Para Agostinho - e pelo menos para uma parte da tradição ocidental que seguiu-o - as agonias dos condenados contribuíam para a felicidade dos eleitos. Deve-se ressaltar que essas idéias de Agostinho estavam entre as causas declaradas do ateísmo de um homem como Camus. Assim, a religião da vitória sobre o inferno tornou-se, em algum momento, uma religião do inferno ... A doutrina do julgamento pessoal, com o inferno como possibilidade, sem a chance de perdão no momento da morte, tomou forma no Ocidente no século XIV. A Reforma pôs fim às orações pelos mortos... Não é o ateísta frequentemente considerado como um libertador através do parricídio, como alguém que destrói o ídolo daquela ideia infantil de Deus que Freud denunciou com o nome de "pai sádico"?
-Olivier Clement, Teologia após a "morte de Deus" [*]
A doutrina da Expiação de Anselmo de Cantuária tem sido considerada como uma chave para compreender a rejeição da verdade salvífica do cristianismo por um número incalculável de pessoas no último milênio. Tais pessoas rejeitam a representação de Anselmo de um Deus irado que precisa ser apaziguado; que declara as pessoas culpadas ou não. A doutrina moderna Anselmiana da Expiação reduz o poderoso aspecto transformador do Evangelho a um conceito jurídico, drenado de sua vida. O objetivo deste capítulo será revelar e discutir brevemente alguns dos fundamentos da doutrina Anselmiana da Expiação: por que prejudicam a Nova Vida em Cristo e, em contraste, mostrar que a plenitude da mensagem evangélica é encontrada no contexto bíblico-patrístico da Igreja Ortodoxa. Esta é uma investigação indispensável se desejamos a salvação.
Um dos maiores milagres para as pessoas dos tempos antigos foi conhecer a mensagem do Evangelho: que o Deus Verdadeiro e Vivo era amor; um Deus pessoal e vivo que enviou Seu Filho unigênito, "não para que condenasse o mundo, mas para que o mundo fosse salvo por ele" (João 3:17). Os deuses dos tempos antigos eram afastados (por exemplo, o deus grego Zeus), assassinos (a deusa Hindu da morte, Kali), e até mesmo exigiam crianças como sacrifícios (o deus tribal amonita, Moloch, cf. Levítico 20: 2). O conceito de que o Deus cristão era um Deus pessoal de misericórdia, amor e perdão, atraiu grandes números; muitos até mesmo voluntariamente enfrentaram a possibilidade do martírio por confessar sua fé.
Cristo trouxe a Vida para nós que estávamos mortos em Adão, porque Ele mesmo é "o Caminho, a Verdade e a Vida" (João 14: 6). Este é o fundamento que os primeiros cristãos, de São Paulo, o Apóstolo em diante entenderam como a chave para a salvação: "E, visto como os filhos participam da carne e do sangue, também ele participou das mesmas coisas, para que pela morte aniquilasse o que tinha o império da morte, isto é, o diabo... aboliu a morte, e trouxe à luz a vida e a incorrupção pelo evangelho." (Heb. 2:14; II Tim. 1:10)
Nos primeiros mil anos de cristianismo, a mensagem evangélica não era entendida a partir da mentalidade escolástica agora comum de Anselmo. Hoje, as ideias de Anselmo formam, infelizmente, a perspectiva mais dominante do cristianismo no mundo ocidental, tanto protestante como católica romana. Os primeiros cristãos, assim como os cristãos ortodoxos de hoje, entenderam que Cristo nos liberta do pecado destruindo sua raiz, a morte. Aqueles que se submeteram a Cristo não são mais escravos do pecado, "pois não estais debaixo da lei, mas debaixo da graça." (Romanos 6:14). Pois a " lei do Espírito de vida, em Cristo Jesus, me livrou da lei do pecado e da morte" (Romanos 8: 2).
Nos primeiros mil anos de cristianismo, a mensagem evangélica não era entendida a partir da mentalidade escolástica agora comum de Anselmo. Hoje, as ideias de Anselmo formam, infelizmente, a perspectiva mais dominante do cristianismo no mundo ocidental, tanto protestante como católica romana. Os primeiros cristãos, assim como os cristãos ortodoxos de hoje, entenderam que Cristo nos liberta do pecado destruindo sua raiz, a morte. Aqueles que se submeteram a Cristo não são mais escravos do pecado, "pois não estais debaixo da lei, mas debaixo da graça." (Romanos 6:14). Pois a " lei do Espírito de vida, em Cristo Jesus, me livrou da lei do pecado e da morte" (Romanos 8: 2).
Anselmo, o arcebispo católico romano de Cantuária no século XI (1033-1109), foi pai da teologia e da filosofia escolástica moderna. Ele tem sido considerado por alguns o primeiro a desenvolver uma doutrina da Expiação à parte da herança bíblico-patristica da Igreja. Ajustando sua teologia para se adequar à compreensão da sociedade de seu tempo, Anselmo utiliza uma ética feudal para discernir racionalmente o profundo e incomensurável mistério de Deus.
Anselmo pode ser visto como uma ponte entre Santo Agostinho de Hipona e Tomás de Aquino. Ao usar a filosofia clássica e a lógica como instrumentos de descoberta (em vez de um meio de interpretação), as doutrinas de Anselmo sujeitaram a verdade infinita de Deus a um intelecto finito criado. Em contraste, as Escrituras são bem claras que a revelação de Deus "não é segundo os homens. Porque não o recebi, nem aprendi de homem algum, mas pela revelação de Jesus Cristo." (Gálatas 1: 11-12)
A atual posição católica romana, originária de Anselmo, afirma oficialmente que "a justificação nos foi merecida pela paixão de Cristo, que se ofereceu na cruz como vítima viva ... cujo sangue tornou-se instrumento de expiação pelos pecados de todos os homens ". Então, questiona-se: como essa expiação ocorre e a quem é oferecida? Os Ortodoxos também vêem Cristo como aquele que deu Sua vida como um resgate por muitos.
Cristo é o resgate que foi pago para a morte, como disse São Atanásio, o Grande (século IV), à luz de Oséias 13:14: "O resgate foi oferecido à morte em nome de todos, para que, por tal, Ele mais uma vez abriu o caminho para os ceús." Em claro contraste, a doutrina católica romana Anselmiana afirma que a dívida foi paga a Deus Pai para satisfazer Sua ira infinita, um subproduto da ofensa à Sua justiça e honra. Esta doutrina da Expiação também afirma que o pecado é uma afronta à Divindade, para a qual o mero homem não pode reparar; considera-se o pecado como uma transgressão no sentido jurídico, em vez da perspectiva Ortodoxa de uma doença do coração e da vontade. Nesta luz, a suposição de Anselmo é que uma "honra divina" foi ferida e precisa de "satisfação". Isso requer uma transação legal pela qual Cristo paga ao Pai com Seu próprio sangue a dívida incorrida pelo pecado do homem. A ressurreição de Cristo não ocupa um lugar central na redenção do homem.
Se Deus, então, é infinitamente ofendido por nosso pecado e, portanto, precisa de alguma "satisfação" infinita, muitos podem justamente (e infelizmente) equiparar este Deus com uma imagem sádica de um pai obrigado pela honra a infligir punição. Assim, Deus é sujeito à justiça. Ao submeter Deus a esta lei de necessidade e atribuir a Ele características humanas como vingança e raiva, fazemos parecer que é Deus quem precisa de cura e não o homem.
No entanto, Deus nunca muda, pois não é Deus que é inimigo com o homem; mas o homem que está em inimizade com Deus. O fundamento de uma compreensão adequada da salvação é que Deus não muda: "Jesus Cristo é o mesmo ontem, hoje e sempre" (Hb 13: 8). Assim, a abordagem Ortodoxa procura curar o homem, e não Deus, reconhecendo o pecado como uma recusa do amor de Deus, a entrada da morte e a desconstrução da alma.
Os Ortodoxos vêem a queda do homem desde uma perspectiva médica: como uma doença do coração que traz a morte cortando a comunhão com Aquele que é a Vida. A cura holística é assim buscada pelos Ortodoxos com o fim de restaurar a comunhão com Deus. O fiel vence a morte através da participação na Vida de Deus através dos sacramentos e da disciplina ascética. Por outro lado, o entendimento Anselmiano declara essencialmente o homem "não culpado", e o deixa, infelizmente, sem cura e inalterado. Isso distorce a mensagem real da salvação cristã: tornarem-se "participantes da natureza divina" (II Pedro 1: 4).
A formação da doutrina Anselmiana da Expiação é vista pelos comentadores modernos como "uma revolução na teologia", começando "uma nova época na teologia da Expiação". Essa nova doutrina decorreu de vários fatores. Em primeiro lugar, uma influência característica da mentalidade legalista romana é exibida em teólogos ocidentais já tão cedo como Tertuliano, que encoraja e apoia uma conceituação jurídica sobre as verdades da fé. Anselmo tirou de Tertuliano, que vê o pecado do homem como uma perturbação na "ordem divina da justiça" e faz da penitência uma "satisfação para o Senhor".
Outra forte influência sobre Anselmo foi São Agostinho. Anselmo não só utilizou o conceito de "Expiação limitada" de Santo Agostinho, mas também usou seus métodos de experimentação teológica e filosófica. Após a "revolução" de Anselmo e, posteriormente, de Pedro Abelardo na teologia da expiação, a maioria no Ocidente tornou-se mais afastada da experiência Ortodoxa. Assim surgiu uma série de novos e supostos "desenvolvimentos" na teologia de estudiosos católicos e protestantes: expiação vicária, que apazigua a raiva de Deus; os "méritos" de Don Scot para os predestinados; e as indulgências, que aparentemente podem "pagar" à Igreja a taxa pelos pecados dos infratores.
Quatrocentos anos depois de Anselmo, o Concílio Católico Romano de Trento, em resposta à Reforma Protestante, foi obrigado a definir a natureza exata da Expiação de acordo com o novo entendimento de Anselmo. Este Concílio estabeleceu que, no cerne da Expiação Anselmiana, encontrava-se a doutrina de Santo Agostinho sobre o Pecado Original.
A doutrina agostiniana do pecado original, que implica que toda a posteridade de Adão herda a culpa, estabelece certos parâmetros para a doutrina Anselmiana que não existe na mentalidade bíblico-patristica Ortodoxa. Devido a uma tradução deficiente de Romanos 5:12 na Vulgata de São Jerônimo, Santo Agostinho formula a doutrina de que não só todos os homens herdam a mortalidade e a inclinação ao pecado, mas são culpados e legalmente responsáveis perante Deus pelo pecado de Adão. Esta doutrina afeta profundamente a perspectiva de como o homem é salvo e do que ele é salvo. São Agostinho faz uma dupla distinção: uma deficiência moral hereditária (a inclinação ao pecado) e uma responsabilidade legal herdada (culpado diante de Deus pelo pecado de Adão). O Concílio prossegiu anatemizando todos os que se recusaram a aceitar a doutrina do pecado original: isto é, que todos receberam a culpa de Adão por seu pecado pessoal.
Neste sistema, se Cristo pagou a dívida ao Pai, e se a vida sacramental apazigua a ira do Pai, então, não é nenhuma surpresa que o protestantismo se desenvolveu como fez, questionando a necessidade da Igreja? Pode-se dizer que a doutrina de Anselmo torna possível a Reforma Protestante, até mesmo torna-a inevitável. Consequentemente, devemos perguntar: Como, então, o ato salvífico de Cristo se torna efetivo para cada pessoa? E como alguém se liberta da noção agostiniana do pecado original? Para os Reformadores, a justificativa se dava apenas pela fé, sola fide, que confiava no sacrifício vicário de Cristo, à parte da Igreja.
Para os católicos romanos, a justificação veio através do Papa e da Igreja pela graça do santo batismo. A teologia da expiação efetivamente faz da Igreja Católica Romana os meios de uma justificação legal que declara "não culpado" pelos sacramentos, ao invés de um processo que restaurou a "bondade" inata do homem.
A perda da perspectiva patrística significou a perda da experiência plena da Igreja. Sem isso, a teologia católica romana tornou-se muitas vezes um procedimento jurídico estreito, excessivamente focado em apaziguar a justiça de Deus. Este decremento da salvação é reforçado pela concepção não-Ortodoxa da graça de Santo Agostinho. Para Santo Agostinho, parece que o homem nunca pode participar das energias deificantes de Deus e, portanto, o homem e Deus permanecem para sempre externo um ao outro. Em última análise, isso leva à salvação não definida pela comunhão com Deus, mas antes principalmente a uma relação moral e jurídica.
Em contraste, a visão Ortodoxa da justificação é tornar-se fortalecido pela graça para viver segundo a vontade de Deus. Ao viver segundo a vontade de Deus, efetuamos nossa santificação, participando assim na vida de Deus. Ao estar unidos com Aquele que vence a morte, vencemos o pecado e a morte, participando de Sua vitória, tornando-a nossa. Na perspectiva Ortodoxa, o entendimento de Anselmo sobre a ira e a punição de Deus são inexistentes.
A Igreja Ortodoxa ensina que Cristo, por Sua própria Encarnação, tira o pecado do mundo. São Gregório, o Teólogo, diz que a passagem "o Verbo se fez carne" (João 1:14) é equivalente àquela em que se diz que "por nos se fez pecado" (I Coríntios 5:21); não que o Senhor tenha sido transformado nele... como poderia ser? Mas, ao assumi-lo, ele tirou nossos pecados e suportou nossas iniqüidades.
O início da visão Ortodoxa da expiação é a encarnação. O meio deste processo é a Cruz, através da qual Cristo, como São Basílio o Grande explica, "se entregou como um resgate à morte, na qual éramos mantidos cativos, vendidos sob o pecado, [e] descendo pela Cruz para o inferno - para que Ele pudesse preencher todas as coisas com Ele mesmo - Ele nos libertou dos laços da morte". O fim desse processo foi Sua ressurreição no terceiro dia. Através de Sua ascensão, Ele "fez para toda a carne um caminho para a Ressurreição dentre os mortos, já que não era possível que o Autor da Vida fosse vítima da corrupção".
O coração da questão da expiação Ortodoxa é a theosis e a re-criação: "que, na dispensação da plenitude dos tempos, Ele possa reunir em todas as coisas em Cristo, tanto as que estão nos céus como as que estão na terra" (Efésios 1:10). A Boa Nova é que toda a boa criação de Deus é chamada a entrar na Igreja, que é a união com o Deus Triuno. Através da união das naturezas no Deus-homem, nosso Senhor Jesus Cristo, o mundo criado e o Deus incriado estão unidos.
Em conclusão, nosso objetivo não é pecado-redenção (ou seja, a Expiação Anselmiana), mas a deificação: que Cristo possa se formar em nós. Ao participar na Morte e Ressurreição de Cristo na vida sacramental-ascética, nos tornamos membros vivos do Corpo de Cristo neste mundo, libertos da morte, da inclinação ao pecado e da escuridão que vem dela. Sendo curados em nossa vontade, seguindo os mandamentos do Senhor através da ação poderosa do Espírito Santo, o Cristão Ortodoxo é crucificado com Cristo, morrendo para as paixões e prazeres pecaminosos do mundo (do velho homem), tornando-se um participante das energias imortais de Deus através da Igreja. Como Cristo é continuamente formado em nós, nos tornamos pela graça tudo o que Deus é por natureza. Esta é a visão Ortodoxa da Expiação; Esta é a visão Ortodoxa da salvação.
Do livro: Arquimandrita Sergius Bowyer, Acquiring the Mind of Christ: Embracing the Vision of the Orthodox Church
[*] A citação do Olivier Clement foi adicionada pelo tradutor e não consta no original (no livro Acquiring the Mind of Christ).
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