As gerações passadas eram mais modestas em sua auto-avaliação no que diz respeito à sua capacidade de teologizar. Enquanto o típico Ortodoxo não tenta discutir a processão do Espírito Santo ou como a Theotokos permaneceu virgem ao dar à luz, alguns cristãos Ortodoxos hoje tratam tais assuntos como assuntos comuns para discussão e debate, particularmente em sites da Internet. Este livro espera corrigir essa situação. É um apelo à prudência e uma tentativa de alertar para os perigos da teologização, que não são amplamente compreendidos, especialmente por teólogos sem treinamento. Mesmo que não se esteja envolvido em debates ou discussões teológicas, é importante reconhecer os limites da propriedade do discurso teológico, da piedade e das práticas.
Recentemente, mesmo alguns padres e teólogos treinados perderam um phronema [1] Ortodoxo e refletem uma forma mais escolástica de teologia que é influenciada pelo pensamento cristão ocidental e pela cultura ocidental. Estes teólogos nem mesmo se dão conta de que seu phronema se desviou quando tentam apresentar explicações razoáveis para nossa teologia, moral e interpretação bíblica que satisfarão as sensibilidades contemporâneas, ou quando apresentam explicações racionais e mundanas para o porquê da posição da Igreja dever mudar.
Esquecemos quem somos se cremos que devemos apresentar a Ortodoxia à sociedade moderna de uma forma que a torne palatável ao mundo, se ao fazê-lo nos desculparmos, diluirmos ou hesitarmos para expressar a fé e a moralidade Ortodoxa. A tentação enfrentada pelos teólogos cristãos Ortodoxos é de comprometer ou hesitar porque não queremos ser vistos como rígidos, retrógrados, que não perdoam ou que carecem de amor em questões contemporâneas como o aborto, a homossexualidade e os papéis da mulher.
A Proliferação de Teólogos Amadores
A intelectualização da cultura ocidental também contribuiu para o desenvolvimento de muitos teólogos amadores que se aproximam da Fé Ortodoxa como um objeto de estudo. O entusiasmo deles é maravilhoso e eles são bem intencionados, mas em geral lhes falta um phronema Ortodoxo. Eles não percebem que mesmo que suas afirmações sejam em sua maioria corretas, eles criam problemas espirituais para si mesmos e para os outros, porque o conhecimento da fé é mais do que simplesmente o aprendizado de livro. Quatro fatores primários contribuíram para a perda do phronema entre clero e teólogos, a ascensão dos teólogos amadores e a apresentação distorcida da Ortodoxia.
Em primeiro lugar, vivemos na era da informação. Uma enorme quantidade de informações está prontamente disponível em segundos, muitas vezes gratuitamente e sob demanda. Os livros, antes raros e preciosos, agora são de baixo custo. Quase todos os livros podem ser localizados, encomendados e entregues em sua casa em dias. A biblioteca de Qumran, uma comunidade religiosa judaica do primeiro século nas margens do Mar Morto, consistia de aproximadamente mil pergaminhos (conhecidos como os "Pergaminhos do Mar Morto") e era considerada uma biblioteca muito grande naquela época. Em contraste, eu tenho facilmente mais de mil livros somente em minha casa, sem mencionar aqueles que posso tomar emprestados da biblioteca da minha universidade, com ainda mais disponíveis através de empréstimo inter-bibliotecas, bibliotecas públicas, e empréstimos de colegas e amigos.
Além dos livros físicos, a quantidade de informações disponíveis através da Internet surpreende a mente. Hoje temos acesso instantâneo à informação, sem mais esforço do que o toque de um dedo na tela de um celular. Mas também falhamos frequentemente em reconhecer que a informação obtida pela Internet não é necessariamente confiável ou precisa.
Paradoxalmente, a grande quantidade de informações facilmente acessíveis levou à preguiça intelectual e a uma "miragem do conhecimento". Em vez disso, prevalece a superficialidade do pensamento, juntamente com a impaciência quando é preciso esperar mais dez segundos para que a informação seja carregada no computador. Da mesma forma, a teologia é muitas vezes percebida como algo em que alguém pode palpitar, da mesma forma que se pode participar casualmente de um hobby como a pintura. Tendo feito alguma leitura, pensamos que é suficiente ter aprendido o básico, e então nos sentimos livres para compartilhar com grande autoconfiança o que pensamos saber. Consideramo-nos qualificados para responder perguntas teológicas e orientar os outros em suas vidas espirituais e investigações teológicas.
Não há muito tempo, foi reconhecido que um pouco de conhecimento é uma coisa perigosa, porque um pouco de conhecimento nos leva a superestimar nossas verdadeiras habilidades e compreensão de uma questão. Mas essa máxima há muito tempo foi esquecida. Hoje nos iludimos e acreditamos prontamente que sabemos mais do que realmente sabemos sobre quase todos os assuntos.
Uma clara tendência de "hostilidade ao conhecimento estabelecido" também tem sido observada, não apenas nos círculos teológicos, mas em praticamente todas as profissões. As pessoas não estão mais "meramente desinformadas", mas estão "agressivamente erradas", escreve Tom Nichols, que estudou este fenômeno. As pessoas se tornam hostis e combativas quando aqueles com conhecimento e experiência real desafiam os amadores. Além disso, os amadores "não estão dispostos a aprender" quando são corrigidos por especialistas, e "rejeitam o know-how profissional" com raiva.
A fácil disponibilidade de informações via Internet leva as pessoas a terem confiança excessiva em seus conhecimentos, e muitos se comportam como pseudo-peritos porque pesquisaram um tópico durante algumas horas na web. Por terem aprendido algo, estão confiantes de que o compreendem. Eles não têm nenhuma apreciação pela complexidade do assunto, sobre o qual na verdade não sabem quase nada. Outros dedicaram suas vidas ao estudo profundo de um assunto específico, mas isto significa pouco para o amador que é excessivamente confiante em sua competência.
Os amadores também não têm a capacidade de avaliar as informações com as quais se deparam. A Internet está cheia de desinformação, bem como de boas informações. Sem treinamento e educação reais, aqueles que dependem da Internet para obter informações são incapazes de avaliar criticamente o que leem. Eles não têm nenhuma base para discernir a verdade ou falsidade, nenhum meio de avaliar as qualificações da pessoa que postou a informação, e nenhuma capacidade de reconhecer um viés. Mesmo o fato de que os usuários da Internet postam e repassam incessantemente uma grande quantidade de desinformação é frequentemente desconsiderado.
A Internet é uma "miragem do conhecimento" com um fornecimento inesgotável de "fatos" para confirmar qualquer viés. Ela "encoraja não apenas a ilusão de que somos todos igualmente competentes", mas também a ilusão "de que somos todos semelhantes". Como nossa sociedade se baseia no princípio de que somos todos iguais, somos encorajados a acreditar que a opinião de todos é igualmente válida, não importando se ela se baseia em conhecimentos reais. Repórteres rotineiramente pedem suas opiniões a pessoas comuns, e "talking heads" [1] em programas de notícias passam horas especulando e pontificando sobre assuntos dos quais não têm conhecimento direto, seus comentários baseados em suposições sem nenhuma tentativa de esconder seus vieses. Qualquer ideia de manter uma linha clara entre fato e opinião parece ter desaparecido.
Outros Fatores
Um segundo fator que contribui para o aumento do número de teólogos amadores é a acessibilidade da educação. As pessoas são geralmente mais educadas em geral do que as gerações anteriores. Minhas avós leem em nível de terceira ou quarta série. Minha mãe se orgulhava de ter concluído o ensino médio, uma conquista inatingível para muitos durante a Grande Depressão. Duvido que essas mulheres soubessem o que era um Ph.D. ou que pudessem imaginar o nível educacional ou as oportunidades profissionais disponíveis para mim.
Embora mais pessoas sejam mais instruídas hoje do que no passado, muitas vezes falta o senso comum e nós não nos tornamos necessariamente mais inteligentes. No entanto, nós cremos que somos mais inteligentes, e nos convencemos de que temos experiência em áreas que requerem anos de estudo intenso, porque temos confiança em nossa educação e porque a tecnologia nos permite acessar uma resposta superficial à maioria das questões em segundos.
O terceiro fator que contribui para a proliferação de teólogos de poltrona [2] é a ausência de piedade. Sou mais educada do que meus antepassados, mas estou certa de que minha mãe e minhas avós me superaram muito em piedade, devoção, fé e sabedoria. Nossa cultura é grosseira. O temor a Deus está ausente do discurso público. Como nos lembra Provérbios, "O temor do Senhor é o princípio da sabedoria" (Prov. 9:10). Talvez seja a falta de temor de Deus que tenha contribuído para a deficiência de sabedoria e compreensão. Em vez disso, o pecado e a perversão não somente têm sido generalizados, mas celebrados.
A escassez geral de piedade na sociedade contribui para que os amadores palpitem sobre teologia porque a ausência de um forte fundamento espiritual diminuiu nossa humildade e reverência para com Deus. Estamos menos conscientes de nossa incompetência em tais assuntos. Confiantes demais em nosso próprio intelecto, estamos convencidos de que podemos teologizar, mesmo sem qualquer base para tal confiança. O efeito danoso disto é agravado quando nos falta reverência para com Deus.
Finalmente, a superintelectualização da religião tem contribuído para a crença de que qualquer um pode teologizar. Nossa cultura ocidental, que por si só é um subproduto da Renascença, da Reforma e da chamada Era do Iluminismo, nos influencia a nos focarmos no aspecto intelectual da Ortodoxia. Para muitos, a fé é reduzida a um conjunto de preceitos lógicos que eles concluíram serem racionalmente sustentáveis e, portanto, aceitáveis.
A sociedade e a cultura ocidentais enfatizam a razão e a ciência como a base de tudo o que pode ser verdadeiramente conhecido. Isto promove a crença de que alguém pode compreender ou explicar qualquer coisa se simplesmente dedicar a sua mente à tarefa e for capaz de encontrar as palavras corretas para definir o assunto em questão.
Auto-engano e Orgulho
Em uma base individual, os cristãos Ortodoxos hoje são mais instruídos e têm mais informações disponíveis para eles sobre a fé Ortodoxa do que em qualquer época anterior, mas eles não são necessariamente mais devotos. Podemos facilmente cair vítimas de uma autopercepção inflada, cegos quanto à nossa incapacidade real de teologizar. A avaliação de São Paulo sobre os antigos coríntios, de que eles estavam "inchados" de conhecimento, vem à mente (1 Cor. 4:6). A falta de piedade e humildade combinada com um senso exagerado de auto-importância resultou em uma epidemia espiritual de nossa época: o auto-engano.
Nas discussões teológicas na Internet, o tempo precioso pode ser desperdiçado em debates inúteis, e não se gasta tempo suficiente no que é útil para a salvação e para a vida espiritual. As considerações pastorais e a sensibilidade ao estado mental e espiritual daqueles que participam dessas discussões também carecem frequentemente, uma vez que os teólogos amadores não são sacerdotes, não têm nenhuma preocupação pastoral com ninguém e desconhecem os perigos inerentes de teologizar. O teólogo amador pode até mesmo ser presunçoso e insensível aos sentimentos e problemas enfrentados por aqueles que estão buscando respostas on-line.
A tarefa da teologia apresenta muitos perigos não reconhecidos. Na experiência da autora, muitos cristãos Ortodoxos atuam confortavelmente e com confiança como teólogos de poltrona, a quem os Pais chamavam de "amadores", sem consciência das consequências para si mesmos ou para os outros. Aqueles que não são treinados em teologia ou cuidado pastoral devem evitar responder perguntas teológicas e dar conselhos espirituais na internet. Muitas vezes as respostas e conselhos fornecidos mostram a ausência de educação teológica básica Ortodoxa e phronema. A húbris e a falta de discernimento podem até ser alarmantes e ingenuamente perigoso.
[2] Nota do tradutor: Pessoas que aparecem em programas de TV para dar suas opiniões sobre um tópico
[3] Nota do tradutor: "armchair theologian", em inglês, faz uma analogia com a expressão do mundo dos esportes "armchair quarterback", isto é, o espectador de esportes que do conforto da poltrona de sua casa julga saber e jogar melhor que os atletas profissionais que estão em campo.
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