segunda-feira, 4 de dezembro de 2017

O Caminho Ortodoxo: Deus como Espírito (Kallistos Ware) [Parte 6/8]


CONTEÚDO
1 Prólogo - Sinais no Caminho 
2 Deus como Mistério 
3 Deus como Trindade 
4 Deus como Criador 
5 Deus como Homem 
6 Deus como Espírito 
7 Deus como Oração 
8 Epílogo - Deus como Eternidade

O Espírito de Deus que foi dado a esta nossa carne não pode suportar tristeza ou restrição.
 O Pastor de Hermas

Quando o Espírito de Deus desce sobre um homem e o ofusca com a plenitude do seu derramamento, sua alma transborda com alegria que não pode ser descrita, pois o Espírito Santo transforma em alegria tudo o que ele toca.
O reino dos céus é paz e alegria no Espírito Santo.
Adquira a paz interior, e milhares ao seu redor encontrarão salvação.
São Serafim de Sarov

Punhos fechados ou mãos abertas?

Nas paredes das catacumbas de Roma,  às vezes há pintada a figura de uma mulher que reza, os Orans. Ela está olhando para o céu, as mãos abertas levantadas com as palmas para cima. Este é um dos mais antigos ícones cristãos. A quem ela representa - a Santíssima Virgem Maria, a Igreja ou a alma em oração? Ou talvez os três de uma só vez? Como quer que seja interpretado, esse ícone retrata uma atitude básica cristã: a da invocação ou epiclesis, o chamar ou aguardar o Espírito Santo.

Existem três posições principais que podemos assumir com nossas mãos, e cada uma tem seu próprio significado simbólico. Nossas mãos podem estar fechadas, nossos punhos fechados, como um gesto de desafio ou esforço para agarrar e segurar, expressando agressão ou medo. No outro extremo, nossas mãos podem ficar penduradas com indiferença em nossos lados, nem desafiadoras nem receptivas. Ou então, como uma terceira possibilidade, nossas mãos podem ser levantadas como dos Orans, não mais fechadas, mas abertas, não mais indiferentes, mas prontas para receber os dons do Espírito. Uma lição importante sobre o Caminho é entender como descerrar nossos punhos e abrir as mãos. Cada hora e minuto devemos fazer nossa própria ação do Orans: invisivelmente devemos levantar as mãos abertas para os céus, dizendo ao Espírito, Venha.

Todo o objetivo da vida cristã é ser um portador do Espírito, viver no Espírito de Deus, respirar o Espírito de Deus.

O vento e o fogo

Há uma qualidade secreta e oculta do Espírito Santo, o que torna difícil falar ou escrever sobre ele. Como diz São Simeão, o Novo Teólogo:

Ele deriva seu nome daquilo sobre o qual ele descansa,

Pois ele não tem um nome distinto entre os homens.

Em outro lugar São Simeão escreve (não, de fato, como referência específica ao Espírito, mas suas palavras se se aplicam muito bem à terceira pessoa da Trindade):


É invisível, e nenhuma mão pode segurá-lo;

Intangível, e ainda assim pode ser sentido em todos os lugares ...

O que é? Ó maravilha! O que não é? Pois não tem nome.

Na minha tolice, tentei compreendê-lo,

E fechei a mão, pensando que eu o segurava:

Mas escapou, e eu não conseguia mantê-lo em meus dedos.

Cheio de tristeza, abri minhas mãos

E eu o vi novamente na palma da minha mão.

Ó maravilha indescritível! Ó estranho mistério!

Por que nos incomodamos em vão? Por que todos nos deviamos?

Essa elusividade é evidente nos símbolos usados ​​pelas Escrituras para apontar para o Espírito. Ele é como "um vento rápido e forte" (Atos 2: 2): o próprio título "Espírito" (em grego, pneuma) significa vento ou respiração. Como Jesus diz a Nicodemos: "O vento (ou espírito) assopra onde quer, e ouves a sua voz, mas não sabes de onde vem, nem para onde vai" (João 3: 8). Nós sabemos que o vento está ali, ouvimos ele nas árvores quando acordamos à noite, nós sentimos em nossas faces quando caminhamos nas colinas.   Mas se tentarmos agarrá-lo e segurá-lo em nossas mãos, nós o perdemos. Assim é com o Espírito de Deus. Não podemos pesar e medir o Espírito, ou mantê-lo em uma caixa sob chave e cadeado. Em um de seus poemas, Gerard Manley Hopkins compara a Santíssima Virgem Maria ao ar que respiramos: a mesma analogia pode ser aplicada igualmente ao Espírito. Como o ar, o Espírito é fonte de vida, "presente em todos os lugares e preenchendo todas as coisas", sempre ao nosso redor, sempre dentro de nós. Assim como o ar permanece invisível para nós, mas atua como o meio pelo qual vemos e ouvimos outras coisas, assim o Espírito não nos revela sua própria face, mas nos mostra sempre a face de Cristo.

Na Bíblia, o Espírito Santo também é comparado ao fogo. Quando o Paráclito desce sobre os primeiros cristãos no dia de Pentecostes, está em "línguas repartidas, como que de fogo" (Atos 2: 3). Como o vento, o fogo é evasivo: vivo, livre, sempre em movimento, não podendo ser medido, pesado ou constrangido dentro de limites estreitos. Sentimos o calor das chamas, mas não podemos agarrá-las e mantê-las em nossas mãos.

Tal é o nosso relacionamento com o Espírito. Estamos conscientes de sua presença, conhecemos seu poder, mas não podemos facilmente imaginar a pessoa dele. A segunda pessoa da Trindade tornou-se encarnada, vivendo na terra como homem; os Evangelhos nos contam suas palavras e ações, sua face nos olha nos ícones sagrados, e por isso não é difícil imaginá-lo em nossos corações. Mas o Espírito não se encarnou; Sua pessoa divina não nos é revelada de forma humana. No caso da segunda pessoa da Trindade, o termo "geração" ou "nascer", empregado para indicar sua origem eterna do Pai, transmite a nossa mente uma idéia distinta, um conceito específico, embora nós percebamos que esse conceito não deve ser interpretado literalmente. Mas o termo usado para denotar o relacionamento eterno do Espírito com o Pai, "procissão" ou "proceder", não traz uma idéia clara e distinta. É como um hieróglifo sagrado, apontando para um mistério ainda não revelado. O termo indica que a relação entre o Espírito e o Pai não é a mesma que entre o Filho e o Pai; mas qual é a natureza exata da diferença, não nos é dito. Isso é inevitável, pois a ação do Espírito Santo não pode ser definida verbalmente. Tem que ser vivida e experimentada diretamente.

No entanto, apesar desta qualidade arcana no Espírito Santo, a tradição ortodoxa ensina firmemente duas coisas sobre ele. Primeiro, o Espírito é uma pessoa. Ele não é apenas uma "assopro divino" (como uma vez ouvi alguém descrevê-lo), não apenas uma força insensível, mas uma das três pessoas eternas da Trindade; e assim, por toda a sua aparente dificuldade, podemos e entramos em um relacionamento pessoal 'Eu-Tu' com ele. Em segundo lugar, o Espírito, como terceiro membro da Tríade Sagrada, é co-igual e co-eterno com os outros dois; ele não é meramente uma função dependente deles ou um intermediário que eles empregam. Uma das principais razões pelas quais a Igreja Ortodoxa rejeita a adição latina do filioque ao Credo, como também o ensinamento ocidental sobre a "dupla procissão" do Espírito que está por trás dessa adição, é precisamente o nosso medo de que tal ensino possa levar os homens a despersonalizar e subordinar o Espírito Santo.

A coeternidade e a co-igualdade do Espírito é um tema recorrente nos hinos ortodoxos para a Festa de Pentecostes:

O Espírito Santo para sempre foi, é, e será;

Ele não tem começo nem fim,

Mas ele está sempre unido e contado com o Pai e o Filho:

Vida e Doador da Vida,

Luz e Doador da Luz,

O próprio amor e fonte de amor:

Através dele, o Pai é conhecido,

Através dele, o Filho é glorificado e revelado a todos.

Um é o poder, um é a estrutura,

Um é a adoração a Santíssima Trindade.


O Espírito e o Filho

Entre as "duas mãos" do Pai, seu Filho e seu Espírito, existe uma relação recíproca, um vínculo de serviço mútuo. Muitas vezes, existe uma tendência para expressar a inter-relação entre os dois de uma maneira unilateral que obscurece essa reciprocidade. Cristo, diz-se, vem primeiro; então, depois de sua Ascensão ao céu, ele envia o Espírito no Pentecostes. Mas, na realidade, as ligações mútuas são mais complexos e mais equilibrada. Cristo nos envia o Espírito, mas ao mesmo tempo é o Espírito que envia Cristo. Lembremo-nos e desenvolvamos alguns dos padrões trinitários descritos acima.

1. Encarnação. Na Anunciação, o Espírito Santo desce sobre a Virgem Maria, e ela concebe o Logos: de acordo com o Credo, Jesus Cristo foi "encarnado do Espírito Santo e da Virgem Maria". Aqui é o Espírito que está enviando Cristo para o mundo.

2. Batismo. A relação é a mesma. Quando Jesus levanta-se das águas do Jordão, o Espírito desce sobre ele na forma de uma pomba: assim é o Espírito que "comanda" Cristo e o envia para o seu ministério público. Isso é bastante claro nos incidentes que se seguem imediatamente após o batismo. O Espírito leva Cristo ao deserto (Marcos 1:12), para passar por um período de testes de quarenta dias antes de começar a pregar. Quando Cristo retorna no final desta luta, é "no poder do Espírito" (Lucas 4:14). As primeiras palavras de sua pregação se referem diretamente ao fato de que é o Espírito que o está enviando: ele lê Isaías 61: 1, aplicando o texto para si mesmo: "O Espírito do Senhor está sobre mim, porque ele me ungiu para pregar boas novas aos pobres." (Lucas 4:18). Seu título "Cristo" ou "Messias" significa precisamente que ele é o ungido pelo Espírito Santo.

3. Transfiguração. Mais uma vez, o Espírito desce sobre Cristo, desta vez não na forma de uma pomba, mas como uma nuvem de luz. Assim como o Espírito enviou anteriormente Jesus para o deserto e depois para a sua pregação pública, então agora o Espírito o envia para seu "êxodo" ou morte sacrificial em Jerusalém (Lucas 9:31).

4. Pentecostes. A relação mútua é aqui revertida. Até então, foi o Espírito que envia Cristo: agora é o Cristo ressuscitado que envia o Espírito. Pentecostes constitui o objetivo e a conclusão da Encarnação: nas palavras de São Atanásio, "O Logos tomou a carne, para que possamos receber o Espírito".

5. A vida cristã. Mas a reciprocidade das "duas mãos" não termina aqui. Assim como o Espírito envia o Filho à Anunciação, o Batismo. e a Transfiguração, e assim como o Filho, por sua vez, envia o Espírito no Pentecostes, assim, depois do Pentecostes, a tarefa do Espírito é testemunhar Cristo, tornando o Senhor ressuscitado sempre presente entre nós. Se o objetivo da Encarnação é o envio do Espírito no Pentecostes, o Pentecostes é a continuação da Encarnação de Cristo dentro da vida da Igreja. Isto é precisamente o que o Espírito faz na epiclesis na consagração Eucarística; e esta epiclesis consagrada serve como modelo e paradigma para o que está acontecendo ao longo de toda a nossa vida em Cristo.

"Porque, onde estiverem dois ou três reunidos em meu nome, aí estou eu no meio deles"(Mateus 18:20). Como está Cristo presente em nosso meio? Através do Espírito Santo. "Eis que estou contigo sempre, até o fim do mundo" (Mateus 28:20). Como Cristo está sempre conosco? Através do Espírito Santo. Por causa da presença do Consolador em nosso coração, não conhecemos simplesmente Cristo na quarta ou quinta mão, como uma figura distante de há muito tempo, sobre quem nós possuímos informações factuais através de registros escritos; mas o conhecemos diretamente, aqui e agora, no presente, como nosso Salvador pessoal e nosso amigo. Com o apóstolo Tomé podemos afirmar: "Meu Senhor e meu Deus" (João 20:28). Nós não dizemos meramente: "Cristo nasceu" - uma vez, muito tempo atrás; nós dizemos "Cristo nasce" - agora, neste momento, no meu próprio coração. Nós não dizemos apenas "Cristo morreu", mas "Cristo morreu por mim". Nós não dizemos meramente: "Cristo ressuscitou", mas "Cristo verdadeiramente ressuscitou" [1] - ele vive agora, para mim e em mim. Este imediatismo e objetividade pessoal em nosso relacionamento com Jesus é precisamente a obra do Espírito.

O Espírito Santo, então, não nos fala sobre si mesmo, mas ele nos fala sobre Cristo. "Quando vier o Espírito da verdade", diz Jesus na Última Ceia, "ele vos guiará em toda a verdade; porque não falará de si mesmo ... Ele tomará o que é meu e o mostrará "(João 16: 13-14). Aqui está o motivo do anonimato ou, mais exatamente, a transparência do Espírito Santo: ele aponta, não para si mesmo, mas para o Cristo ressuscitado.

O Dom do Pentecostal 

Sobre o dom do Paráclito no dia de Pentecostes, três coisas são particularmente impressionantes:

Primeiro, é um dom para todo o povo de Deus: "Todos foram preenchidos com o Espírito Santo" (Atos 2: 4). O dom ou carisma do Espírito não é conferido apenas aos bispos e clérigos, mas a cada um dos batizados. Todos são portadores do Espírito, todos são - no sentido próprio da palavra - "carismáticos".

Em segundo lugar, é um dom de unidade: "Todos estavam todos reunidos no mesmo lugar" (Atos 2: 1). O Espírito Santo faz com que os muitos sejam um Corpo em Cristo. A descida do Espírito no Pentecostes inverte o efeito da torre de Babel (Gênesis 11: 7). Como dizemos em um dos hinos para a festa de Pentecostes:

Quando o Altíssimo desceu e confundiu as línguas,

Ele dividiu as nações;

Mas quando distribuiu línguas de fogo,

Ele chamou todos à unidade.

Portanto, com uma só voz, glorificamos o Espírito Santo.

O Espírito traz unidade e compreensão mútua, permitindo-nos falar "com uma só voz". Ele transforma indivíduos em pessoas. Da primeira comunidade cristã em Jerusalém, no período imediatamente posterior ao Pentecostes, afirma-se que "tinham todas as coisas em comum" e estavam "unidos em coração e alma" (Atos 2:44; 4:32); e essa deve ser a marca da comunidade pentecostal da Igreja em todas as épocas.

Em terceiro lugar, o dom do Espírito é um dom da diversidade: as línguas de fogo estão "repartidas" ou "divididas" (Atos 2: 3), e elas são distribuídas diretamente a cada um. O Espírito Santo não só faz de nós um só, mas ele nos faz cada um diferente. No Pentecostes, a multiplicidade de línguas não foi abolida, mas deixou de ser uma causa de separação; cada um falou como antes, em sua própria língua, mas pelo poder do Espírito cada um podia entender os outros. Para que eu seja um portador do Espírito devo realizar todas as características distintivas da minha personalidade; é tornar-se verdadeiramente livre, verdadeiramente eu mesmo na minha singularidade. A vida no Espírito possui uma variedade inesgotável; é o agir errado, não a santidade, que é chato e repetitivo. Como um amigo meu, um sacerdote que passou muitas horas a cada dia ouvindo confissões, costumava observar com cansaço: "Que pena não haja novos pecados!" Mas sempre há novas formas de santidade.

Pais no Espírito e os Tolos 

Na tradição ortodoxa, a ação direta do Paráclito dentro da comunidade cristã é bastante evidente em duas figuras "portadoras de Espírito": o ancião ou pai espiritual, e o tolo em Cristo.

O ancião ou "velho", conhecido em grego como geron e em russo como starets, não necessariamente velho em anos, mas ele é sábio em sua experiência da verdade divina e abençoado com a graça da "paternidade no Espírito" , com o carisma de orientar os outros no Caminho.  O que ele oferece aos seus filhos espirituais não é primariamente instruções morais ou uma regra de vida, mas um relacionamento pessoal. "O starets", diz Dostoiévski, "é aquele que leva a sua alma, sua vontade, à alma e à vontade dele". Os discípulos do Pe. Zacarias diziam sobre ele: "Era como se ele estivesse com nossos corações em suas mãos."

O starets é um homem de paz interior, de cujo lado milhares podem encontrar a salvação. O Espírito Santo deu-lhe, como fruto de sua oração e abnegação, o dom do discernimento ou da discriminação, permitindo-lhe ler os segredos dos corações dos homens; e, assim, ele responde, não apenas as questões que os outros colocam, mas também as questões - muitas vezes muito mais fundamentais - que nem sequer pensaram em perguntar. Combinado com o dom do discernimento, ele possui o dom da cura espiritual - o poder de restaurar as almas dos homens, e às vezes também seus corpos. Esta cura espiritual que ele fornece, não só por meio de suas palavras de conselho, mas por seu silêncio e sua própria presença. Embora seja importante o seu conselho, muito mais importante é sua oração de intercessão. Ele torna seus filhos plenos orando constantemente por eles, identificando-se com eles, aceitando suas alegrias e dores como suas, levando em seus ombros o fardo de culpa ou ansiedade deles. Ninguém pode ser um starets se não orar insistentemente pelos outros.

Se o starets é um padre, geralmente seu ministério de direção espiritual está intimamente ligado ao sacramento da confissão. Mas um starets no sentido pleno, como descrito por Dostoiévski ou exemplificado pelo P. Zachariah, é mais do que apenas um padre-confessor. A starets no sentido pleno não pode ser nomeado por qualquer autoridade superior. O que acontece é simplesmente que o Espírito Santo, falando diretamente aos corações do povo cristão, deixa claro que essa ou aquela pessoa foi abençoada por Deus com a graça de guiar e curar os outros. O verdadeiro starets é, nesse sentido, uma figura profética, não uma autoridade institucional. Embora seja mais comum um padre-monge, ele também pode ser um pároco casado, ou então um monge leigo não ordenado como padre, ou mesmo - mas isso é menos frequente - uma freira ou um leigo mulher ou homem que vive no mundo. Se o starets não é ele próprio um padre, depois de ouvir os problemas das pessoas e oferecer conselhos, ele enviará freqüentemente a um padre para a confissão sacramental e a absolvição.

A relação entre o filho e o pai espiritual varia muito. Alguns visitam um starets talvez apenas uma ou duas vezes na vida, em um momento de crise especial, enquanto outros estão em contato regular com seus starets, vendo-o mensalmente ou mesmo diariamente. Nenhuma regra pode ser estabelecida antecipadamente; a associação cresce por si mesma sob a orientação imediata do Espírito.

Sempre o relacionamento é pessoal. Os starets não aplicam regras abstratas aprendidas de um livro - como na "casuística" do catolicismo da contra-reforma - mas ele vê em cada ocasião esse homem ou mulher particular que está diante dele; e, iluminado pelo Espírito, ele procura transmitir a vontade única de Deus especificamente para essa pessoa. Porque os verdadeiros starets entende e respeita o caráter distintivo de cada um, ele não suprime sua liberdade interior, mas a reforça. Ele não busca suscitar uma obediência mecânica, mas conduz seus filhos ao ponto de maturidade espiritual, onde eles podem decidir por si mesmos. Para cada um, ele mostra a face verdadeira deles, que antes estava em grande parte escondido dessa pessoa; e sua palavra é criativa e vivificante, permitindo que o outro realize tarefas que antes pareciam impossíveis. Mas tudo isso, o starets pode alcançar apenas porque ele ama cada um pessoalmente. Além disso, o relacionamento é mútuo: o starets não pode ajudar outro, a menos que o outro deseje seriamente mudar seu modo de vida e abrir seu coração em confiança amorosa para os starets. Aquele que vai ver um starets em um espírito de curiosidade crítica provavelmente retornará com as mãos vazias, sem ser impressionado.

Porque o relacionamento é sempre pessoal, um starets específico não pode ajudar todos de forma igual. Ele pode ajudar apenas aqueles que são especificamente enviado a ele pelo Espírito. Do mesmo modo, o discípulo não deve dizer: "O meu starets é melhor do que todos os outros". Ele deveria dizer apenas: "Meu starets é o melhor para mim".

Ao orientar os outros, o pai espiritual espera a vontade e a voz do Espírito Santo. "Dou apenas o que Deus me diz para dar", disse diz Serafim. "Eu acredito na primeira palavra que me vem inspirar pelo Espírito Santo". "Eu acredito que a primeira palavra que me vem seja inspirada pelo Espírito Santo." Obviamente, ninguém tem o direito de agir desta maneira, a menos que, através do esforço e da oração ascética, tenha alcançado uma consciência excepcionalmente intensa da presença de Deus. Para qualquer um que não tenha atingido este nível, tal comportamento seria presunçoso e irresponsável.

Pe. Zacarias fala nos mesmos termos que São Serafim:

Às vezes, o homem não conhece o que ele dirá. O próprio Senhor fala através dos seus lábios. É preciso orar assim: "Senhor, viva em mim, que você fale através de mim, que você possa agir através de mim". Quando o Senhor fala através dos lábios de um homem, todas as palavras desse homem são eficazes e tudo que é falado por ele é cumprido. O homem que fala fica ele próprio surpreso com isso... Só que não se deve contar com a sabedoria..

A relação entre pai e filho espiritual se estende além da morte até o Juízo Final. O Pe. Zacarias tranquilizou seus seguidores: "Depois da morte, eu estarei muito mais vivo do que estou agora, então não se aflija quando eu morrer... No dia do julgamento, o ancião dirá: 'Aqui estou eu e meus filhos'".  São Serafim pediu que essas palavras notáveis fossem inscritas em sua lápide:

Quando eu morrer, venha a mim no meu túmulo, e quanto mais frequentemente melhor. Seja o que estiver em sua alma, seja o que for que aconteceu com você, venha até mim como quando eu estava vivo e, ajoelhada no chão, expulse toda a sua amargura no meu túmulo. Diga-me tudo e eu vou ouvir você, e toda a amargura vai se afastar de você. Como você falou comigo quando eu estava vivo, faça o mesmo agora. Porque eu estou vivendo, e será para sempre.

Nem todos os ortodoxos possuem um pai espiritual próprio. O que devemos fazer se nós buscamos um guia e não conseguimos encontrar um?  É óbvio que é possível aprender com os livros: quer tenhamos ou não um starets, olhamos para a Bíblia como orientação constante. Mas a dificuldade com os livros é saber exatamente o que me é aplicável pessoalmente, neste ponto específico da minha jornada. Além dos livros, e também da paternidade espiritual, há também fraternidade ou irmandade espiritual - a ajuda que nos é dada, não pelos mestres em Deus, mas pelos nossos irmãos discípulos. Não devemos negligenciar as oportunidades oferecidas a nós nesta forma. Mas aqueles que se comprometem seriamente com o Caminho devem, além disso, fazer todos os esforços para encontrar um pai no Espírito Santo. Se eles procurarem humildemente, a eles sem dúvida será dado a orientação que exigem. Não é que eles frequentemente irão encontrar starets como São Serafim ou Pe. Zacarias. Devemos tomar cuidado pois, com nossa expectativa por algo exteriormente mais espetacular, ignoramos a ajuda que Deus realmente está nos oferecendo. Alguém que, nos olhos dos outros, não é interessante, talvez seja o único pai espiritual que pode falar comigo, pessoalmente, as palavras de fogo que, acima de tudo, preciso ouvir.

Um segundo profético portador do Espírito dentro da comunidade cristã é o tolo em Cristo, chamado pelos gregos salos e pelos russos iurodivyi. Normalmente, é difícil descobrir até que ponto sua "loucura" é conscientemente e deliberadamente assumida, e até que ponto é espontânea e involuntária. Inspirado pelo Espírito, o tolo carrega o ato de metanoia ou "mudança de mente" em sua extensão máxima. Mais radicalmente do que qualquer outra pessoa, ele ergue a pirâmide de ponta cabeça. Ele é um testemunho vivo da verdade de que o reino de Cristo não é deste mundo; ele atesta a realidade do "anti-mundo", para a possibilidade do impossível. Ele pratica uma pobreza voluntária absoluta, identificando-se com o Cristo humilhado. Como diz Iulia de Beausobre: ​​"Ele é filho de ninguém, irmão de ninguém, pai de ninguém, e não tem casa". Renunciando a vida familiar, é o viajante ou o peregrino que se sente igualmente em casa em todos os lugares, mas que não se estabelece em lugar algum. Vestido em andrajos, mesmo no frio do inverno, dormindo em um galpão ou na frente da igreja, ele renuncia não só a bens materiais, mas também o que os outros consideram como sua sanidade e equilíbrio mental. Contudo, ele se torna um canal para a sabedoria elevada do Espírito.

Ser tolo por Cristo, desnecessário dizer, é uma vocação extremamente rara; tampouco é fácil distinguir a imitação do genuíno, quem rompe as barreiras de quem cai sob seu peso.. Há, no final, apenas um teste: "Pelos seus frutos os conhecereis" (Mateus 7:20). O falso tolo é inútil e destrutivo, para si mesmo e para os outros. O verdadeiro tolo em Cristo, possuindo pureza de coração, tem sobre a comunidade ao seu redor um efeito que é potencializador da vida. Do ponto de vista prático, nenhum objetivo útil é servido por qualquer coisa que o tolo faz. E, no entanto, através de uma ação surpreendente ou uma palavra enigmática, muitas vezes deliberadamente provocativa e chocante, ele desperta os homens da complacência e do farisaísmo. Permanecendo separado, ele desencadeia reações nos outros, fazendo subir o subconsciente à superfície e permitindo que seja purgado e santificado. Ele combina audácia com humildade. Por ter renunciado tudo, ele é verdadeiramente livre. Como o tolo Nicolas de Pskov, que colocou nas mãos de Tsar Ivan o Terrível um pedaço de carne pingando sangue, ele pode repreender os poderosos deste mundo com uma ousadia que outros não têm. Ele é a consciência viva da sociedade.

Torne-se o que você é

Apenas alguns cristãos em cada geração se tornam anciãos, e ainda menos se tornam tolos em Cristo. Mas todos os batizados sem exceção são portadores do Espírito. "Você não percebe ou entende sua própria nobreza?", pergunta as Homilias de São Macário.

"... Cada um de vocês foi ungido com o crisma celestial, e tornou-se um Cristo pela graça; cada um é rei e profeta dos mistérios celestes ."

O que aconteceu com os primeiros cristãos no dia do Pentecostes acontece também a cada um de nós quando, imediatamente após o nosso Batismo, estamos na prática ortodoxa ungida com Crisma, ou Myron. (Este, o segundo sacramento da iniciação cristã, corresponde à Confirmação na tradição ocidental.) O recém-batizado, criança ou adulto, é marcado pelo sacerdote na testa, olhos, narinas, boca, orelhas, peito, mãos e pés, com as palavras: 'O selo do dom do Espírito Santo'. Isso é, para cada pessoa, um Pentecostes pessoal: o Espírito, que desce visivelmente sobre os Apóstolos em línguas de fogo, desce sobre cada um de nós de forma invisível, não com menos realidade e poder. Cada um se torna um "ungido", um "Cristo" segundo a semelhança de Jesus, o Messias. Cada um é selado com o charismata do Consolador. Desde o momento do nosso Batismo e Crismação, o Espírito Santo, juntamente com Cristo, vem morar no santuário mais íntimo do nosso coração. Embora digamos ao Espírito 'Venha', ele já está dentro de nós.

Por mais descuidados e indiferentes que os batizados possam ser em sua vida subsequente, esta presença permanente do Espírito nunca é totalmente retirada. Mas a menos que cooperemos com a graça de Deus - a menos que, através do exercício da nossa livre vontade, nos esforcemos para realizar os mandamentos - é provável que a presença do Espírito dentro de nós permaneça escondida e inconsciente. Como peregrinos no Caminho, então, é nosso propósito avançar do estágio onde a graça do Espírito está presente e ativa dentro de nós de forma oculta, até o ponto de percepção consciente, quando conhecemos o poder do Espírito abertamente, diretamente, com a plena percepção de nosso coração. "Eu vim lançar fogo à terra", disse Cristo, "e quem me dera que já estivesse a arder!" (Lucas 12:49). A centelha Pentecostal do Espírito, existente em cada um de nós do Batismo, deve ser acesa em uma chama viva. Devemos nos tornar o que somos.

"O fruto do Espírito é amor, alegria, paz, longanimidade, gentileza ..." (Gálatas 5:22). A percepção consciente da ação do Espírito deve ser algo que permeia toda a nossa vida interior. Não é necessário que todos sejam submetidos a uma "experiência de conversão" impressionante. Ainda menos é necessário que todos "falem em línguas". A maioria das opiniões ortodoxas contemporâneas veem com grande reserva aquela parte do "Movimento Pentecostal" que trata as "línguas" como a prova decisiva e indispensável de que alguém é verdadeiramente um portador do Espírito. O dom das línguas era, é claro, freqüente na era apostólica; mas desde meados do segundo século tem sido muito menos comum, embora nunca tenha desaparecido inteiramente. Em qualquer caso, São Paulo insiste que este é um dos mais importantes dos dons espirituais (ver 1 Coríntios 14: 5).

Quando é genuinamente espiritual, 'falar em línguas' parece representar um ato de 'libertação' - o momento crucial na quebra da nossa auto-confiança pecaminosa, e sua substituição por uma vontade de permitir que Deus atue dentro de nós.

Na tradição ortodoxa, este ato de "deixar-ir" toma mais freqüentemente a forma do dom das lágrimas. "Lágrimas", diz São Isaac o Sírio, "marcam a fronteira entre o estado corporal e o espiritual, entre o esado de sujeição às paixões e o da pureza". E em uma passagem memorável, ele escreve: 

Os frutos do homem interior começam apenas com o derramar das lágrimas. Quando você chega no local das lágrimas, então saiba que seu espírito saiu da prisão deste mundo e pôs o pé no caminho que conduz à Nova Era. Seu espírito começa neste momento a respirar o ar maravilhoso que está lá, e começa a derramar lágrimas. O momento para o nascimento do filho espiritual está próximo e o trabalho de parto torna-se intenso. A graça, a mãe comum de todos nós, apressa-se a misticamente dar à luz a alma, a imagem de Deus, trazendo-a para a luz da Era por vir. E quando a hora para o nascimento chega, o intelecto começa a sentir algo das coisas daquele outro mundo - como um fraco perfume, ou como o sopro da vida que um recém-nascido recebe no seu corpo. Mas nós não estamos acostumados a essa experiência e, achando difícil de suportar, nosso corpo é subitamente tomado por um choro misturado com alegria. 

Há, no entanto, muitos tipos de lágrimas, e nem todas são um dom do Espírito. Além das lágrimas espirituais, há lágrimas de raiva e frustração, lágrimas derramadas por autocomiseração, lágrimas sentimentais e emocionais. O discernimento é necessário; daí a importância de buscar a ajuda de um guia espiritual experiente, um starets. O discernimento é ainda mais necessário no caso de 'línguas'. Muitas vezes, não é o Espírito de Deus que está falando através das línguas, mas o espírito demasiado humano de auto-sugestão e histeria em massa. Há até mesmo ocasiões em que "falar em línguas" é uma forma de possessão demoníaca. "Amados, não creiais a todo o espírito, mas provai se os espíritos são de Deus" (1 João 4: 1).

A ortodoxia, portanto, enquanto insiste na necessidade de uma experiência direta do Espírito Santo, insiste também na necessidade de discriminação e sobriedade. Nosso choro, e também a nossa participação nos outros dons do Espírito, precisam ser purificados de toda a fantasia e excitação emocional. Os dons que são genuinamente espirituais não devem ser rejeitados, mas nunca devemos perseguir tais dons como um fim em si mesmos. Nosso objetivo na vida de oração não é obter sentimentos ou experiências "sensíveis" de qualquer tipo, mas simplesmente e unicamente conformar a nossa vontade à vontade de Deus. "Pois que não busco o que é vosso, mas sim a vós", diz São Paulo aos Coríntios (2 Coríntios 12:14); e dizemos o mesmo a Deus. Procuramos não os dons, mas o doador.



Notas:
[1] N.T.: No original há "We do not say merely, ‘Christ rose’, but ‘Christ is risen’ — he lives now, for me and in me." O autor enfatiza a diferença entre "rose" e "is risen", onde "rose" dá uma ideia de algo concluído no passado, enquanto "is risen" continua no presente. 



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