O texto a seguir é um trecho do artigo "Presence, Participation, Performance: The Remembrance of God in the Early Hesychast Fathers" por Vincent Rossi.
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A metafísica sufi, representada por um pensador como Schuon, está fundamentada em uma concepção logicamente hierárquica e essencialista da realidade: Além-Ser, Ser, Existência. Somente o Absoluto, o totalmente não qualificado, a Essência não-manifesta, é Além-Ser. Isto é Aquilo que é "o Um". A Trindade, nesta concepção, não pode representar a Essência totalmente não qualificada. A Trindade está necessariamente no nível do Ser, o princípio igualmente não-manifesto, mas proto-determinado da Existência. Ser é, portanto, o "reino" do Deus "pessoal", que é a primeira determinação do Absoluto, chamado por Schuon de Absoluto relativo. Como as hipóstases da Trindade nesta concepção são determinações do Um, e relativas umas às outras, elas necessariamente não podem estar no nível do Absoluto absoluto, mas devem ser relativas a ele, isto é, à Essência, mas ainda absolutas com respeito ao mundo criado; daí a noção de Schuon de Ser como o Absoluto relativo. Tal abordagem é altamente congenial e talvez até inteiramente representativa da "mais elevada metafísica" dos Sufis, mas é inaceitável para os Hesicastas do Oriente Cristão, cujo próprio entendimento da mais elevada metafísica é paradoxalmente trinitário, hipostático/pessoalista ao invés de logicamente essencialista. Isto explica a crítica implícita de Schuon aos cristãos que são trinitários "extremos". Ele é crítico, não do trinitarismo deles em si, mas da insistência ilógica deles de que a Trindade é a forma mais apropriada de falar do Absoluto ("como se as três dimensões do espaço fossem dispostas em uma única dimensão"), e da insistência deles de que Pessoa/hipóstase em Deus descreve melhor o Incircunscritivel do que uma metafísica essencialista. Esta insistência dos hesicastas cristãos é inexplicável à metafísica logicamente hierárquica dos tradicionalistas sufis, na qual o princípio intelectual da não-contradição lógica é primário; ou isso é explicável nos termos de Schuon apenas como a teimosa insistência dos teólogos "bhakticos" [bhakti] de um "direito divino" à irracionalidade e à ilogicidade. Entre os Hesicastas, entretanto, o princípio revelador do paradoxo e da antinomia é superior ao princípio da não-contradição lógica. Os Hesicastas não ignoravam a natureza paradoxal de suas expressões trinitárias, como até mesmo uma leitura superficial do Corpus Areopagiticum ou das obras de São Máximos o Confessor deve mostrar. Assim, o trinitarismo deles não pode ser caracterizado justamente como "desprovido de penetração metafísica" ou como uma forma de teologia "sentimental" ou "bhaktica" [bhakti], impermeável aos brilhos sutis da luz metafísica. Além disso, em minha leitura dos maiores mestres hesiscastas, santos como Dionísio, o Areopagita, Máximos, o Confessor, ou João de Damasco, a insistência e expressão da unidade divina em seu trinitarismo não parece de forma alguma inferior aos mais radicais dos unitaristas do Islã. Também não se vê em seus escritos (e seria fácil fornecer dezenas de textos mostrando isso) a mínima indicação de que em seu "trinitarismo" eles são culpados do maior dos pecados islâmicos contra a Unidade Divina, associação ou evasiva.
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Conclusão: O caminho para o coração através da recordação de Deus - Presença/Apofásis, Participação/Apatheia, Performance/Agape
Tentemos resumir o que descobrimos até agora sobre a recordação de Deus de acordo com os primeiros mestres do Hesicasmo.
1) A recordação de Deus para os primeiros Hesicastas está intimamente ligada à prática da hesíquia.
2) Hesíquia - a paz e a quietude do coração baseada no retorno imperturbável do nous (o intelecto ou o olho do coração) ao coração causado pela libertação dos poderes da alma em relação às paixões - é o único caminho seguro para alcançar a theosis.
3) O objetivo da recordação de Deus é a theosis (divinização) ou theopoisis (deificação): participação pelo homem na graça incriada de Deus, fundamentada na theoria ou na visão da luz incriada e alcançada através da energia da graça pela operação de Deus e pela cooperação (sinergia) do homem.
4) A recordação de Deus é tanto uma prática como uma experiência. A essência da prática é o método de invocação do santíssimo nome de Jesus. A essência da experiência é a participação na presença divina, que é sinalizada por uma intensificação sem precedentes da energia humana chamada "sofrimento do coração".
5) A recordação de Deus enquanto sofrimento do coração é fundamentada na recordação da morte, que é a experiência consciente da fronteira sempre presente entre nossa mortalidade pecaminosa e a insuportável limpidez da imortal Presença Divina. A atenção à morte é a experiência consciente do pecado, desejo de arrependimento, compunção intensa que leva à concentração dos poderes da alma à contemplação de Deus.
6) A função básica da Oração de Jesus na recordação de Deus é unificar a natureza humana fragmentada pelo pecado, porque Deus, cuja Presença é Unidade perfeita, só pode ser realizado em unidade. Sem a unificação de todos os poderes da alma, racional, apetitivo e irascível, não pode haver verdadeira recordação de Deus, mas apenas ignorância, esquecimento e insensibilidade auto-indulgente.
7) A invocação do Nome de Jesus passa por várias etapas, das quais três são fundamentais: primeiro, a atenção (prosoche), que requer a recitação vocal da oração; depois a oração noética (noera prosauche), na qual a atenção é primeiro internalizada no nous, que então desce ao coração e se torna auto-ativante; e por fim, a encarnação de Jesus no coração, na qual a recordação de Deus se torna a presença incessante de Cristo no coração.
O ato, isto é, o fenômeno, da recordação de Deus, se for genuíno, é um paradoxo caminhando sobre as águas invisíveis de um abismo. Por um lado, a tradição hesicasta insiste na incognoscibilidade radical de Deus. Podemos saber que Deus é, insistem os santos, mas não podemos saber o que Deus é. Por outro lado, os Hesicastas insistem igualmente, como vimos no Tomo Hagiorita, na verdadeira gnose: a verdadeira experiência de Deus no coração. É uma espécie de conhecer o incognoscível através de um conhecimento incognoscível. [...] Enquanto encerramos nosso interrogatório dos primeiros Padres Hesicastas sobre o significado da recordação de Deus, esperamos começar a apreciar que o que eles entendem por recordação envolve algo muito mais profundo e significativo do que o mero pensamento de Deus na mente ou mesmo uma piedosa oração devocional. Para eles, a recordação de Deus é uma experiência plenamente real, de fato, uma experiência transformadora. Se a experiência da recordação de Deus não envolve um confronto transformador e transfigurante real com o fogo da presença Divina, uma consciência ardente de Deus enquanto "fogo consumidor" que efetivamente revela o pecado em toda a sua profundidade na alma enquanto o queima ao curar e transformar o homem interior, então não é realmente a recordação de Deus, mas um estado de esquecimento no qual a alma se entrega à ilusão da atividade religiosa enquanto permanece ignorante de sua própria insensibilidade radical à presença Divina.
Nota do blog - leituras recomendadas:
- Para uma crítica ao conceito perenialista de uma Tradição Primordial por Philip Sherrard veja:
http://skemmata.blogspot.com/2021/05/o-erro-do-conceito-perenialista-de-uma.html
- Para um comentário geral sobre a incompatibilidade do Perenialismo e o Cristianismo Ortodoxo veja: "Considerações ortodoxas sobre o perenialismo" http://avidaintelectual.blogspot.com/2010/04/consideracoes-ortodoxas-sobre-o.html
- Para uma crítica feita pelo Philip Sherrard mais aprofundada da relação entre lógica e metafísica na obra de Guénon veja seu ensaio "A metafísica da lógica" (disponível em português em http://avidaintelectual.blogspot.com/2015/12/a-metafisica-da-logica.html )
- Para uma crítica a tese da "Unidade Transcendente das Religiões" veja o artigo "The Problematic of the Unity of Religions" pelo teólogo Católico Romano Jean Borella (trecho disponível em português em http://wearetime.blogspot.com/2017/06/o-problema-da-unidade-das-religioes.html )
- Para um comentário sobre René Guénon escrito pelo Pe. Serafim Rose em uma de suas cartas veja http://aenergeia.blogspot.com/2015/04/padre-serafim-rose-e-rene-guenon.html
- Para um comentário sobre a teosofia e o ocultismo escrito pelo Pe. Sergius Bulgakov veja http://skemmata.blogspot.com/2016/06/os-enganos-do-ocultismo-e-teosofia.html
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