terça-feira, 23 de junho de 2020

Pergunta: "Os Ortodoxos crêem na Expiação?" (Pe. John Whiteford)

O conceito de expiação é encontrado em diversas passagens da Escritura, e é claro que nós Ortodoxos acreditamos nele. Havia, na realidade, uma festa no Antigo Testamento chamada "O Dia da Expiação", que em hebraico é chamada de Yom Kippur. Este era o único dia de jejum especificamente solicitado na Lei de Moisés, e era "um sábado santíssimo [Shabbat Shabbaton]" (Levítico 16:31). Este é o jejum que foi mencionado em Atos 27:9, que diz que "já havia passado a época do jejum - e a navegação se tornava perigosa."

A palavra inglesa "atonement" [Expiação] foi cunhada por William Tyndale, e significa "to make one" [tornar um] ou literalmente "at one-ment" (juntando as duas palavras "at" [em] e "one" [um] e acrescentando o sufixo "-ment" [mente]). Isso traduziu bem o significado da palavra hebraica "Kippur", que significa "reconciliação" - especificamente reconciliar homens pecadores com um Deus Santo.

Outro termo que William Tyndale trouxe para o inglês é "Mercy Seat" [Assento da Misericórdia]. William Tyndale baseou sua tradução na tradução de Lutero para a palavra alemã: "Gnadenstuhl", que literalmente significa o assento da graça ou da misericórdia. No entanto, não há nada no termo hebraico, Kapporet, que sugere "misericórdia" ou "assento". "Kapporet" é uma forma da palavra "Kippur", e literalmente significa "o lugar da reconciliação". Esta era a tampa da Arca da Aliança, e o Assento da Misericórdia era o lugar sobre o qual o sangue do sacrifício no dia da Expiação era aspergido, e pelo qual a reconciliação entre Deus e os homens se realizava.


A tradução grega para o Assento da Misericórdia era "ἱλαστήριον, hilasterion". E encontramos esta palavra usada em Romanos 3:24-25: "Sendo justificados gratuitamente pela sua graça, pela redenção que há em Cristo Jesus. Ao qual Deus propôs para propiciação pela fé no seu sangue, para demonstrar a sua justiça pela remissão dos pecados dantes cometidos, sob a paciência de Deus." Interessantemente encontramos nesse texto a palavra "redemption" [redenção], que poderia ser traduzida como "ransom" [resgate], e a palavra hebraica para "resgate" (Koper) é da mesma palavra raiz de Kippur -- palavra usada em referência aos sacrifícios do Antigo Testamento, e que tem claramente a conotação de "pagamento".

A Tradição da Igreja conecta diretamente a Cruz com a Arca da Aliança, porque a Arca e o Assento da Misericórdia era o lugar da expiação, e a Arca é referida como "adoremos no lugar onde repousam os seus pés" (Salmo 131:7 lxx) e a Cruz é o lugar onde os pés de Cristo repousaram, quando Ele fez a expiação por nossos pecados (veja Christopher Veniamin, trad. Saint Gregory Palamas: The Homilies (Waymart, PA: Mount Thabor Publishing, 2009) p. 86).

Há muitos escritores Ortodoxos contemporâneos que desejam negar ou minimizar uma série de conceitos que se relacionam com nossa redenção. Eles argumentarão que nós não acreditamos que Cristo teve que morrer em nosso lugar, ou que Seu sangue precisou ser derramado para pagar a penalidade por nossos pecados. Negarão a legitimidade dos termos legais, em favor da idéia de que a Igreja é um hospital espiritual. O problema não é que a Igreja não é um hospital espiritual, mas sim que, ao enfatizar um conjunto de imagens usadas para explicar nossa salvação, eles negam todo um conjunto de imagens igualmente válidas que são claramente bíblicas. É verdade que no Ocidente houve uma ênfase excessiva nas imagens legais/jurídicas, mas a solução para tal desequilíbrio não é um novo desequilíbrio na direção oposta. Podemos e devemos falar do pecado como uma doença, mas quando morremos, não chegamos diante do exame médico final - nos deparamos com o julgamento final, que é uma imagem legal, se é que alguma vez houve uma. E assim também podemos falar do pecado como uma transgressão da Lei de Deus, e da nossa necessidade de sermos justificados por Deus, mesmo enquanto falamos de pecado em termos de uma doença da qual precisamos ser curados.

Rejeitamos a idéia de que a morte de Cristo foi um resgate pago ao diabo, mas que ela foi um resgate em certo sentido é confirmado pelo próprio Senhor, e em outra parte da Escritura (Mateus 20:28; Marcos 10:45; 1 Timóteo 2:6). Então temos que entender que as imagens verbais apontam para uma realidade, mas não são a realidade em si, e temos uma idéia melhor dessa realidade considerando todas as imagens bíblicas que apontam para ela - não focando em uma ou duas excluindo as outras, e certamente não forçando essas imagens para além do objetivo que elas visam.

São Gregório Palamas, em sua 16ª Homilia (proferida no Sábado Santo: "Sobre a Dispensação Segundo a carne de nosso Senhor Jesus Cristo e os Dons de Graça Concedidos àqueles que verdadeiramente crêem nEle"), fala um pouco sobre a necessidade de Cristo morrer em nosso lugar. Toda a homilia merece ser lida, mas aqui estão alguns trechos:
"O homem foi levado ao seu cativeiro quando experimentou a ira de Deus, sendo essa ira o justo abandono do homem por parte do bom Deus. Deus tinha de reconciliar-se com a raça humana, pois, caso contrário, a humanidade não poderia ser libertada da servidão. Era necessário um sacrifício para reconciliar o Pai das alturas conosco e para nos santificar, pois estávamos sujos devido à comunhão com o maligno. Tinha que haver um sacrifício que ao mesmo tempo purificasse e fosse puro, e um sacerdote purificado e sem pecado." (Christopher Veniamin, trad. Saint Gregory Palamas: The Homilies (Waymart, PA: Mount Thabor Publishing, 2009) p. 124).

"Cristo derrotou o diabo através do sofrimento e da Sua carne, que Ele ofereceu como um sacrifício a Deus Pai, como uma vítima pura e inteiramente santa - que grande é o Seu dom! -- e reconciliou Deus com a nossa raça humana" (p.125).

"Por esta razão o senhor suportou pacientemente por nós uma morte que Ele não estava obrigado a sujeitar-se, para nos redimir, a nós que estávamos obrigados a sofrer a morte, devido à servidão ao diabo e à morte, e com isso quero dizer a morte tanto da alma como do corpo, temporária e eterna. Uma vez que Ele ofereceu Seu sangue, que era sem pecado e, portanto, isento de culpa, como resgate por nós, que estávamos sujeitos a punição por causa de nossos pecados, Ele nos redimiu de nossa culpa. Ele perdoou os nossos pecados, rasgou o registro deles na Cruz e nos libertou da tirania do diabo (cf. Cl 2:14-15)"(p. 128f)".
Como muitas vezes é o caso, a perspectiva Ortodoxa apropriada sobre esta questão é uma de equilíbrio. Devemos proclamar todo o conselho de Deus (Atos 20:27), e não apenas as partes que nos parecem mais atrativas. Nem devemos exagerar na reação aos desequilíbrios dos teólogos heterodoxos, e assim cair em um novo erro, ao rejeitar aspectos importantes da nossa Tradição.

Texto original: https://fatherjohn.blogspot.com/2015/08/stump-priest-atonement.html

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Atualização 1:

A seguinte citação por São João Crisóstomo também é de interesse:
"Deus permitiu que seu Filho sofresse como se fosse um pecador condenado, para que pudéssemos ser libertos da pena dos nossos pecados. Esta é a justiça de Deus, que não somos justificados pelas obras (pois então elas teriam que ser perfeitas, o que é impossível), mas pela graça, e assim todo o nosso pecado é removido" (Comentário em 2 Coríntios 5:21, citado em Ancient Christian Commentary on Scripture: New Testament, Vol. VII, Gerald Bray, ed. (Downers Grove, IL: Intervasity Press, 1999) p. 252).
Atualização 2:

São Justino Popovich disse isto ao comentar 1 João 2:2:
"O Senhor Cristo é a propiciação do Pai pelos nossos pecados, porque orando ao Pai por nós, portadores de carne pecaminosa, Ele indica as Suas chagas por nós, sobre o Seu Corpo, o corpo humano, que era sem pecado na terra, e assim permaneceu para sempre. Ele é a propiciação do Pai pelos pecados do mundo inteiro, porque por causa de todos, e no lugar de todos, e em nome de todos, Ele suportou inúmeros sofrimentos desde o berço até a morte na Cruz, o sacrifício supremo, e Ele a suportou em Seu infinito amor pelo homem. Se não fosse a propiciação salvífica pelo pecado da humanidade, o mundo, pela justiça de Deus, teria sido destruído muitas vezes por causa de seus pecados." (Arquimandrita Justino Popovich, Commentary on the Epistles of St. John the Theologian, trad. Radomir M. Plavsic (Alhambra, CA: Sebastian Press, 2009) p. 21).

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