sábado, 25 de novembro de 2017

O Caminho Ortodoxo: Deus como Homem (Kallistos Ware) [Parte 5/8]


CONTEÚDO
1 Prólogo - Sinais no Caminho 
2 Deus como Mistério 
3 Deus como Trindade 
4 Deus como Criador 
5 Deus como Homem 
6 Deus como Espírito 
7 Deus como Oração 
8 Epílogo - Deus como Eternidade


Deus estava em Cristo reconciliando consigo o mundo.
2 Coríntios 5:19

Tenha sede de Jesus, e ele irá satisfazê-lo com seu amor.
São Isaac, o Sírio

Abba Isaac disse: ‘Uma vez eu estava sentado com Abba Poemen, e vi que ele estava em êxtase; e, como eu costumava falar muito abertamente com ele, fiz uma prostração diante dele e perguntei-lhe: "Diga-me, onde você estava?" E ele não quis me contar.  Mas quando o pressionei, ele respondeu: "Meus pensamentos estavam com Santa Maria, a Mãe de Deus, enquanto ela estava de pé e chorava diante da Cruz do Salvador; e eu gostaria de sempre poder chorar tanto quanto ela chorou naquele momento. 
Os Ditos dos Padres do Deserto


Nosso companheiro no Caminho

No final de The Waste Land T. S. Eliot escreve:

Quem é o terceiro que anda sempre ao seu lado?

Quando eu conto, há apenas você e eu juntos

Mas quando olho para a frente na estrada branca

Há sempre outro caminhando ao seu lado ...

Ele explica nas notas que ele tinha em mente a história contada sobre a expedição antártica de Shackleton: como o grupo de exploradores, ao chegarem no extremo de sua força, sentiram repetidamente que havia mais um membro além daqueles que podiam ser contados. Muito antes de Shackleton, rei Nabucodonosor da Babilônia teve uma experiência semelhante: "Não lançamos nós, dentro do fogo, três homens atados? Eu, porém, vejo quatro homens soltos, que andam passeando dentro do fogo, sem sofrer nenhum dano; e o aspecto do quarto é semelhante ao Filho de Deus." (Daniel 3: 24-25).

Tal é para nós o significado de Jesus nosso Salvador. Ele é aquele que anda sempre junto a nós quando chegamos no extremo da nossa força, que está conosco no gelo ou na fornalha de fogo. A cada um de nós, no momento da nossa maior solidão ou prova, esta frase é dita: você não está sozinho; você tem um companheiro.

Terminamos nosso último capítulo falando sobre a alienação e o exílio do homem. Vimos como o pecado, original e pessoal, estabeleceu entre Deus e o homem um abismo que o homem, por seus próprios esforços, não pode transpor. Cortado de seu Criador, separado de seus semelhantes, interiormente fragmentado, o homem caído não tem o poder de curar-se. Onde, perguntamos, uma cura podia ser encontrada? Vimos também como a Trindade, como um Deus de amor pessoal, não poderia permanecer indiferente ao sofrimento do homem, mas estava envolvido nele. Até que ponto o envolvimento divino tem sido feito?

A resposta é que foi feito até o maior alcance possível.  Como o homem não podia vir a Deus, Deus veio ao homem, identificando-se com o homem de maneira mais direta. O eterno Logos e o Filho de Deus, a segunda pessoa da Trindade, tornou-se homem verdadeiro, um de nós; Ele curou e restaurou a nossa humanidade, assumindo tudo em si mesmo. Nas palavras do Credo: "Creio em... um só Senhor, Jesus Cristo... Deus verdadeiro de Deus verdadeiro, consubstancial ao Pai...E, por nós, homens, e para a nossa salvação, desceu dos céus: e encarnou pelo Espírito Santo, no seio da Virgem Maria..." Este, então, é nosso companheiro no gelo ou no fogo: o Senhor Jesus que se fez carne no seio da Virgem, um da Trindade e, ainda assim, um de nós, nosso Deus e, ainda assim, nosso irmão. 

Senhor Jesus, tem piedade

Em uma seção anterior, exploramos o significado trinitário da Oração de Jesus, 'Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tenha piedade de mim, pecador'. Consideremos agora o que ela tem para nos dizer sobre a encarnação de Jesus Cristo, e sobre nossa cura por e nele.

Há na oração de Jesus dois "pólos" ou pontos extremos. "Senhor ... Filho de Deus": a Oração fala primeiro sobre a glória de Deus, aclamando Jesus como o Senhor de toda a criação e do Filho eterno. Em seguida, na sua conclusão a oração se volta para a nossa condição de pecadores - pecadores, em virtude da queda, pecadores por nossos atos pessoais de transgressão: ‘... de mim, pecador’. (Em seu significado literal, o texto grego é ainda mais enfático, dizendo "sobre mim o pecador", como se eu fosse o único.)

Assim, a oração começa com adoração e termina com penitência. Quem ou o que vai conciliar estes dois extremos de glória divina e pecaminosidade humana? Há três palavras na Oração que dão a resposta. O primeiro é "Jesus", o nome pessoal conferido a Cristo após o nascimento humano da Virgem Maria. Esse tem o sentido de de Salvador: como o anjo disse ao pai adotivo de Cristo, São José: "Chamarás o seu nome Jesus; porque ele salvará o seu povo dos seus pecados." (Mateus 1:21).

A segunda palavra é o título "Cristo", o equivalente grego do "Messias" hebraico, que significa o Ungido - ungido, isto é, pelo Espírito Santo de Deus. Para o povo judeu da Antiga Aliança, o Messias era o libertador vindouro, o futuro rei, que no poder do Espírito os libertaria de seus inimigos.

A terceira palavra é "piedade", termo que significa amor em ação, amor trabalhando para trazer o perdão, a libertação e a totalidade. Ter misericórdia é absolver o outro da culpa que, por meio de seus próprios esforços, ele não pode se purificar, liberá-lo das dívidas que ele próprio não pode pagar, para torná-lo curado da doença a qual ele sozinho não consegue achar qualquer cura. O termo "piedade" significa, além disso, que tudo isso é conferido como um presente gratuito: aquele que pede piedade não tem reivindicações sobre o outro, nenhum direito sobre o qual ele pode recorrer.

A Oração de Jesus, então, indica o problema do homem e a solução de Deus. Jesus é o Salvador, o rei ungido, aquele que tem piedade. Mas a Oração também nos diz algo sobre a pessoa do próprio Jesus. Ele é tratado como "Senhor" e "Filho de Deus": aqui a Oração fala de sua Divindade, de sua transcendência e eternidade. Mas ele é tratado igualmente como "Jesus", isto é, pelo nome pessoal que sua mãe e seu pai adotivo lhe deram após seu nascimento humano em Belém. Assim, a Oração fala também de sua humanidade, da realidade genuína de seu nascimento como um ser humano.

A Oração de Jesus é, portanto, uma afirmação de fé em Jesus Cristo, como verdadeiramente divino e plenamente humano. Ele é o Theanthropos ou ‘Deus-homem’, que nos salva dos nossos pecados, precisamente porque ele é Deus e homem ao mesmo tempo. O homem não poderia ir até Deus, então Deus veio ao homem - tornando-se homem. Em seu amor transbordante ou 'extático', Deus une-se à sua criação na união mais estreita possível, por si mesmo tornando-se aquilo que ele criou. Deus, como homem, cumpre a tarefa mediadora que o homem rejeitou na queda. Jesus, nosso Salvador preenche o abismo entre Deus e o homem, porque ele é ambos ao mesmo tempo.  Como dizemos em um dos hinos ortodoxos para véspera de Natal, "O céu e a terra estão unidos hoje, porque Cristo nasceu. Hoje Deus desceu à terra, e o homem subiu ao céu."

A Encarnação, então, é ato supremo de libertação vindo de Deus, restaurando-nos à comunhão com ele mesmo. Mas o que teria acontecido se nunca tivesse havido uma queda? Deus teria escolhido se tornar homem, mesmo se caso o homem nunca tivesse pecado? A encarnação deve ser considerada simplesmente como a resposta de Deus à situação do homem caído, ou é de alguma forma parte do propósito eterno de Deus? Devemos olhar para além da queda e ver o ato de Deus de tornar-se homem como o cumprimento do verdadeiro destino do homem?

A esta questão hipotética, não é possível para nós, na nossa situação atual, dar qualquer resposta final. Vivendo, como nós, nas condições da queda, não podemos imaginar claramente qual teria sido a relação de Deus com a humanidade, se a queda nunca tivesse ocorrido. Os escritores cristãos, portanto, na maioria dos casos, limitaram sua discussão sobre a Encarnação ao contexto do estado caído do homem. Mas há alguns que se arriscaram a ter uma visão mais ampla, mais notavelmente São Isaac, o Sírio e São Máximo, o Confessor no Oriente, e Duns Scotus no Ocidente. A Encarnação, diz São Isaac, é a coisa mais abençoada e alegre que poderia ter acontecido com a raça humana. Será correto, então, atribuir como causa desse acontecimento alegre algo que talvez nunca tenha ocorrido, e de fato nunca deveria ter sido feito? Certamente, insiste São Isaque, a assunção de Deus de nossa humanidade deve ser entendida não apenas como um ato de restauração, não apenas como resposta ao pecado do homem, mas também e mais fundamentalmente como um ato de amor, uma expressão da própria natureza de Deus. Mesmo que não houvesse queda, Deus, em seu amor ilimitado e transbordante, ainda teria escolhido identificar-se com sua criação tornando-se homem.

A encarnação de Cristo, vista dessa maneira, produz mais do que uma inversão da queda, mais que uma restauração do homem em seu estado original no Paraíso. Quando Deus se torna homem, isso marca o início de um estágio essencialmente novo na história do homem, e não apenas um retorno ao passado. A Encarnação eleva o homem a um novo nível; o último estado é maior que o primeiro. Só em Jesus Cristo vemos revelado todas as possibilidades de nossa natureza humana; até ele nascer, as verdadeiras implicações de nossa personalidade ainda estão escondidas de nós. O nascimento de Cristo, como diz São Basílio, é "o natalício de toda a raça humana"; Cristo é o primeiro homem perfeito - perfeito, isto é, não apenas em um sentido potencial, como Adão estava em sua inocência antes da queda, mas no sentido da "semelhança" plenamente realizada. A Encarnação, portanto, não é simplesmente uma maneira de desfazer os efeitos do pecado original, mas é um estágio essencial na jornada do homem, da imagem divina à semelhança divina. A verdadeira imagem e semelhança de Deus é o próprio Cristo; e assim, desde o primeiro momento da criação do homem à imagem, a encarnação de Cristo já estava de alguma forma implícita. A verdadeira razão para a encarnação, então, não reside no pecado do homem, mas na sua natureza não-caída como um ser feito à imagem divina e capaz de união com Deus.

Duplo, porém uno

A fé ortodoxa na Encarnação é resumida no refrão do hino de Natal de São Romanos, o Melodista: "Um filho recém-nascido, Deus antes dos séculos". Contido nesta breve frase há três afirmações:

1. Jesus Cristo é plenamente e completamente Deus.

2. Jesus Cristo é plenamente e completamente homem.

3. Jesus Cristo não é duas pessoas, mas uma.

Isto é explicado em grande detalhe pelos Concílios Ecumênicos. Assim como os dois primeiros entre os sete estiveram preocupados com a doutrina da Trindade, os cinco últimos estiveram preocupados com a doutrina da Encarnação.

O terceiro Concílio (Ephesus, 431) afirmou que a Virgem Maria é a Theotokos, 'Deípara' ou 'Mãe de Deus'. Implícito neste título está uma afirmação, não primariamente sobre a Virgem, mas sobre Cristo: Deus nasceu. A Virgem é Mãe, não de uma pessoa humana unida à pessoa divina do Logos, mas de uma pessoa única e indivisa, que é Deus e homem ao mesmo tempo.

O quarto Concílio (Calcedônia, 451) proclamou que há em Jesus Cristo duas naturezas, uma divina e a outra humana. De acordo com sua natureza divina, Cristo é "um em essência" (homoousios) com Deus Pai; de acordo com sua natureza humana, ele é homoousios com nós, homens. De acordo com sua natureza divina, isto é, ele é plenamente e completamente Deus: ele é a segunda pessoa da Trindade, o único Filho unigênito e eterno do Pai eterno, nascido do Pai antes de todas as épocas. De acordo com sua natureza humana, ele é plenamente e completamente homem: nascido em Belém como um filho humano da Virgem Maria, ele não tem apenas um corpo humano como o nosso, mas uma alma e intelecto humano. No entanto, embora o Cristo encarnado exista "em duas naturezas", ele é uma pessoa, única e indivisa, e não duas pessoas que coexistem no mesmo corpo.

O quinto Concílio (Constantinopla, 553), desenvolvendo o que foi dito pelo terceiro, ensinou que "Um da Trindade sofreu na carne". Assim como é legítimo dizer que Deus nasceu, assim temos o direito de afirmar que Deus morreu. Em cada caso, é claro, especificamos que é Deus-feito-homem, de quem isso é dito. Deus em sua transcendência não está sujeito nem ao nascimento nem à morte, mas o Logos encarnado efetivamente passou por essas coisas.

O sexto Concílio (Constantinopla, 680-1), tomando o que foi dito no quarto, afirmou que, assim como há em Cristo duas naturezas, divinas e humanas, então há em Cristo não só uma vontade divina, mas também uma vontade humana; pois se Cristo não tivesse vontade humana como a nossa, ele não seria verdadeiramente homem como nós. No entanto, essas duas vontades não são contrárias e opostas uma às outra, pois a vontade humana é sempre livremente obediente a divina.

O sétimo Concílio (Nicaea, 787), colocando o selo nos quatro que precederam, proclamou que, uma vez que Cristo se tornou homem verdadeiro, é legítimo representar seu rosto sobre os santos ícones; e, como Cristo é uma pessoa e não duas, esses ícones não nos mostram apenas a humanidade dele em separação de sua divindade, mas nos mostram a pessoa do eterno Logos encarnado.

Há, portanto, um contraste na formulação técnica entre a doutrina da Trindade e a da Encarnação. No caso da Trindade, afirmamos uma única essência ou natureza específica em três pessoas; e em virtude da unidade específica de essência, as três pessoas têm apenas uma única vontade ou energia. No caso do Cristo encarnado, por outro lado, existem duas naturezas, uma divina e a outra humana, mas há apenas uma única pessoa, o eterno Logos que se tornou homem. E que as três pessoas divinas da Trindade tem apenas uma única vontade e energia, a única pessoa do Cristo Encarnado tem duas vontades e energias, dependendo respectivamente de suas duas naturezas. No entanto, apesar de existir no Cristo encarnado duas naturezas e duas vontades, isso não destrói a unidade de sua pessoa: tudo no Evangelho que é falado, realizado ou sofrido por Cristo deve ser atribuído a um único e mesmo sujeito pessoal, o eterno Filho de Deus que agora nasceu como homem no espaço e do tempo.

Subjacente às definições conciliares sobre Cristo como Deus e homem, existem dois princípios básicos em relação à nossa salvação. Primeiro, só Deus pode nos salvar. Um profeta ou um mestre de justiça e retidão não podem ser o redentor do mundo. Se, então, Cristo deve ser nosso Salvador, ele deve ser plenamente e completamente Deus. Em segundo lugar, a salvação deve atingir o ponto da necessidade humana. Somente se Cristo é plenamente e completamente um homem como somos, nós podemos compartilhar o que ele fez por nós.

Seria, portanto, fatal para a doutrina da nossa salvação se considerássemos Cristo da maneira que os arianos fizeram, como uma espécie de demi-deus situado numa região sombria intermediária entre a humanidade e a divindade. A doutrina cristã da nossa salvação exige que sejamos maximalistas. Não devemos pensar nele como "metade e metade". Jesus Cristo não é cinquenta por cento Deus e cinquenta por cento homem, mas cem por cento Deus e cem por cento homem. Na frase epigramática de São Leão Magno, ele é totus in suis, totus in nostris, "completo no que é dele, completo no que é nosso".

Complete no que é dele: Jesus Cristo é a nossa janela para o reino divino, mostrando-nos o que Deus é. "Deus nunca foi visto por alguém. O Filho unigênito, que está no seio do Pai, esse o revelou." (João 1:18).

Complete no que é nosso: Jesus Cristo é o segundo Adão, mostrando-nos o verdadeiro caráter de nossa personalidade humana. Deus apenas é o homem perfeito.

Quem é Deus? Quem sou eu? Para ambas as perguntas, Jesus Cristo nos dá a resposta.

Salvação como Compartilhamento 

A mensagem cristã da salvação pode ser resumida em termos de compartilhamento, solidariedade e identificação. A noção de compartilhamento é uma chave tanto para a doutrina de Deus na Trindade quanto para a doutrina de Deus feito homem. A doutrina da Trindade afirma que, assim como o homem é autenticamente pessoal somente quando ele compartilha com os outros, da mesma forma Deus não é uma pessoa apenas, mas três pessoas que compartilham a vida uns dos outros em perfeito amor. A Encarnação igualmente é uma doutrina de compartilhamento ou participação. Cristo compartilha ao máximo no que somos, e assim ele nos permite compartilhar no que ele é, na sua vida e glória divina. Ele se tornou o que somos, de modo a tornar-nos o que ele é.

São Paulo expressa isso metaforicamente em termos de riqueza e pobreza: "Pois vocês conhecem a graça de nosso Senhor Jesus Cristo que, sendo rico, se fez pobre por amor de vocês, para que por meio de sua pobreza vocês se tornassem ricos." (2 Coríntios 8 : 9). As riquezas de Cristo são a sua glória eterna; a pobreza de Cristo é sua autoidentificação completa com nossa condição humana caída. Nas palavras de um hino de Natal ortodoxo, ‘Compartilhando totalmente em nossa pobreza, fizeste divina a nossa natureza terrena pela tua união com ela e participação na mesma.’ Cristo compartilha em nossa morte e compartilhamos sua vida; Ele "se esvazia e nós somos exaltados" (Filipenses 2: 5-9). A descida de Deus possibilita a ascensão do homem. São Máximo, o Confessor, escreve: "Inefavelmente o infinito se limita, enquanto o finito se expande para a medida do infinito".

Como Cristo disse na Última Ceia: "E eu dei-lhes a glória que a mim me deste, para que sejam um, como nós somos um. 23 Eu neles, e tu em mim, para que eles sejam perfeitos em unidade" (João 17: 22-23). Cristo nos permite compartilhar a glória divina do Pai. Ele é o vínculo e o ponto de encontro: porque ele é homem, ele é um conosco; porque ele é Deus, ele é um com o Pai. Assim, através dele e nele, somos um com Deus, e a glória do Pai se torna a nossa glória. A Encarnação de Deus abre o caminho para a deificação do homem. Ser deificado é, mais especificamente, ser "cristificado": a semelhança divina que somos chamados a alcançar é a semelhança de Cristo. É através de Jesus, o Deus-homem, que nós, homens, somos "endeusados", "divinizados", feitos "participantes na natureza divina" (2 Pedro 1: 4). Ao assumir a nossa humanidade, Cristo, que é filho de Deus por natureza, nos fez filhos de Deus pela graça. Nele, somos "adotados" por Deus Pai, tornando-nos filhos-no-Filho.

Essa noção de salvação como compartilhamento implica duas coisas em particular sobre a Encarnação. Primeiro, implica que Cristo não tomou apenas um corpo humano como o nosso, mas também um espírito humano, mente e alma como a nossa. O pecado, como vimos, tem sua fonte não de baixo, mas de cima; não é físico em sua origem, mas espiritual. O aspecto do homem, portanto, que exige ser redimido não é primariamente seu corpo, mas sua vontade e seu centro de escolha moral. Se Cristo não tivesse uma mente humana, isso prejudicaria fatalmente o segundo princípio da salvação, que a salvação divina deve atingir ao ponto da necessidade humana.

A importância desse princípio reafirmou-se durante a segunda metade do século IV, quando Apollinarius avançou a teoria - pela qual ele foi rapidamente condenado como herege - que na Encarnação Cristo tomou apenas um corpo humano, mas nenhum intelecto humano ou alma racional. A isto São Gregório, o Teólogo respondeu: "O que não foi assumido não foi curado". Cristo, isto é, nos salva tornando-se o que somos; ele nos cura tomando nossa humanidade fragmentada em si mesmo, "assumindo-a" como sua, entrando em nossa experiência humana e conhecendo-a de dentro, como sendo ele mesmo um de nós. Mas, se o seu compartilhamento de nossa humanidade tivesse sido de alguma forma incompleto, a salvação do homem também seria incompleta. Se acreditarmos que Cristo nos trouxe uma salvação total, segue-se que ele assumiu tudo.

Em segundo lugar, essa noção de salvação como compartilhamento implica - embora muitos tenham relutado em dizer isso abertamente - que Cristo assumiu não só a natureza não-caída, mas a natureza humana caída. Como a Epístola aos Hebreus insiste (e em todo o Novo Testamento não há texto cristológico mais importante do que esse): "Porque não temos um sumo sacerdote que não possa compadecer-se das nossas fraquezas; porém, um que, como nós, em tudo foi tentado, mas sem pecado."(4:15). Cristo vive sua vida na Terra sob as condições da queda. Ele mesmo não é uma pessoa pecadora, mas em sua solidariedade com o homem caído, ele aceita plenamente as consequências do pecado de Adão. Ele aceita o máximo. não só as conseqüências físicas, como o cansaço, a dor corporal e, eventualmente, a separação do corpo e da alma na morte. Ele aceita também as consequências morais, a solidão, a alienação, o conflito interno. Pode parecer uma coisa ousada atribuir tudo isso ao Deus vivo, mas uma doutrina consistente da Encarnação não exige nada menos. Se Cristo tivesse meramente assumido a natureza humana não-caída, vivendo sua vida terrena na situação de Adão no Paraíso, então ele não teria se compadecido das nossas fraquezas, nem teria sido tentado em tudo exatamente como nós somos. E nesse caso ele não seria nosso Salvador.

São Paulo chega a escrever: "Deus tornou pecado por nós aquele que não tinha pecado" (2 Coríntios 5:21). Não devemos pensar aqui somente em termos de uma transação jurídica, pela qual Cristo, ele mesmo sem culpa, de alguma forma tem nossa culpa "imputada" a ele de maneira externa.  Muito mais do que isso está envolvido. Cristo nos salva experimentando de dentro, como um de nós, tudo o que sofremos interiormente através da vida em um mundo pecaminoso.

Por que um Nascimento Virginal?

No Novo Testamento é claramente afirmado que a Mãe de Jesus Cristo era virgem (Mateus 1:18, 23, 25). Nosso Senhor tem um Pai eterno nos céus, mas nenhum pai na terra. Ele foi gerado fora do tempo do Pai sem uma mãe, e foi gerado dentro do tempo de sua mãe sem um pai. Essa crença no Nascimento Virginal não prejudica, de maneira alguma, a plenitude da humanidade de Cristo. Embora a Mãe fosse virgem, ainda assim houve um verdadeiro nascimento humano de um bebê genuinamente humano.

Porém, perguntamos, por que seu nascimento como homem teve que tomar essa forma especial? A isto, pode-se responder que a virgindade da Mãe serve como um "sinal" da singularidade do filho.  Isso é feito de três maneiras intimamente conectadas. Primeiro, o fato de Cristo não ter um pai terreno significa que ele aponta sempre além de sua situação no espaço e no tempo, para sua origem celestial e eterna. O filho de Maria é verdadeiramente homem, mas ele não é apenas homem; ele está dentro da história, mas também acima da história. Seu nascimento de uma virgem enfatiza que, enquanto imanente, ele também é transcendente; embora completamente homem, ele também é Deus perfeito.

Em segundo lugar, o fato de que a Mãe de Cristo era virgem indica que seu nascimento deve ser atribuído de maneira única à iniciativa divina. Embora ele seja plenamente humano, seu nascimento não foi o resultado da união sexual entre homem e mulher, mas foi de uma maneira especial o trabalho direto de Deus.

Em terceiro lugar, o nascimento de Cristo de uma virgem acentua que a Encarnação não envolveu o surgimento de uma nova pessoa. Quando uma criança nasce de dois pais humanos de maneira comum, uma nova pessoa começa a existir. Mas a pessoa do Cristo encarnado não é senão a segunda pessoa da Santíssima Trindade. No nascimento de Cristo, portanto, nenhuma pessoa nova surgiu, mas a pessoa preexistente do Filho de Deus agora passa a viver de acordo com um modo de ser humano e divino. Assim, o nascimento virginal reflete a eterna pré-existência de Cristo.

Porque a pessoa de Cristo encarnado é a mesma que a pessoa do Logos, a Virgem Maria pode justamente ter o título de Theotokos, 'Deipara'. Ela é mãe, não de um filho humano unido ao Filho divino, mas de um filho humano que é o Filho unigênito de Deus. O filho de Maria é a mesma pessoa que o Filho divino de Deus; e assim, em virtude da encarnação, Maria é, verdadeiramente, a "Mãe de Deus".

A Ortodoxia, embora tenha em alta honra o papel da Santíssima Virgem como Mãe de Cristo, não vê necessidade de qualquer dogma da 'Imaculada Conceição'. Conforme definido pela Igreja Católica Romana em 1854, esta doutrina afirma que Maria, "desde o primeiro momento de sua concepção" por sua mãe, Santa Ana, foi isenta de "toda mancha da culpa original". Deve-se ter dois pontos em mente aqui.  Primeiro, como já observamos, a Ortodoxia não encara a queda nos termos agostinianos, como uma mancha de culpa herdada. Se nós ortodoxos tivéssemos aceitado a visão latina da culpa original, poderíamos ter sentido a necessidade de afirmar uma doutrina da Imaculada Conceição. Tal como é, nossos termos de referência são diferentes; o dogma latino parece-nos não propriamente incorreto, mas supérfluo. Em segundo lugar, para a ortodoxia, a Virgem Maria constitui, juntamente com São João Batista, a coroa e a culminação da santidade do Antigo Testamento. Ela é uma figura "vínculo": o último e maior dos justos homens e mulheres da Antiga Aliança, ela é ao mesmo tempo o coração escondido da Igreja Apostólica (ver Atos 1:14). Mas a doutrina da Imaculada Conceição parece-nos tirar a Virgem Maria da Antiga Aliança e colocá-la, por antecipação, inteiramente na Nova. No ensinamento latino, ela já não mais está em pé de igualdade com os outros santos do Antigo Testamento, e, por isso, seu papel como "vínculo" é enfraquecido.

Embora não aceite a doutrina latina da Imaculada Conceição, a ortodoxia em seu culto litúrgico aborda a Mãe de Deus como "impecável" (achrantos), "toda-santa" (panagia), "completamente sem mácula" (panamomos). Nós, ortodoxos, acreditamos que depois de sua morte, ela foi elevada ao céu, onde agora habita - com seu corpo, bem como a sua alma - na glória eterna com seu Filho. Ela é para nós "a alegria de toda a criação" (Liturgia de São Basílio), "flor da raça humana e portão do céu" (Dogmatikon em Tom Um), "tesouro precioso do mundo inteiro" (São Cirilo de Alexandria). E com São Ephrem, o Sírio, dizemos:

Só tu, ó Jesus, com a tua mãe, é belo em todos os sentidos;

Pois não há mácula em ti, meu Senhor, e nenhuma mácula em tua mãe.

A partir disto, pode-se ver quão elevada é a honra que, nós, ortodoxos atribuímos à Santa Virgem em nossa teologia e oração. Ela é para nós a oferta suprema feita pela raça humana a Deus. Nas palavras de um hino de Natal:

O que vamos oferecer-te, ó Cristo,

Tu, que, por nossa causa, apareceu na terra como homem?

Cada criatura feita por ti ti oferece graças.

Os anjos te oferecem um hino; os céus, uma estrela;

Os magos, presentes; os pastores, a admiração deles;

A terra, a sua caverna; o deserto, uma manjedoura;

E nós oferecemos-lhe - uma Mãe Virgem.

Obediente até à Morte

A Encarnação de Cristo já é um ato de salvação. Ao assumir nossa humanidade caída em si mesmo, Cristo restaura e, nas palavras de outro hino de Natal, "eleva a imagem caída". Mas nesse caso, por que era necessária uma morte na Cruz? Não era suficiente para um da Trindade viver como um homem na Terra, pensar, sentir e ter vontade como um homem, sem ter que morrer também como homem?

Em um mundo não-caído, a Encarnação de Cristo teria sido a expressão perfeita do amor transbordante de Deus. Mas em um mundo caído e pecaminoso, seu amor teve que ir ainda mais longe. Por causa da trágica presença do pecado e do mal, a obra da restauração do homem revelou-se infinitamente onerosa. Era necessário um ato sacrificial de cura, um sacrifício como, por exemplo, apenas um Deus crucificado e que sofre poderia oferecer. 

A Encarnação, dissemos anteriormente, é um ato de identificação e compartilhamento. Deus nos salva identificando-se conosco, conhecendo nossa experiência humana por dentro. A Cruz significa, da maneira mais severa e firme, que este ato de compartilhar é levado aos limites máximos. Deus encarnado entra em toda a nossa experiência. Jesus Cristo, nosso companheiro, compartilha não apenas na plenitude da vida humana, mas também na plenitude da morte humana. 'Verdadeiramente ele tomou sobre si as nossas enfermidades, e as nossas dores levou sobre si'  (Isaías 53: 4) - todas nossas enfermidades e dores. "O que não foi assumido, não foi curado.": mas Cristo, nosso curador, assumiu em si mesmo tudo, até a morte.

A morte tem um aspecto físico e espiritual, e dos dois é o espiritual o mais terrível. A morte física é a separação do corpo do homem de sua alma; a morte espiritual, a separação da alma do homem de Deus. Quando dizemos que Cristo tornou-se "obediente até à morte" (Filipenses 2: 8), não devemos limitar essas palavras apenas à morte física. Não devemos pensar apenas nos sofrimentos corporais que Cristo sofreu em sua paixão - a flagelação, o cambalear sob o peso da cruz, os pregos, a sede e o calor, o tormento de estar pendurado, esticado na madeira. O verdadeiro significado da Paixão deve ser encontrado, não só nestes, mas muito mais em seus sofrimentos espirituais - em seu senso de fracasso, isolamento e solidão total, na dor do amor oferecido, mas rejeitado.

Os Evangelhos são compreensivelmente reservados ao falar sobre esse sofrimento interno, mas eles nos fornecem certos vislumbres. Primeiro, há a Agonia de Cristo no jardim de Getsêmani, quando ele está sobrecarregado pelo horror e consternação, quando reza em angústia ao Pai: "Se for possível, afasta de mim este cálice" (Mateus 26:39) , e quando seu suor cai no chão "como grandes gotas de sangue" (Lucas 22:44). Getsêmani, como insistia o Metropolita Antônio de Kiev, fornece a chave para toda a nossa doutrina da Expiação. Cristo é confrontado com uma escolha. Sob nenhuma compulsão para morrer, livremente escolhe fazê-lo; e por este ato de auto-oferta voluntária ele transforma o que teria sido uma violência arbitrária, um assassinato judicial, em um sacrifício redentor. Mas este ato de livre escolha é imensamente difícil. Resolvendo avançar para a prisão e a crucificação, Jesus experimenta, nas palavras de William Law, "os terrores angustiantes de uma alma perdida ... a realidade da morte eterna". O peso total deve ser dado às palavras de Cristo em Getsêmani: "A minha alma está cheia de tristeza até a morte" (Mateus 26:38). Neste momento Jesus entra totalmente na experiência da morte espiritual. Ele está neste momento se identificando com todo o desespero e a dor mental da humanidade; e essa identificação é muito mais importante para nós do que sua participação em nossa dor física.

Um segundo vislumbre nos é dado na Crucificação, quando Cristo clama em voz alta: 'Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?' (Mateus 27:46). Mais uma vez, deve-se dar um peso total a estas palavras. Aqui é o ponto extremo da desolação de Cristo, quando ele se sente abandonado não só pelos homens, mas por Deus. Não podemos começar a explicar como é possível alguém que é ele próprio Deus vivo perder a consciência da presença divina.  Mas isso, pelo menos, é evidente. Na paixão de Cristo não há nenhuma encenação, nada é feito para exibição exterior. Cada palavra vinda da cruz significa o que ela diz. E se o clamor 'Meu Deus, meu Deus...' deve significar alguma coisa, deve significar que, neste momento, Jesus está realmente experimentando a morte espiritual da separação de Deus. Ele não só derramou seu sangue por nós, mas, por nossa causa, ele aceita até a perda de Deus. 

"Desceu ao inferno" (Credo dos Apóstolos). Isso significa meramente que Cristo foi pregar aos espíritos que partiram durante o intervalo entre a noite da sexta-feira e a manhã de Páscoa (ver 1 Pet. 3:19)? Certamente, também tem um sentido mais profundo. O inferno é um ponto não no espaço, mas na alma. É o lugar onde Deus não é. (E, no entanto, Deus está em toda parte!) Se Cristo realmente "desceu ao inferno", isso significa que ele desceu nas profundezas da ausência de Deus. Totalmente, sem reservas, identificou-se com a angústia e a alienação de todos os homens. Ele assumiu-as em si mesmo, e assumindo-as, curou-as.  Não havia outro modo de curá-las, exceto tomando-as para si próprio. 

Tal é a mensagem da Cruz para cada um de nós. Por mais que eu tenha que viajar pelo vale da sombra da morte, nunca estou sozinho. Eu tenho um companheiro. E esse companheiro não é apenas um verdadeiro homem como eu sou, mas também Deus verdadeiro do Deus verdadeiro.  No momento da mais profunda humilhação de Cristo na Cruz, ele é o Deus vivo eterno tanto quanto o é em sua Transfiguração em glória sobre o Monte Tabor. Olhando para Cristo crucificado, vejo não só um homem que sofre, mas um Deus que sofre.

Morte como Vitória

A morte de Cristo na Cruz não é um fracasso que, de alguma forma, foi corrigido em seguida por sua Ressurreição. Em si, a morte na cruz é uma vitória. A vitória do que? Só pode haver uma resposta: a vitória do amor que sofre. "O amor é forte como a morte ... Muitas águas não podem apagar este amor" (Cântico dos cânticos 8: 6-7). A Cruz nos mostra um amor que é forte como a morte, um amor que é ainda mais forte.

São João apresenta seu relato da Última Ceia e da Paixão com estas palavras: "tendo amado os seus que estavam no mundo, amou-os até o fim."(13:1). "Até o fim" - o grego diz eis telos, que significa 'até o último', 'até o extremo'. E esta palavra telos é retomada mais tarde na exclamação final proferida por Cristo na Cruz: "Está terminado", tetelestai (João 19:30). Isso deve ser entendido, não como uma exclamação de resignação ou desespero, mas como um grito de vitória: está completo, está realizado, está  cumprido.

O que foi cumprido? Respondemos: a obra do amor que sofre, a vitória do amor sobre o ódio. Cristo, nosso Deus, amou os seus até o extremo. Por causa do amor, ele criou o mundo, por causa do amor, ele nasceu neste mundo como homem, por causa do amor, ele assumiu nossa humanidade fragmentada em si mesmo e e tornou-a sua.  Por causa do amor, ele se identificou com toda a nossa angústia. Por causa do amor, ele se ofereceu como um sacrifício, escolhendo em Getsêmani ir voluntariamente à sua Paixão: "Eu dou a minha vida pelas ovelhas... Ninguém ma tira de mim, mas eu de mim mesmo a dou (João 10:15, 18). Foi um amor voluntário, não uma compulsão exterior, que trouxe Jesus a sua morte. Na sua agonia no jardim e na sua crucificação, as forças das trevas o atacam com toda a sua violência, mas não podem mudar a sua compaixão em ódio; elas não podem impedir que seu amor continue sendo ele mesmo. Seu amor é testado ao máximo, mas não é sobrecarregado. "E a luz resplandece nas trevas, e as trevas não a compreenderam." (João 1:5) À vitória de Cristo sobre a Cruz, podemos aplicar as palavras ditas por um sacerdote russo em sua libertação da prisão: "O sofrimento destruiu todas as coisas. Só uma coisa ficou firme - o amor ".

A Cruz, entendida como vitória, coloca diante de nós o paradoxo da onipotência do amor. Dostoiévski aproxima-se do verdadeiro significado da vitória de Cristo em algumas declarações que ele coloca na boca do Starets Zosima:

Em alguns pensamentos, o homem fica perplexo, sobretudo à vista do pecado humano, e ele se pergunta se deve combatê-lo pela força ou pelo amor humilde. Sempre decida: "Eu vou combatê-lo pelo amor humilde." Se você resolver isso de uma vez por todas, você pode conquistar o mundo inteiro. O amor humilde é uma força terrível: é a mais forte de todas as coisas, e não há nada como ela. 

O amor humilde é uma força terrível: sempre que abandonamos qualquer coisa ou sofremos alguma coisa, não com um sentimento de amargura, de revolta, mas voluntariamente e por amor, isso não nos torna mais fracos, mas mais fortes. Assim, é, sobretudo o caso de Jesus Cristo. "Sua fraqueza era sua força", diz Santo Agostinho. O poder de Deus é mostrado, não tanto na sua criação do mundo, nem em nenhum dos seus milagres, mas sim pelo fato de que, por amor, Deus se esvaziou (Filipenses 2: 7), se derramou em generosa entrega de si, por sua própria escolha livre, consentiu em sofrer e morrer. E este auto-esvaziamento é um self-fulfilment: kenosis é plerosis. Deus nunca é tão forte como quando ele é mais fraco.


O amor e o ódio não são meramente sentimentos subjetivos, afetando o universo interior daqueles que os experimentam, mas são também forças objetivas, alterando o mundo fora de nós mesmos. Ao amar ou odiar outro, faço com que o outro se torne, em certa medida, o que eu vejo nele. Não somente para mim, mas para as vidas de todos ao meu redor, meu amor é criativo, assim como meu ódio é destrutivo. E se isso é verdade para o meu amor, é uma verdade incomparavelmente maior para o amor de Cristo. A vitória de seu amor sofredor sobre a Cruz não apenas me dá um exemplo, mostrando-me o que eu mesmo alcançarei se, pelos meus esforços, imitar ele. Muito mais do que isso, seu amor sofredor tem um efeito criativo sobre mim, transformando meu próprio coração e vontade, liberando-me da escravidão, fazendo-me todo, tornando possível para mim amar de uma maneira que estaria completamente além dos meus poderes se eu não tivesse sido amado primeiro por Ele. Por amor, ele se identificou comigo, sua vitória é minha vitória. E assim a morte de Cristo na Cruz é verdadeiramente - como a Liturgia de São Basílio descreve - uma "morte vivificante".

O sofrimento e a morte de Cristo têm, então, um valor objetivo: ele fez por nós algo que seríamos completamente incapazes de fazer sem ele. Ao mesmo tempo, não devemos dizer que Cristo sofreu "em vez de nós", mas sim que ele sofreu em nosso favor. O Filho de Deus sofreu "até a morte", não para que sejamos isentos do sofrimento, mas que nosso sofrimento seja como o dele. Cristo nos oferece, não é um caminho que contorna o sofrimento, mas um caminho que o atravessa; não uma substituição, mas uma companhia salvífica. 

Tal é o valor da Cruz de Cristo para nós. Tomada em conjunto com a Encarnação e a Transfiguração que a precedem, e com a Ressurreição que a segue - pois todas estas são partes inseparáveis de uma única ação ou "drama" - a Crucificação deve ser entendida como a suprema e perfeita vitória, sacrifício e exemplo. E, em cada caso, a vitória, o sacrifício e o exemplo são aqueles do amor sofredor. Assim, vemos na Cruz:

a perfeita vitória do amor humilde sobre o ódio e o medo;

o sacrifício perfeito ou entrega de si voluntária de compaixão amorosa;

o exemplo perfeito do poder criativo do amor.

Nas palavras de Juliana de Norwich:

Queres tu aprender o teu significado do Senhor nesta coisa? Aprenda bem: o amor era o seu significado. Quem te mostrou? O amor. O que ele te mostrou? O amor. Pelo que ele te mostrou? Pelo amor. Guarda-o e aprenderás e conhecerás mais no mesmo. Mas tu nunca conhecerás nem aprenderás aí outra coisa sem fim. Então disse o nosso bom Senhor Jesus Cristo: Estás satisfeita por eu ter sofrido por você? Eu disse: sim, bom senhor, agradeço-te; Sim, bom Deus, bendito sejas. Então, disse Jesus, nosso amável Senhor: se tu estás satisfeita, me agrada: é uma alegria, uma felicidade, uma satisfação infinita para mim que sofri a Paixão por ti; e se eu pudesse sofrer mais, eu sofreria mais.

Cristo Ressuscitou 

Porque Cristo nosso Deus é homem verdadeiro, ele morreu uma morte plena e genuína na Cruz. Mas porque ele não é apenas homem verdadeiro, mas Deus verdadeiro, porque ele é a própria vida e fonte de vida, essa morte não foi e nem poderia ser a conclusão final.

A Crucificação é, em si, uma vitória; mas na Sexta-Feira Santa a vitória está escondida, ao passo que na Páscoa ela é manifestada. Cristo ressuscita dos mortos e, por sua ressurreição, ele nos livra da ansiedade e do terror: a vitória da cruz é confirmada, o amor é mostrado abertamente como sendo mais forte do que o ódio, e a vida mais forte do que a morte. O próprio Deus morreu e ressuscitou dentre os mortos, e assim não há mais morte: até a morte está cheia de Deus. Porque Cristo ressuscitou, não precisamos mais ter medo de nenhuma força má ou sombria no universo. Como proclamamos todos os anos no serviço pascal da meia-noite, nas palavras atribuídas a São João Crisóstomo:

Que ninguém tenha medo da morte, pois a morte do Salvador nos libertou.

Cristo ressuscitou e os demônios caíram.

Cristo ressuscitou e os anjos se regozijam.

Aqui, como em outros lugares, a ortodoxia é maximalista. Repetimos com São Paulo: "Se Cristo não ressuscitou, logo é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé". (1 Coríntios 15:14). Como devemos continuar a ser cristãos, se acreditarmos que o cristianismo seja fundado em uma ilusão? Assim como não é adequado tratar Cristo apenas como profeta ou mestre de justiça e retidão, e não como Deus encarnado; portanto, não é suficiente explicar a Ressurreição dizendo que o "espírito" de Cristo viveu de algum modo entre os seus discípulos. Aquele que não é "Deus verdadeiro do Deus verdadeiro", que não conquistou a morte pela morte e ressuscitou dos mortos, não pode ser nossa salvação e nossa esperança. Nós, ortodoxos, acreditamos que houve uma ressurreição genuína dentre os mortos, no sentido de que o corpo humano de Cristo reuniu-se à sua alma humana e que o túmulo estava vazio. Para nós ortodoxos, quando nos envolvemos em diálogos "ecumênicos", uma das divisões mais significativas entre os cristãos contemporâneos é aquela entre aqueles que acreditam na ressurreição e aqueles que não o fazem.

"Vocês são testemunhas dessas coisas" (Lucas 24:48). O Cristo ressuscitado nos envia ao mundo para compartilhar com os outros a "grande alegria" de sua Ressurreição. Pe. Alexander Schmemann escreve:

Desde o início, o cristianismo foi a proclamação da alegria, da única alegria possível na terra ... Sem a proclamação dessa alegria, o cristianismo é incompreensível. É apenas como alegria que a Igreja foi vitoriosa no mundo e perdeu o mundo quando perdeu a alegria, quando deixou de ser testemunha disso. De todas as acusações contra os cristãos, o mais terrível foi proferida por Nietzsche quando ele disse que os cristãos não tinham alegria ... "Pois eis que te trago notícias de grande alegria" - começa assim o Evangelho e seu fim é: "Então eles o adoraram e voltaram para Jerusalém com grande alegria... "(Lucas 2: 10; 24: 52). E devemos recuperar o significado dessa grande alegria.



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