quinta-feira, 6 de maio de 2021

O erro do conceito perenialista de uma Tradição Primordial (Philip Sherrard)

O texto a seguir é um trecho do artigo "A Tradição Universal" de Philip Sherrard. O título do post "O erro do conceito perenialista de uma Tradição Primordial" foi dado pelo tradutor para o português.  

* * * 

O que, no entanto, é menos convincente na apresentação de Guénon sobre a Tradição é a ideia de que por trás das várias formas de tradição religiosa como existem no mundo se encontra, o que ele chama, de uma Tradição primordial e universal - puramente metafísica - da qual as várias tradições são, por assim dizer, apenas expressões locais e parciais. A ideia parece envolver uma espécie de argumento circular. Você só pode obter um verdadeiro conhecimento metafísico, afirma Guénon, por meio de iniciação a ele através de uma tradição particular na qual este conhecimento está consagrado ou incorporado. Você não pode, ou seja, enquanto estiver fora de todas as tradições, examiná-las como se fosse imparcialmente e chegar à conclusão de que esta ao invés de aquela consagra a Verdade em maior grau, porque a capacidade de reconhecer e realizar a Verdade pressupõe que você já se vinculou a uma tradição e foi iniciado através dela à Verdade.  Isto significa que sua ideia da Verdade, no sentido absoluto, depende do grau em que a Verdade, no sentido absoluto, está consagrada ou incorporada na tradição através da qual você recebeu seu conhecimento da mesma. 

Tendo recebido seu conhecimento da Verdade desta forma - e é, segundo Guénon, a única maneira de recebê-lo de forma autêntica - é certamente ilegítimo que você dê um passo adiante e diga que a tradição através da qual você reconheceu e realizou a Verdade consagra a Verdade de uma maneira mais completa do que a forma como ela está consagrada em outras tradições, de modo que esta tradição - sua tradição - representa a Tradição primordial e universal, a Tradição por excelência, ao passo que outras tradições são apenas adaptações feitas para atender às limitações das capacidades e temperamentos dos grupos particulares da humanidade aos quais são dirigidas. Fazer isto é, como eu disse, argumentar em círculo, que é um jogo que qualquer um pode jogar. 

No entanto, é isso que Guénon faz ao identificar a Tradição metafísica num sentido primordial e universal com a tradição do Vedanta, considerada na perspectiva da interpretação que lhe foi dada por Shankara, e ao utilizar os critérios fornecidos por esta tradição para julgar o status, com respeito à Verdade metafísica em sua forma mais pura, de outras tradições. 

Além disso, dizer que o Vedanta representa a Tradição primordial e é, portanto, a mais pura e perfeita das tradições, pois é a tradição original da humanidade em sentido puramente cronológico, é tão somente repetir o argumento circular em outra forma.  Aqui há duas coisas a serem ditas. A primeira é que esta afirmação sobre a prioridade cronológica da doutrina do Vedanta em si, suscita uma questão absolutamente vital. Porque embora você possa dizer que o Vedanta é a mais antiga tradição espiritual conhecida pela humanidade, você não pode evitar a questão de quem você escolhe para reconhecer como seu guia e mestre na questão da interpretação desta tradição. Guénon de fato escolheu Shankara (em vez de, digamos, Ramanuja); e o Vedanta na forma extrema não-dualista ou monista que lhe foi dada por Shankara data do século 8 d.C. ou algo próximo. 



E, além disso, você só pode dizer que o Vedanta consagra mais plenamente a tradição primordial porque é a tradição espiritual original da humanidade em um sentido puramente cronológico, se você já aceitou uma teoria do tempo segundo a qual o mais elevado estado de receptividade espiritual do homem e, portanto, sua forma mais pura e perfeita de conhecimento metafísico, coincide com o ciclo de abertura dos grandes ciclos cósmicos; e esta teoria do tempo, e da degeneração progressiva dos ciclos cósmicos, é evidentemente parte essencial da tradição hindu e é tomada dessa tradição. Se você tomar sua teoria do tempo, digamos, da tradição cristã, não há nada que apoie a ideia de que o estado original da humanidade, em termos cronológicos, é o estado mais perfeito. Uma certa condição de vácuo espiritual é necessária para localizar a forma mais perfeita e pura das coisas no passado remoto, assim como é necessária para localizá-la no futuro remoto, à maneira de Karl Marx ou Teilhard de Chardin.

Você pode ter uma idolatria com respeito ao passado, assim como pode ter uma idolatria com respeito ao futuro. Se a segunda leva a uma espécie de iconoclastia na qual se destrói todas as formas tradicionais herdadas, porque elas representam muitos obstáculos no caminho do progresso do homem para o futuro, a primeira pode levar a uma espécie de estagnação que prende de tal forma o espírito humano às rodas giratórias do hábito acumulado de séculos que se torna impossível para ele abraçar novas visões, não do futuro, mas das próprias realidades eternas sempre renovadas. Este é o negativo, o espírito mecânico da tradição e é, à sua maneira, tão materialista quanto os sonhos de um futuro utópico. É cegamente piedoso, mas não espiritual. Fecha a porta da profecia e, consequentemente, da faculdade que é a correlativa da profecia, a Imaginação. Não é por isso que a Ishopanishad diz: "A verdade é ao mesmo tempo finita e infinita; ela se move e ainda assim não se move; ela está no distante, mas também no próximo; ela está dentro de todos os objetos e fora deles"?

Também pode ser dito que a ideia de Guénon de realização metafísica dá um lugar de orgulho praticamente exclusivo à inteligência, e, como seria de esperar de um discípulo de Shankara, ele considera o conhecimento como o meio primário de libertação. Ele não atribui, por exemplo, ao amor nenhum lugar no processo de transformar o ser humano na semelhança de Deus. Na realidade, para Guénon, o amor não tem nenhum status metafísico. Como ele declarou em uma discussão em 1924, quando já havia atingido a maturidade plena, o amor é meramente algo "sentimental e, em consequência, secundário". Ou seja, por definição, o amor não pode para Guénon ser aquilo por meio do qual o homem pode alcançar a perfeição, ou aquilo sem o qual ele não pode alcançar a sabedoria - porque o amor está inseparavelmente ligado à sabedoria - ou aquilo no qual ele se eleva às alturas da verdadeira contemplação. Não consigo acreditar que isto caracterize o hinduísmo em geral, por mais que possa caracterizar certas formas de hinduísmo. 

De fato, por trás da apresentação de Guénon da doutrina metafísica, acho que se pode discernir um princípio muito distintivo em ação, que ele aplicou à formulação da doutrina metafísica com extremo rigor. Este princípio é evidente no status que ele concedeu com relação a tal formulação à razão humana e sua lógica. Colocado em seus termos mais simples, para ele, a metafísica, embora esteja acima da razão, não pode contradizer a razão. Isto quer dizer que, quando se trata da questão de representar a doutrina metafísica em termos acessíveis à inteligência humana, se você puder demonstrar em termos puramente lógicos e racionais que um certo princípio metafísico é e deve ser superior - mais abrangente, menos limitado e menos determinado do que outro, então este primeiro princípio, por esse motivo, deve ser mais elevado na ordem metafísica do que o segundo. Como pode ser demonstrado de maneira perfeitamente lógica e não-ambígua que o princípio metafísico que é totalmente não qualificado, impessoal e não admite qualquer particularização ou participação é e deve ser mais abrangente, menos limitado e menos determinado do que qualquer outro princípio do que é possível para a mente humana e sua lógica conceber, então, de acordo com esta concepção das coisas, esse princípio deve ser o Absoluto metafísico. 

Portanto, nesta perspectiva, qualquer tradição que não identifica o Absoluto metafísico com um princípio totalmente não qualificado, impessoal, etc., deve ser de uma ordem inferior, metafisicamente falando, do que uma tradição que identifica o Absoluto desta maneira. Isto, como eu disse, é bastante não-ambíguo, considerando a suposição que está por trás disto. O que é ambíguo é porque alguém deve aceitar em primeiro lugar o princípio da demonstração racional e lógica que leva a tal conclusão. A única resposta inteligível a esta pergunta é dizer que você a aceita porque ele é um axioma da tradição à qual você aderiu e, portanto, determina a maneira pela qual o conhecimento metafísico é formulado dentro dessa tradição. Mas isto é apenas mais um exemplo do mesmo argumento circular sobre o qual eu tenho falado. Porque, se você tivesse aderido a uma tradição na qual esta ideia particular da relação entre lógica e metafísica - a ideia, ou seja, que metafísica não pode contradizer a razão - não fosse assumida como axiomática, você estaria sob nenhuma compulsão para chegar à conclusão que ela impõe.

No entanto, se este conceito, de uma Tradição primordial na forma como Guénon a concebe, está tão coberto de pressupostos a priori que deve ser visto ou como um ato de fé ou como puramente arbitrário, isto não invalida sua ideia do que constitui as principais características da Tradição como tal. O que significa, por outro lado, é que a reivindicação de falar em nome da Tradição, quer se chame "universal" ou "metafísica" ou "primordial", deve ser tratada com considerável cuidado; e que correspondentemente a ideia de uma religião universal, ou a proposição de que "toda Verdade é uma só", por si só não resolve a questão de qual tradição consagra a mais total revelação da Verdade, nem estabelece a igual autoridade e autenticidade de todas as tradições. 

Não se deve esquecer que o significado que uma certa tradição tem para alguém, e o grau e firmeza do assentimento que esse alguém lhe dá, dependem não tanto de suas probabilidades demonstráveis, mas da força de sua adesão a ela, ou da fé nela, em primeiro lugar. Isto de forma alguma isenta da necessidade de aceitação e fé em uma tradição particular, que preenche as condições, como descrito por Guénon, que constituem uma tradição, se alguém quiser realizar as potencialidades espirituais que estão nas profundezas de cada um de nós; nem isenta alguém da necessidade de direcionar sua lealdade primária para a tradição de sua escolha e para aprofundar sua experiência dela.  No entanto, também impõe a obrigação de respeitar e honrar os sinais de sabedoria, santidade e graça onde e quando eles ocorrem, e qualquer que seja a tradição que os tenha alimentado. 

* * * 

Nota do blog - leituras recomendadas:

  • Para um comentário geral sobre a incompatibilidade do Perenialismo e o Cristianismo Ortodoxo veja: "Considerações ortodoxas sobre o perenialismo" http://avidaintelectual.blogspot.com/2010/04/consideracoes-ortodoxas-sobre-o.html
  • Para uma crítica feita pelo Philip Sherrard mais aprofundada da relação entre lógica e metafísica na obra de Guénon veja seu ensaio "A metafísica da lógica" (disponível em português em http://avidaintelectual.blogspot.com/2015/12/a-metafisica-da-logica.html )
  • Para uma crítica a tese da "Unidade Transcendente das Religiões" veja o artigo "The Problematic of the Unity of Religions" pelo teólogo Católico Romano Jean Borella (trecho disponível em português em http://wearetime.blogspot.com/2017/06/o-problema-da-unidade-das-religioes.html )
  • Para um comentário sobre René Guénon escrito pelo Pe. Serafim Rose em uma de suas cartas veja http://aenergeia.blogspot.com/2015/04/padre-serafim-rose-e-rene-guenon.html
  • Para uma crítica a metafísica perenialista a partir do trinitarismo Ortodoxo por Vincent Rossi veja: http://skemmata.blogspot.com/2021/06/metafisica-perenialista-e-trinitarismo.html
  • Para um comentário sobre a teosofia e o ocultismo escrito pelo Pe. Sergius Bulgakov veja http://skemmata.blogspot.com/2016/06/os-enganos-do-ocultismo-e-teosofia.html

Nenhum comentário:

Postar um comentário