, está em "línguas repartidas,
como que de fogo" (Atos 2: 3). Como o vento, o fogo é evasivo: vivo,
livre, sempre em movimento, não podendo ser medido, pesado ou constrangido
dentro de limites estreitos. Sentimos o calor das chamas, mas não podemos
agarrá-las e mantê-las em nossas mãos.
Tal é o nosso
relacionamento com o Espírito. Estamos conscientes de sua presença, conhecemos
seu poder, mas não podemos facilmente imaginar a pessoa dele. A segunda pessoa
da Trindade tornou-se encarnada, vivendo na terra como homem; os Evangelhos nos
contam suas palavras e ações, sua face nos olha nos ícones sagrados, e por isso
não é difícil imaginá-lo em nossos corações. Mas o Espírito não se encarnou;
Sua pessoa divina não nos é revelada de forma humana. No caso da segunda pessoa
da Trindade, o termo "geração" ou "nascer", empregado para
indicar sua origem eterna do Pai, transmite a nossa mente uma idéia distinta,
um conceito específico, embora nós percebamos que esse conceito não deve ser
interpretado literalmente. Mas o termo usado para denotar o relacionamento
eterno do Espírito com o Pai, "procissão" ou "proceder",
não traz uma idéia clara e distinta. É como um hieróglifo sagrado, apontando
para um mistério ainda não revelado. O termo indica que a relação entre o
Espírito e o Pai não é a mesma que entre o Filho e o Pai; mas qual é a natureza
exata da diferença, não nos é dito. Isso é inevitável, pois a ação do Espírito
Santo não pode ser definida verbalmente. Tem que ser vivida e experimentada
diretamente.
No entanto,
apesar desta qualidade arcana no Espírito Santo, a tradição ortodoxa ensina
firmemente duas coisas sobre ele. Primeiro, o Espírito é uma pessoa. Ele não é
apenas uma "assopro divino" (como uma vez ouvi alguém descrevê-lo),
não apenas uma força insensível, mas uma
das três pessoas eternas da Trindade; e assim, por toda a sua aparente
dificuldade, podemos e entramos em um relacionamento pessoal 'Eu-Tu' com ele.
Em segundo lugar, o Espírito, como terceiro membro da Tríade Sagrada, é
co-igual e co-eterno com os outros dois; ele não é meramente uma função
dependente deles ou um intermediário que eles empregam. Uma das principais
razões pelas quais a Igreja Ortodoxa rejeita a adição latina do filioque ao
Credo, como também o ensinamento ocidental sobre a "dupla procissão"
do Espírito que está por trás dessa adição, é precisamente o nosso medo de que
tal ensino possa levar os homens a despersonalizar e subordinar o Espírito
Santo.
A coeternidade e
a co-igualdade do Espírito é um tema recorrente nos hinos ortodoxos para a
Festa de Pentecostes:
O Espírito Santo
para sempre foi, é, e será;
Ele não tem
começo nem fim,
Mas ele está
sempre unido e contado com o Pai e o Filho:
Vida e Doador da
Vida,
Luz e Doador da
Luz,
O próprio amor e
fonte de amor:
Através dele, o
Pai é conhecido,
Através dele, o
Filho é glorificado e revelado a todos.
Um é o poder, um
é a estrutura,
Um é a adoração
a Santíssima Trindade.
O Espírito e
o Filho
Entre as
"duas mãos" do Pai, seu Filho e seu Espírito, existe uma relação
recíproca, um vínculo de serviço mútuo. Muitas vezes, existe uma tendência para
expressar a inter-relação entre os dois de uma maneira unilateral que obscurece
essa reciprocidade. Cristo, diz-se, vem primeiro; então, depois de sua Ascensão
ao céu, ele envia o Espírito no Pentecostes. Mas, na realidade, as ligações
mútuas são mais complexos e mais equilibrada. Cristo nos envia o Espírito, mas
ao mesmo tempo é o Espírito que envia Cristo. Lembremo-nos e desenvolvamos
alguns dos padrões trinitários descritos acima.
1. Encarnação.
Na Anunciação, o Espírito Santo desce sobre a Virgem Maria, e ela concebe o
Logos: de acordo com o Credo, Jesus Cristo foi
"encarnado do Espírito Santo e da Virgem Maria". Aqui é o
Espírito que está enviando Cristo para o mundo.
2. Batismo. A
relação é a mesma. Quando Jesus levanta-se das
águas do Jordão, o Espírito desce sobre ele na forma de uma pomba: assim é o
Espírito que "comanda" Cristo e o envia para o seu ministério
público. Isso é bastante claro nos incidentes que se seguem imediatamente após
o batismo. O Espírito leva Cristo ao deserto (Marcos 1:12), para passar por um
período de testes de quarenta dias antes de começar a pregar. Quando Cristo retorna
no final desta luta, é "no poder do Espírito" (Lucas 4:14). As
primeiras palavras de sua pregação se referem diretamente ao fato de que é o
Espírito que o está enviando: ele lê
Isaías 61: 1, aplicando o texto para si mesmo: "O
Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para pregar boas novas
aos pobres." (Lucas 4:18). Seu título "Cristo" ou
"Messias" significa precisamente que ele é o ungido pelo Espírito
Santo.
3.
Transfiguração. Mais uma vez, o Espírito desce sobre Cristo, desta vez não na
forma de uma pomba, mas como uma nuvem de luz. Assim como o Espírito enviou
anteriormente Jesus para o deserto e depois para a sua pregação pública, então
agora o Espírito o envia para seu "êxodo" ou morte sacrificial em
Jerusalém (Lucas 9:31).
4. Pentecostes.
A relação mútua é aqui revertida. Até então, foi o Espírito que envia Cristo:
agora é o Cristo ressuscitado que envia o Espírito. Pentecostes constitui o
objetivo e a conclusão da Encarnação: nas palavras de São Atanásio, "O
Logos tomou a carne, para que possamos receber o Espírito".
"Porque,
onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio
deles"(Mateus 18:20). Como está Cristo presente em nosso meio? Através do
Espírito Santo. "Eis que estou contigo sempre, até o fim do mundo"
(Mateus 28:20). Como Cristo está sempre conosco? Através do Espírito Santo. Por
causa da presença do Consolador em nosso coração, não conhecemos simplesmente
Cristo na quarta ou quinta mão, como uma figura distante de há muito tempo,
sobre quem nós possuímos informações factuais através de registros escritos;
mas o conhecemos diretamente, aqui e agora, no presente, como nosso Salvador
pessoal e nosso amigo. Com o apóstolo Tomé podemos afirmar: "Meu Senhor e
meu Deus" (João 20:28). Nós não dizemos meramente: "Cristo
nasceu" - uma vez, muito tempo atrás; nós dizemos "Cristo nasce"
- agora, neste momento, no meu próprio coração. Nós não dizemos apenas
"Cristo morreu", mas "Cristo morreu por mim". Nós não
dizemos meramente: "Cristo ressuscitou", mas "Cristo verdadeiramente ressuscitou" [1] - ele vive agora, para mim e em mim. Este imediatismo e
objetividade pessoal em nosso relacionamento com Jesus é precisamente a obra do
Espírito.
O Espírito
Santo, então, não nos fala sobre si mesmo, mas ele nos fala sobre Cristo.
"Quando vier o Espírito da verdade", diz Jesus na Última Ceia,
"ele vos guiará em toda a verdade; porque não falará de si mesmo ... Ele
tomará o que é meu e o mostrará "(João 16: 13-14). Aqui está o motivo do
anonimato ou, mais exatamente, a transparência do Espírito Santo: ele aponta,
não para si mesmo, mas para o Cristo ressuscitado.
O Dom do
Pentecostal
Sobre o dom do
Paráclito no dia de Pentecostes, três coisas são particularmente
impressionantes:
Primeiro, é um
dom para todo o povo de Deus: "Todos foram preenchidos com o Espírito
Santo" (Atos 2: 4). O dom ou carisma do Espírito não é conferido apenas
aos bispos e clérigos, mas a cada um dos batizados. Todos são portadores do
Espírito, todos são - no sentido próprio da palavra - "carismáticos".
Em segundo
lugar, é um dom de unidade: "Todos estavam todos reunidos no mesmo
lugar" (Atos 2: 1). O Espírito Santo faz com que os muitos sejam um Corpo em Cristo. A descida do
Espírito no Pentecostes inverte o efeito da torre de Babel (Gênesis 11: 7).
Como dizemos em um dos hinos para a festa de Pentecostes:
Quando o
Altíssimo desceu e confundiu as línguas,
Ele dividiu as
nações;
Mas quando
distribuiu línguas de fogo,
Ele chamou todos
à unidade.
Portanto, com
uma só voz, glorificamos o Espírito Santo.
O Espírito traz
unidade e compreensão mútua, permitindo-nos falar "com uma só voz".
Ele transforma indivíduos em
pessoas. Da primeira comunidade cristã em Jerusalém, no
período imediatamente posterior ao Pentecostes, afirma-se que "tinham
todas as coisas em comum" e estavam "unidos em coração e alma"
(Atos 2:44; 4:32); e essa deve ser a marca da comunidade pentecostal da Igreja
em todas as épocas.
Em terceiro
lugar, o dom do Espírito é um dom da diversidade: as línguas de fogo estão
"repartidas" ou "divididas" (Atos 2: 3), e elas são
distribuídas diretamente a cada um. O Espírito Santo não só faz de nós um só,
mas ele nos faz cada um diferente. No Pentecostes, a multiplicidade de línguas
não foi abolida, mas deixou de ser uma causa de separação; cada um falou como
antes, em sua própria língua, mas pelo poder do Espírito cada um podia entender
os outros. Para que eu seja um portador do Espírito devo realizar todas as
características distintivas da minha personalidade; é tornar-se verdadeiramente
livre, verdadeiramente eu mesmo na minha singularidade. A vida no Espírito
possui uma variedade inesgotável; é o agir errado, não a santidade, que é chato
e repetitivo. Como um amigo meu, um sacerdote que passou muitas horas a cada
dia ouvindo confissões, costumava observar com cansaço: "Que pena não haja
novos pecados!" Mas sempre há novas formas de santidade.
Pais no
Espírito e os Tolos
Na tradição
ortodoxa, a ação direta do Paráclito dentro da comunidade cristã é bastante
evidente em duas figuras "portadoras de Espírito": o ancião ou pai
espiritual, e o tolo em Cristo.
O ancião ou
"velho", conhecido em grego como geron e em russo como starets, não
necessariamente velho em anos, mas ele é sábio em sua experiência da verdade
divina e abençoado com a graça da "paternidade no Espírito" , com o
carisma de orientar os outros no Caminho. O que ele oferece aos seus
filhos espirituais não é primariamente instruções morais ou uma regra de vida,
mas um relacionamento pessoal. "O starets", diz Dostoiévski, "é
aquele que leva a sua alma, sua vontade, à alma e à vontade dele". Os
discípulos do Pe. Zacarias diziam sobre ele: "Era como se ele estivesse
com nossos corações em suas mãos."
O starets é um
homem de paz interior, de cujo lado milhares podem encontrar a salvação. O
Espírito Santo deu-lhe, como fruto de sua oração e abnegação, o dom do
discernimento ou da discriminação, permitindo-lhe ler os segredos dos corações
dos homens; e, assim, ele responde, não apenas as questões que os outros
colocam, mas também as questões - muitas vezes muito mais fundamentais - que
nem sequer pensaram em
perguntar. Combinado com o dom do discernimento, ele possui o
dom da cura espiritual - o poder de restaurar as almas dos homens, e às vezes
também seus corpos. Esta cura espiritual que ele fornece, não só por meio de
suas palavras de conselho, mas por seu silêncio e sua própria presença. Embora
seja importante o seu conselho, muito mais importante é sua oração de
intercessão. Ele torna seus filhos plenos orando
constantemente por eles, identificando-se com eles, aceitando suas alegrias e
dores como suas, levando em seus ombros o fardo de culpa ou ansiedade deles.
Ninguém pode ser um starets se não orar insistentemente pelos outros.
Se o starets é
um padre, geralmente seu ministério de direção espiritual está intimamente
ligado ao sacramento da confissão. Mas um starets no sentido pleno, como
descrito por Dostoiévski ou exemplificado pelo P. Zachariah, é mais do que
apenas um padre-confessor. A starets no sentido pleno não pode ser nomeado por
qualquer autoridade superior. O que acontece é simplesmente que o Espírito
Santo, falando diretamente aos corações do povo cristão, deixa claro que essa
ou aquela pessoa foi abençoada por Deus com a graça de guiar e curar os outros.
O verdadeiro starets é, nesse sentido, uma figura profética, não uma autoridade
institucional. Embora seja mais comum um padre-monge, ele também pode ser um
pároco casado, ou então um monge leigo não ordenado como padre, ou mesmo - mas
isso é menos frequente - uma freira ou um leigo mulher ou homem que vive
no mundo. Se o starets não é ele próprio um padre, depois de ouvir os
problemas das pessoas e oferecer conselhos, ele enviará freqüentemente a um
padre para a confissão sacramental e a absolvição.
A relação entre
o filho e o pai espiritual varia muito. Alguns visitam um starets talvez apenas
uma ou duas vezes na vida, em um momento de crise especial, enquanto outros
estão em contato regular com seus starets, vendo-o mensalmente ou mesmo
diariamente. Nenhuma regra pode ser estabelecida antecipadamente; a associação
cresce por si mesma sob a orientação imediata do Espírito.
Sempre o
relacionamento é pessoal. Os starets não aplicam regras abstratas aprendidas de
um livro - como na "casuística" do catolicismo da contra-reforma -
mas ele vê em cada ocasião esse homem ou mulher particular que está diante
dele; e, iluminado pelo Espírito, ele procura transmitir a vontade única de
Deus especificamente para essa pessoa. Porque os verdadeiros starets entende e
respeita o caráter distintivo de cada um, ele não suprime sua liberdade
interior, mas a reforça. Ele não busca suscitar uma obediência mecânica,
mas conduz seus filhos ao ponto de maturidade espiritual, onde eles podem decidir
por si mesmos. Para cada um, ele mostra a face verdadeira deles, que antes
estava em grande parte escondido dessa pessoa; e sua palavra é criativa e
vivificante, permitindo que o outro realize tarefas que antes pareciam
impossíveis. Mas tudo isso, o starets pode alcançar apenas porque ele ama cada
um pessoalmente. Além disso, o relacionamento é mútuo: o starets não pode
ajudar outro, a menos que o outro deseje seriamente mudar seu modo de vida e
abrir seu coração em confiança amorosa para os starets. Aquele que vai ver um
starets em um espírito de curiosidade crítica provavelmente retornará com as
mãos vazias, sem ser impressionado.
Porque o
relacionamento é sempre pessoal, um starets específico não pode ajudar todos de
forma igual. Ele pode ajudar apenas aqueles que são especificamente enviado a
ele pelo Espírito. Do mesmo modo, o discípulo não deve dizer: "O meu
starets é melhor do que todos os outros". Ele deveria dizer apenas:
"Meu starets é o melhor para mim".
Ao orientar os
outros, o pai espiritual espera a vontade e a voz do Espírito Santo. "Dou
apenas o que Deus me diz para dar", disse diz Serafim. "Eu acredito
na primeira palavra que me vem inspirar pelo Espírito Santo". "Eu
acredito que a primeira palavra que me vem seja inspirada pelo Espírito Santo."
Obviamente, ninguém tem o direito de agir desta maneira, a menos que, através
do esforço e da oração ascética, tenha alcançado uma consciência
excepcionalmente intensa da presença de Deus. Para qualquer um que não tenha
atingido este nível, tal comportamento seria presunçoso e irresponsável.
Pe. Zacarias
fala nos mesmos termos que São Serafim:
Às vezes, o
homem não conhece o que ele dirá. O próprio Senhor fala através dos seus
lábios. É preciso orar assim: "Senhor, viva em mim, que você fale através
de mim, que você possa agir através de mim". Quando o Senhor fala através
dos lábios de um homem, todas as palavras desse homem são eficazes e tudo que é
falado por ele é cumprido. O homem que fala fica ele próprio surpreso com
isso... Só que não se deve contar com a sabedoria..
A relação entre
pai e filho espiritual se estende além da morte até o Juízo Final. O Pe.
Zacarias tranquilizou seus seguidores: "Depois da morte, eu estarei muito
mais vivo do que estou agora, então não se aflija quando eu morrer... No dia do
julgamento, o ancião dirá: 'Aqui estou eu e meus filhos'". São
Serafim pediu que essas palavras notáveis fossem inscritas em sua lápide:
Quando eu
morrer, venha a mim no meu túmulo, e quanto mais frequentemente melhor. Seja o
que estiver em sua alma, seja o que for que aconteceu com você, venha até mim
como quando eu estava vivo e, ajoelhada no chão, expulse toda a sua amargura no
meu túmulo. Diga-me tudo e eu vou ouvir você, e toda a amargura vai se afastar
de você. Como você falou comigo quando eu estava vivo, faça o mesmo agora.
Porque eu estou vivendo, e será para sempre.
Nem todos os
ortodoxos possuem um pai espiritual próprio. O que devemos fazer se nós
buscamos um guia e não conseguimos encontrar um? É óbvio que é possível
aprender com os livros: quer tenhamos ou não um starets, olhamos para a Bíblia
como orientação constante. Mas a dificuldade com os livros é saber exatamente o
que me é aplicável pessoalmente, neste ponto específico da minha jornada. Além
dos livros, e também da paternidade espiritual, há também fraternidade ou
irmandade espiritual - a ajuda que nos é dada, não pelos mestres em Deus, mas pelos nossos irmãos
discípulos. Não devemos negligenciar as oportunidades oferecidas a nós nesta
forma. Mas aqueles que se comprometem seriamente com o Caminho devem, além
disso, fazer todos os esforços para encontrar um pai no Espírito Santo. Se eles
procurarem humildemente, a eles sem dúvida será dado a orientação que exigem.
Não é que eles frequentemente irão encontrar starets como São Serafim ou Pe.
Zacarias. Devemos tomar cuidado pois, com nossa expectativa por algo
exteriormente mais espetacular, ignoramos a ajuda que Deus realmente está nos
oferecendo. Alguém que, nos olhos dos outros, não é interessante, talvez seja o
único pai espiritual que pode falar comigo, pessoalmente, as palavras de fogo
que, acima de tudo, preciso ouvir.
Um segundo
profético portador do Espírito dentro da comunidade cristã é o tolo em Cristo,
chamado pelos gregos salos e pelos russos iurodivyi. Normalmente, é difícil
descobrir até que ponto sua "loucura" é conscientemente e
deliberadamente assumida, e até que ponto é espontânea e involuntária.
Inspirado pelo Espírito, o tolo carrega o ato de metanoia ou "mudança de
mente" em sua extensão máxima. Mais radicalmente do que qualquer outra
pessoa, ele ergue a pirâmide de ponta cabeça. Ele é um testemunho vivo da
verdade de que o reino de Cristo não é deste mundo; ele atesta a realidade do
"anti-mundo", para a possibilidade do impossível. Ele pratica uma
pobreza voluntária absoluta, identificando-se com o Cristo humilhado. Como diz
Iulia de Beausobre: "Ele é filho de ninguém, irmão de ninguém, pai de
ninguém, e não tem casa". Renunciando a vida familiar, é o viajante ou o
peregrino que se sente igualmente em casa em todos os lugares, mas que não se
estabelece em lugar algum. Vestido em andrajos,
mesmo no frio do inverno, dormindo em um galpão ou na frente da igreja, ele renuncia não só a bens materiais, mas
também o que os outros consideram como sua sanidade e equilíbrio mental.
Contudo, ele se torna um canal para a sabedoria elevada do Espírito.
Ser tolo por
Cristo, desnecessário dizer, é uma vocação extremamente rara; tampouco é fácil
distinguir a imitação do genuíno, quem rompe as barreiras de quem cai sob
seu peso.. Há, no final, apenas um teste: "Pelos seus frutos os
conhecereis" (Mateus 7:20). O falso tolo é inútil e destrutivo, para si
mesmo e para os outros. O verdadeiro tolo em Cristo, possuindo pureza de
coração, tem sobre a comunidade ao seu redor um efeito que é potencializador da vida. Do ponto de vista
prático, nenhum objetivo útil é servido por qualquer coisa que o tolo faz. E,
no entanto, através de uma ação surpreendente ou uma palavra enigmática, muitas
vezes deliberadamente provocativa e chocante, ele desperta os homens da
complacência e do farisaísmo. Permanecendo separado, ele desencadeia reações
nos outros, fazendo subir o subconsciente à superfície e permitindo que seja
purgado e santificado. Ele combina audácia com humildade. Por ter renunciado
tudo, ele é verdadeiramente livre. Como o tolo Nicolas de Pskov, que colocou
nas mãos de Tsar Ivan o Terrível um pedaço de carne pingando sangue, ele pode
repreender os poderosos deste mundo com uma ousadia que outros não têm. Ele é a
consciência viva da sociedade.
Torne-se o
que você é
Apenas alguns
cristãos em cada geração se tornam anciãos, e ainda menos se tornam tolos em Cristo. Mas todos os
batizados sem exceção são portadores do Espírito. "Você não percebe ou
entende sua própria nobreza?", pergunta as Homilias de São Macário.
"... Cada
um de vocês foi ungido com o crisma celestial, e tornou-se um Cristo pela
graça; cada um é rei e profeta dos mistérios celestes ."
O que aconteceu com os primeiros cristãos no dia do
Pentecostes acontece também a cada um de nós quando, imediatamente após o nosso
Batismo, estamos na prática ortodoxa ungida com Crisma,
ou Myron. (Este, o segundo sacramento da iniciação cristã,
corresponde à Confirmação na tradição ocidental.) O recém-batizado,
criança ou adulto, é marcado pelo sacerdote na testa, olhos, narinas, boca,
orelhas, peito, mãos e pés, com as palavras: 'O selo do dom do Espírito Santo'.
Isso é, para cada pessoa, um Pentecostes pessoal: o Espírito, que desce
visivelmente sobre os Apóstolos em línguas de fogo, desce sobre cada um de nós
de forma invisível, não com menos realidade e poder. Cada um se torna um
"ungido", um "Cristo" segundo a semelhança de Jesus, o
Messias. Cada um é selado com o charismata do Consolador. Desde o momento do
nosso Batismo e Crismação, o Espírito Santo, juntamente com Cristo, vem morar
no santuário mais íntimo do nosso coração. Embora digamos ao Espírito 'Venha',
ele já está dentro de nós.
Por mais descuidados e indiferentes que os batizados possam
ser em sua vida subsequente, esta presença permanente do Espírito nunca é
totalmente retirada. Mas a menos que cooperemos com a graça de Deus - a menos
que, através do exercício da nossa livre vontade, nos esforcemos para realizar
os mandamentos - é provável que a presença do Espírito dentro de nós permaneça
escondida e inconsciente. Como peregrinos no Caminho, então, é nosso propósito
avançar do estágio onde a graça do Espírito está presente e ativa dentro de nós
de forma oculta, até o ponto de percepção consciente, quando conhecemos o
poder do Espírito abertamente, diretamente, com a plena percepção de nosso
coração. "Eu vim lançar fogo à terra", disse Cristo, "e
quem me dera que já estivesse a arder!" (Lucas 12:49). A centelha
Pentecostal do Espírito, existente em cada um de nós do Batismo, deve ser acesa
em uma chama viva. Devemos nos tornar o que somos.
"O fruto do Espírito é amor, alegria, paz,
longanimidade, gentileza ..." (Gálatas 5:22). A percepção consciente da
ação do Espírito deve ser algo que permeia toda a nossa vida interior. Não é
necessário que todos sejam submetidos a uma "experiência de
conversão" impressionante. Ainda menos é necessário que todos "falem
em línguas". A maioria das opiniões ortodoxas contemporâneas veem com
grande reserva aquela parte do "Movimento Pentecostal" que trata as
"línguas" como a prova decisiva e indispensável de que alguém é
verdadeiramente um portador do Espírito. O dom das línguas era, é claro,
freqüente na era apostólica; mas desde meados do segundo século tem sido muito
menos comum, embora nunca tenha desaparecido inteiramente. Em qualquer caso,
São Paulo insiste que este é um dos mais importantes dos dons espirituais (ver
1 Coríntios 14: 5).
Quando é genuinamente espiritual, 'falar em línguas' parece
representar um ato de 'libertação' - o momento crucial na quebra da nossa auto-confiança
pecaminosa, e sua substituição por uma vontade de permitir que Deus atue dentro
de nós.
Na tradição ortodoxa, este ato de "deixar-ir"
toma mais freqüentemente a forma do dom das lágrimas. "Lágrimas", diz
São Isaac o Sírio, "marcam a fronteira entre o estado corporal e o
espiritual, entre o esado de sujeição às paixões e o da pureza". E em uma
passagem memorável, ele escreve:
Os frutos do homem interior começam apenas com o derramar
das lágrimas. Quando você chega no local das lágrimas, então saiba que seu
espírito saiu da prisão deste mundo e pôs o pé no caminho que conduz à Nova
Era. Seu espírito começa neste momento a respirar o ar maravilhoso que está lá,
e começa a derramar lágrimas. O momento para o nascimento do filho espiritual
está próximo e o trabalho de parto torna-se intenso. A graça, a mãe comum
de todos nós, apressa-se a misticamente dar à luz a alma, a imagem de Deus,
trazendo-a para a luz da Era por vir. E quando a hora para o nascimento chega,
o intelecto começa a sentir algo das coisas daquele outro mundo - como um fraco
perfume, ou como o sopro da vida que um recém-nascido recebe no seu corpo. Mas
nós não estamos acostumados a essa experiência e, achando difícil de suportar,
nosso corpo é subitamente tomado por um choro misturado com alegria.
Há, no entanto, muitos tipos de lágrimas, e nem todas são
um dom do Espírito. Além das lágrimas espirituais, há lágrimas de raiva e
frustração, lágrimas derramadas por autocomiseração, lágrimas sentimentais e emocionais. O discernimento é
necessário; daí a importância de buscar a ajuda de um guia espiritual
experiente, um starets. O discernimento é ainda mais necessário no caso de
'línguas'. Muitas vezes, não é o Espírito de Deus que está falando através das
línguas, mas o espírito demasiado humano de auto-sugestão e histeria em massa. Há até mesmo
ocasiões em que "falar em línguas" é uma forma de possessão
demoníaca. "Amados, não creiais a todo o espírito, mas provai se os
espíritos são de Deus" (1 João 4: 1).
A ortodoxia, portanto, enquanto insiste na necessidade de
uma experiência direta do Espírito Santo, insiste também na necessidade de
discriminação e sobriedade. Nosso choro, e também a nossa participação nos
outros dons do Espírito, precisam ser purificados de toda a fantasia e
excitação emocional. Os dons que são genuinamente espirituais não devem ser
rejeitados, mas nunca devemos perseguir tais dons como um fim em si
mesmos. Nosso objetivo na vida de oração não é obter sentimentos ou
experiências "sensíveis" de qualquer tipo, mas simplesmente e
unicamente conformar a nossa vontade à vontade de Deus. "Pois que não
busco o que é vosso, mas sim a vós", diz São Paulo aos Coríntios (2
Coríntios 12:14); e dizemos o mesmo a Deus. Procuramos não os dons, mas o
doador.
[1] N.T.: No original há "We do not say merely, ‘Christ rose’, but ‘Christ is risen’ — he lives now, for me and in me." O autor enfatiza a diferença entre "rose" e "is risen", onde "rose" dá uma ideia de algo concluído no passado, enquanto "is risen" continua no presente.
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