terça-feira, 26 de setembro de 2017

Alguns traços característicos da Ortodoxia (Pe. Dumitru Staniloae)

    É um fato que a Ortodoxia é idêntica em sua fé e culto com o conteúdo da fé e culto do cristianismo primitivo. No entanto, o fato extraordinário e absolutamente genuíno é que, sendo essencialmente a extensão da fé, culto e espiritualidade da Igreja indivisa dos primeiros séculos, a Ortodoxia ainda responde perfeitamente às necessidades espirituais dos povos atuais que a preservaram. 

     A Ortodoxia não mudou essencialmente durante os períodos históricos experimentados pela humanidade ao longo de dois mil anos. É devido a este fato que a Ortodoxia não se misturou durante esses séculos com qualquer coisa que exija a eliminação em nossos tempos. A Ortodoxia também não incorporou, como característica essencial da sua existência, algum elemento temporário de um período histórico ou outro e, portanto, não possui a necessidade de se livrar disso hoje em dia. A Ortodoxia não se "medievalizou", (moyenâgée), como aconteceu com o Catolicismo Romano; nem é um subproduto do protesto renascentista como é o caso do Protestantismo; e nem sequer procura, mesmo hoje, reformar-se essencialmente para acomodar-se aos nossos tempos por meio da secularização.  

    A Ortodoxia não introduziu no santuário interior, comprovado por sua simples expressão de fé, inovações sutis e complicadas de certos maîtres, dominados pelo desejo de certa doçura oferecida pelo exercício intelectual; assim, a Ortodoxia não deixou de lado o mistério insondável e profundo da relação entre homem e Deus.

   A Ortodoxia nunca misturou os padrões supérfluos do pensamento humano com a essência simples, misteriosa, majestosa, permanentemente e inevitavelmente vivida dos dados fundamentais do mistério da salvação.

   Pode-se dizer que a Ortodoxia preservou um caráter popular, pois as pessoas em sua simplicidade permanecem pouco sensíveis às sucessivas ideologias dos períodos históricos, mas permanecem abertas aos problemas reais e essenciais de todos os tempos.

   A Ortodoxia não precisa hoje de secularização, a fim de encontrar o homem contemporâneo. Pelo contrário, sabe bem que, ao se secularizar, perderia de vista o homem e não responderia mais aos problemas fundamentais da salvação que continuam queimando sob as cinzas nas profundezas do ser do homem.

   Certamente, às vezes, a Ortodoxia se adaptou aos tempos. Sempre ajudou os fiéis leais em todas as circunstâncias e em seus esforços e lutas para preservar sua existência, libertar-se da dominação estrangeira. A Igreja Ortodoxa da Romênia, tendo introduzido a língua nacional (vernacular) nos serviços da igreja há mais de três séculos, ajudou a criar uma língua literária romena.

    Mas a adaptação da Ortodoxia aos tempos não significou uma mudança essencial dela como um mistério, ou uma substituição de seu mistério por uma ideologia determinada por uma época ou outra. Sempre manteve o mesmo mistério dos dados simples, fundamentais e necessários da vida religiosa.

   A Ortodoxia sempre fez e ainda faz assim hoje. A este respeito, comunica aos fiéis Cristo que é "o mesmo ontem e hoje e para sempre" (Heb. 13,8). É Jesus Cristo quem, sendo o mesmo para sempre, responde de maneira perfeita hoje como Ele fez ontem.

    A Lei Antiga estava sujeita a alterações uma vez que sua revelação sempre crescia e, por isso, continuava ampliando seu significado antes de ser, eventualmente, substituída por Cristo. A anulação da Lei ocorreu devido a imperfeição desta última como um mistério da salvação: "Porque o precedente mandamento é abrogado por causa da sua fraqueza e inutilidade (Pois a lei nenhuma coisa aperfeiçoou)" (Heb. 7:18,19)

    Todas as ideologias humanas passam pelo mesmo processo. Cada uma morre e outra toma seu lugar como "os sacerdotes que eram em grande número" (Heb.7,23). "Mas este, porque permanece eternamente, tem um sacerdócio perpétuo. Portanto, pode também salvar perfeitamente os que por Ele se chegam a Deus, vivendo sempre para interceder por eles." (Heb. 7:24,25)

      A Ortodoxia entendeu que não é necessário mudar a dignidade perfeita do Alto Sacerdócio de Cristo, nem acrescentar ou suprimir qualquer coisa, mas sim que sua única tarefa é enfatizar uma e outra vez a sua dignidade em sua plenitude. O ditado "Ecclesia semper reformanda" não se aplica na Ortodoxia, uma vez que a Ortodoxia comunica Cristo de forma integral, Aquele que é "semper conformis cum omni tempore"
.

     O mistério da salvação sempre foi vivido em sua plenitude na Ortodoxia. Os poucos novos termos adotados pelos Concílios Ecumênicos tiveram o propósito não de reduzir o mistério a uma definição racional, mas protegê-lo contra as tentativas de racionalização e limitação, ou de fazê-lo desaparecer.

      Esses termos foram feitos para proteger permanentemente o fato misterioso e salutar anunciado no Novo Testamento que somos salvos pelo Filho de Deus que, para este fim, se fez homem e permanece eternamente o mesmo Deus e homem; também que somos salvos por Deus que, ao mesmo tempo, é homem perfeito e, como tal, é totalmente acessível a nós; somos salvos por um homem que, sendo completamente acessível a nós como homem, também é totalmente acessível a nós como Deus, ou melhor ainda, como a fonte infinita de vida.

        Os Concílios Ecumênicos têm protegido o mistério da nossa salvação, segundo o qual a fonte de vida infinita tornou-se acessível, na medida em que a pessoa humana tornou-se acessível a nós como nosso próximo. Os Concílios estabeleceram uma linha entre o panteísmo helenista sob disfarce de gnose, e Deus enquanto Pessoa em comunhão, e, assim, confirmaram o valor eterno do homem enquanto Pessoa.

        Os Concílios resistiram à tentação racionalista de anular o significado do mistério da salvação e, desse modo, fazer a própria salvação ilusória transformando Deus em uma essência (ousia) submetida a leis racionais, prevendo o desaparecimento do homem naquela essência. O mistério da salvação só pode ser paradoxal e a Ortodoxia protegeu o caráter paradoxal do mistério cristão contra sua desintegração por meio de proposições racionais unilaterais.

     Uma objeção atual feita a Ortodoxia é que, assim como o cristianismo ocidental se adaptou à mentalidade medieval e renascentista, a Ortodoxia se adaptou à mentalidade bizantina e enterrou sua semente viva do mistério cristão sob uma pilha de esplendor formalista e aristocrático que já não corresponde ao nosso tempo.

      Não negamos que a Ortodoxia tenha experimentado uma influência bizantina. Mas essa influência não tocou na essência do mistério cristão. Pelo contrário, o mistério permaneceu vivo durante o período bizantino, e pode-se dizer que o pensamento bizantino não gerou a espiritualidade cristã desse período, mas, inversamente, a vida cristã original gerou o pensamento e a arte bizantina.

      O que tem sido considerado uma herança bizantina na vida da Igreja Ortodoxa Oriental é, em particular, a multiplicidade de símbolos que expressam a fé cristã e o seu ser vivido no culto, na arte e na vida. Mas o impacto e a influência bizantina apenas promoveram o desenvolvimento de um simbolismo inerente à expressão do mistério cristão.

      As definições intelectuais e as exposições doutrinárias pelas quais ocidente tentou (e ainda tenta) substituir a exposição do mistério por meio de símbolos têm seu ponto de origem na convicção de que esse mistério pode ser expresso plenamente em palavras humanas.

       Na realidade, este mistério é reduzido ou mesmo diluído onde quer que se deseje encapsulá-lo no sentido estrito de palavras e definições intelectuais. A plenitude paradoxal e apofática do mistério da salvação é melhor transmitida por meio de símbolos.

      Falar sobre a Cruz e a Ressurreição de forma geral, contemplá-los em ícones, expressá-los em gestos simbólicos e litúrgicos expõe, de maneira mais realista e existencial, o mistério da salvação do que a teoria da satisfação de Anselmo ou a teoria penal dos protestantes que são capazes de expressar um só aspecto do incompreensível mistério da salvação.

     Se a Ortodoxia precisa acomodar-se às necessidades do homem contemporâneo, isso não pode consistir em uma redução total da expressão simbólica, mas sim uma simplificação dessa expressão a fim de transmitir de forma clara os grandes símbolos do mistério cristão que correspondem as grandes, simples, permanentes, evidências e necessidades espirituais do homem. A saber: Deus está próximo de nós como pessoa humana; a ressurreição através da Cruz; a glória através da humildade; poder para conter-se e paciência; liberdade através da graça; valor desta vida através da fé na vida futura; individualidade através da comunhão; desenvolvimento da própria personalidade através da auto-negação, e assim por diante.




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