domingo, 19 de abril de 2020

A origem espiritual, a natureza e o significado da pandemia atual: Uma entrevista com Jean-Claude Larchet


Jean-Claude Larchet, você é um dos primeiros a ter desenvolvido uma reflexão teológica sobre a doença, o sofrimento, a medicina. Seu livro "A Teologia da Doença", publicado em 1991, foi traduzido para vários idiomas e, em conexão com a epidemia da COVID-19, em breve será publicado em tradução para o japonês. Você também publicou uma reflexão sobre o sofrimento: "Deus não quer o sofrimento humano", que também apareceu em várias traduções.


Antes de tudo, qual é a sua opinião geral sobre a epidemia que estamos vivendo atualmente?


Não me surpreende: há milênios tem ocorrido cerca de duas grandes epidemias por século, e várias outras epidemias menores. Sua freqüência, porém, está aumentando, e a concentração populacional em nossa civilização urbana, o tráfego favorecido pela globalização e a multiplicidade e velocidade dos meios de transporte modernos facilmente as transformam em pandemias. A epidemia atual era, portanto, previsível, e foi prevista por muitos epidemiologistas que não tinham dúvidas de que aconteceria; a única coisa que não sabiam era o momento preciso em que ocorreria e a forma que assumiria. O surpreendente, porém, é a falta de preparação de alguns estados, que, em vez de fornecer à equipe médica as estruturas e equipamentos hospitalares necessários para lidar com o flagelo, permitiram que os hospitais se deteriorassem e que a produção de medicamentos, máscaras e respiradores, que agora estão muito em falta, fosse terceirizada (pela China, como tudo mais).

As doenças são onipresentes na história da humanidade, e ninguém vive uma vida completamente livre delas. As epidemias são simplesmente doenças que são particularmente contagiosas e se espalham rapidamente até atingir uma grande parte da população. A característica do vírus COVID-19 é que ele afeta seriamente o sistema respiratório de idosos ou pessoas debilitadas por outras patologias, e tem um alto grau de contágio que enche rapidamente os sistemas de UTI com o grande número de pessoas afetadas simultaneamente em um curto período de tempo.

As Igrejas Ortodoxas têm respondido em estágios, em velocidades variadas e de formas variadas. O que você pensa sobre isso?

É preciso dizer que diferentes países foram afetados pela epidemia em diferentes momentos e em diferentes graus, e cada Igreja Local adaptou sua resposta à evolução da doença e às medidas tomadas pelos respectivos estados em que se encontram. Nos países mais afetados, a decisão de interromper a celebração dos serviços foi tomada rapidamente, com apenas alguns dias de intervalo. Não prevendo tal cessação no futuro imediato, algumas Igrejas (como a Russa) tomaram medidas para limitar possíveis contaminações durante os serviços litúrgicos ou a distribuição dos sacramentos; hoje são compelidas a pedir aos fiéis que não venham à igreja.

Estas diferentes medidas deram origem a debates e até a discussões polêmicas, por parte do clero, das comunidades monásticas, dos fiéis, dos teólogos...

Um primeiro tema de controvérsia foi a decisão de algumas igrejas de mudar as modalidades da comunhão eucarística.


Nesse sentido, duas coisas devem ser distinguidas: as práticas que acompanham a comunhão e a própria comunhão.

Pode haver um risco de contaminação pela forma como a comunhão é distribuída: o fato de limpar os lábios de cada comungante com o mesmo pano (como se faz de maneira firme em algumas paróquias da Igreja Russa), ou de beber (depois da comunhão, como é costume também na Igreja Russa) zapivka (mistura de água fria e vinho) dos mesmos copos. É por isso que as medidas tomadas para usar toalhas de papel no primeiro caso e copos descartáveis no segundo caso (ambos depois queimados) não me parecem passíveis de qualquer objeção.

Quanto à comunhão propriamente dita, várias Igrejas abandonaram a forma tradicional de oferecê-la aos fiéis, que é a de colocá-la na boca com a Santa Colher. Algumas Igrejas têm defendido o derramar do conteúdo na boca aberta enquanto o padre mantém certa distância dela; outras - como a Igreja russa - propuseram a desinfecção da colher com álcool entre um comungante e outro ou o uso de colheres descartáveis que depois seriam queimadas. Creio que nenhuma Igreja considerou que o próprio Corpo e Sangue de Cristo, que todas as orações antes e depois da comunhão nos lembram, é dado "para a cura da alma e do corpo", é em si um vetor de contaminação (esta última idéia só é encontrada em um artigo de Arquimandrita Cirilo Hovorun, que contém uma série de heresias e se tornou viral na Internet, razão pela qual eu a cito). Mas levantam-se dúvidas sobre a própria Colher, e isto está suscitando debate, com alguns considerando sobretudo o fato de que ela toca a boca dos fiéis, e outros considerando sobretudo o fato de que estando embebida no Corpo e Sangue de Cristo, ela é desinfetada e protegida pelo pão e vinho consagrados. Este último grupo observa que há sacerdotes que consomem o restante dos Santos Dons no final da Liturgia em grandes igrejas, onde inevitavelmente há entre os fiéis pessoas doentes de todos os tipos, e que nunca contraem nenhuma doença como resultado disso. Notam também que, durante as grandes epidemias do passado, os sacerdotes deram comunhão aos fiéis contaminados, sem se contaminarem a si mesmos. Com relação a este último ponto, não tenho informações confiáveis a partir de documentos históricos. Por outro lado, o comentário que São Nicodemos, o Hagiorita (que viveu na segunda metade do século XVIII), faz em seu Pedalion (coleção e comentário sobre os cânones da Igreja Ortodoxa) sobre o cânon 28 do VI Concílio Ecumênico, admite que "os sacerdotes fazem alguma mudança em tempos de peste" na forma de administrar a comunhão aos doentes "colocando o Pão Sagrado em algum recipiente sagrado, para que o moribundo e o doente possam consumi-lo com colheres ou algo semelhante", "o recipiente e as colheres precisam então ser colocados em vinagre, e o vinagre a ser derramado em um forno de fundição, ou de qualquer outra forma que seja mais segura e canônica". Isto pressupõe que em seu tempo (e provavelmente até antes) foi aceito que a comunhão fosse dada através de vários recipientes e colheres, e que estes fossem então desinfetados (tendo o vinagre, pelo seu grau de álcool e acidez, propriedades anti-sépticas e antifúngicas [que, entretanto, seriam bastante insuficientes contra o COVID-19]).  É com base neste texto, também citado no manual de referência do grande liturgista russo do século XIX, S. V. Bulgakov, que a Igreja Russa justificou as medidas por ela tomadas.

Creio que quem tem fé suficiente para comungar com confiança através da Colher não corre riscos, e que as igrejas que fizeram ajustes especiais o fizeram, na melhor das hipóteses, tendo em vista os fiéis com fé mais fraca e dúvidas. As Igrejas têm de alguma forma seguido o preceito de São Paulo, que diz: "Fiz-me como fraco para os fracos, para ganhar os fracos" (1 Cor 9:22). Deve-se lembrar que a comunhão não tem efeito mágico: como em todos os sacramentos, a graça é dada em plenitude, mas a recepção da graça é proporcional à fé do que recebe (os Padres gregos usam a palavra grega analogia para designar esta proporcionalidade) a tal ponto que é até dito por São Paulo, e lembrado nas orações antes da comunhão, que quem se comunica indecentemente pode adoecer de alma e corpo (1 Cor 11:27-31), ou pode receber a comunhão para seu "julgamento ou condenação".

Em qualquer caso, cada Igreja Local está no seu direito de tomar, por razões de oikonomia, todas as medidas necessárias em cada circunstância particular.

O segundo tema de controvérsia foi o fechamento das igrejas e a cessação dos serviços litúrgicos.

Deve-se notar, antes de tudo, que a maioria dos Estados não ordenou o fechamento de igrejas, mas apenas restringiu o acesso a elas a poucas pessoas, e então a visitas de indivíduos isolados; mas as medidas de contenção impossibilitaram viagens e visitas. Na maioria das Igrejas locais, porém, a celebração das Liturgias continua com o padre, um cantor, possivelmente um diácono e um servidor (exceto na Grécia, onde isso tem sido proibido até mesmo nos mosteiros, o que é paradoxal num país com forte identidade Ortodoxa e onde a Igreja desfruta de reconhecimento oficial por parte do Estado).

Os extremistas têm desenvolvido teorias conspiratórias, vendo por trás das decisões de vários estados o desejo de certos grupos influentes de destruir o cristianismo. Eles traçaram um paralelo com o período de perseguição dos primeiros séculos, chamando os cristãos à resistência e citando os mártires como exemplos. Essas posições são obviamente excessivas, e o paralelo com o período de perseguições é abusivo. Não se pede aos cristãos que renunciem à sua fé e adorem outro deus. As igrejas não têm sido permanentemente fechadas, e os limites impostos ao seu atendimento são apenas temporários. Os Estados só têm cumprido seu dever de proteger a população, tomando a única medida disponível - contenção - para limitar o contágio, proporcionar o melhor cuidado possível aos doentes e limitar o número de mortes.

Eu acrescentaria que uma igreja não é um lugar mágico, totalmente protegido do mundo ao redor, onde não se pode contrair nenhuma doença, especialmente se ela for altamente contagiosa. É verdade que nos tempos antigos, quando havia epidemias, as pessoas tinham uma atitude diferente: pessoas se reuniam nas igrejas e o número de procissões se multiplicava. O que se esquece é que as igrejas se tornaram uma espécie de asilo/mortuário. Assim, durante as grandes epidemias do Império Bizantino, não era raro encontrar centenas de cadáveres amontoados nas igrejas.

A Igreja tem o dever de proteger a saúde e a vida dos seus fiéis, mas também de proteger àqueles que eles possam contaminar no exterior, bem como o dever de não complicar o trabalho do pessoal de saúde, que, se o sistema se tornar superlotado, pode não poder mais tratar a todos e pode ter que fazer triagens e, em outras palavras, abandonar e deixar morrer as pessoas mais frágeis. Além disso, se há muitos mortos ao mesmo tempo, não se pode mais garantir um funeral: todos nós ficamos tristes ao ver, na Itália, uma fila de caminhões do exército levando dezenas de mortos diretamente para o crematório, sem qualquer presença familiar ou religiosa possível. Na China, milhares de cadáveres foram cremados um após o outro, e foi somente algumas semanas depois que as famílias puderam vir recolher as cinzas de seus parentes mortos em paletes onde as urnas funerárias haviam sido empilhadas.

As comunidades monásticas (incluindo as do Monte Athos) todas tomaram a decisão, fechando suas portas, para proteger seus visitantes e peregrinos de contaminarem uns aos outros, mas também para proteger seus próprios membros, permitindo-lhes assim continuar a celebrar a Liturgia e realizar uma de suas tarefas essenciais, da qual necessitamos particularmente neste momento: orar pelo mundo.

O fato de se ter tornado impossível receber a comunhão por algum tempo, constitui um grave problema para alguns dos fiéis. Também aqui, alguns extremistas vêem o efeito exitoso de uma conspiração anti-cristã.

Não compartilho dessas teorias conspiratórias, na medida em que envolvem pessoas ou organizações, e especialmente porque, como já disse, as epidemias são recorrentes e cíclicas na história da humanidade; no entanto, acredito que nesta epidemia e suas conseqüências, o diabo está em ação; direi a vocês por que no resto da nossa entrevista.

Em relação à impossibilidade da comunhão, várias coisas podem ser ditas. Aqueles que estão acostumados à comunhão semanal (ou mais freqüente) e que extraem da comunhão grande força para suas vidas estão sofrendo muito nesta situação e nós os entendemos. Como consolação, podemos recordar que a Vida de Santa Maria do Egito, que comemoramos solenemente no quinto domingo da Grande Quaresma, conta que ela só recebeu a comunhão duas vezes em sua vida: imediatamente antes de iniciar a sua vida de ascese, e pouco antes da sua morte; e que na sua época (como se recorda na sua Vida que lemos na igreja por ocasião desta comemoração), o costume era que os monges que viviam em comunidade se retiravam individualmente para o deserto no início da Grande Quaresma, e regressavam ao mosteiro apenas na Quinta-Feira Santa para receber a comunhão.  Também pode ser lembrado que muitos Padres que se retiravam para o deserto só comungavam no máximo uma vez por ano. Estamos por necessidade sujeitos ao mesmo afastamento da comunhão durante esta Grande Quaresma, e graças também ao confinamento em nossos apartamentos e casas (que para muitos, em nosso mundo de incessante movimento e ocupações externas, se tornaram tão austeros quanto qualquer deserto), podemos compartilhar um pouco da experiência deles. Podemos nos beneficiar com isso. Antes de tudo, hoje - especialmente na diáspora - a comunhão tornou-se freqüente (ao passo que há algumas décadas atrás, nos países Ortodoxos, ela era rara), a ponto de haver o risco de ela se tornar um lugar comum. Há alguns anos, falei sobre isso com o bispo Atanásio Jevtić, que me disse que é útil jejuar periodicamente da comunhão para recuperar o sentido de sua seriedade e aproximar-se dela com um genuíno desejo e necessidade. Em segundo lugar, podemos lembrar que os efeitos da comunhão não se dissipam depois de recebê-la. Seus efeitos são proporcionais à qualidade de nossa receptividade, e essa receptividade diz respeito não apenas ao nosso estado de prontidão para a comunhão, mas ao nosso estado em relação a ela após recebê-la. Para nos ajudar, a Igreja nos fornece uma série de orações antes e depois da comunhão. Conheço vários pais espirituais que encorajam seus filhos espirituais a ler as orações após a comunhão cada dia até a próxima comunhão, para que eles possam permanecer conscientes dos "dons preciosos que foram recebidos" e continuar a atualizar a graça que nos trouxeram.

Em relação à impossibilidade de participar dos serviços litúrgicos, o que se pode dizer?

Penso que é possível celebrá-los em casa nas formas previstas na ausência de um sacerdote, sobretudo através da leitura da Typika no lugar da Liturgia, embora obviamente esta não possa substituir [a Liturgia] completamente e até falte o essencial, a saber, a celebração do Santo Sacrifício, que só pode ser realizada por um sacerdote. Muitos dos fiéis têm em casa os textos litúrgicos (especialmente o pequeno Livro de Orações [euchologion], que se destina precisamente à celebração doméstica, no caso da ausência de um sacerdote); do contrário, a maior parte dos textos pode ser encontrada na Internet. A prática da Oração de Jesus também pode ser desenvolvida: no Monte Athos, pequenas comunidades ou eremitas que vivem no "deserto" e não têm padre, substituem os ofícios por um determinado número de invocações dirigidas a Cristo, à Mãe de Deus e aos santos. São Efraim de Katounakia, referindo-se a São João Crisóstomo, disse: "As pessoas no mundo que não têm a possibilidade de ir à igreja nem no sábado nem no domingo podem, naquele momento, fazer de suas almas um altar, dizendo a Oração".

Também é possível, nos países Ortodoxos, acompanhar a Liturgia transmitida ao vivo pela televisão ou pela Internet, como fazem geralmente muitos idosos ou doentes que não podem viajar. Isto não substitui a participação real, com uma presença física na comunidade, mas podemos, no entanto, estar associados à celebração e experimentar um sentimento de identidade de pertença e ação comunitária no mesmo período de tempo, com a comunidade eclesial estendendo-se para além do visível e dos presentes (isto é chamado de "comunhão dos santos"). 

Em recente entrevista, o Metropolita de Pérgamo, John Zizioulas, condenou a decisão de algumas Igrejas de fechar igrejas e cessar de celebrar os serviços, dizendo que quando a Liturgia não é mais celebrada, não há mais uma Igreja. O que você acha disso?

A posição dele é compreensível por causa de sua doutrina personalista que dá primazia ao relacional, e assim identifica a Liturgia com a synaxis (a assembléia dos fiéis) mais do que com o próprio sacrifício eucarístico. Na verdade, a Liturgia continua a ser celebrada em todas as Igrejas (nos mosteiros, mas também em grupos muito pequenos em muitas igrejas). E isso é o que é importante. O valor da Liturgia não depende do número de participantes presentes, nem o valor e o alcance do Santo Sacrifício depende do número de Liturgias celebradas. Quando centenas de milhares de igrejas celebram a Liturgia simultaneamente, elas atualizam (este é o significado da palavra anamnesis, que designa o coração da Liturgia) o único Sacrifício de Cristo. Se houvesse apenas uma Liturgia sendo celebrada, por apenas uma das Igrejas locais, este Sacrifício seria celebrado igualmente, com o mesmo alcance, pois se estende a todo o universo. Quanto aos fiéis, deve-se recordar que a Liturgia de São Basílio, que celebramos nos domingos da Grande Quaresma, contempla explicitamente a possível ausência deles, com uma das orações pedindo a Deus que lembre "aqueles que estão ausentes por causa justa", associando-os assim, de certo modo, aos fiéis presentes e à graça que lhes é dispensada.

Como viver em confinamento? Isso aparentemente representa problemas para nossos contemporâneos...

Temos a sorte de a quarentena imposta pelo Estado coincidir em parte com a "quarentena santa" da Grande Quaresma. É tradição para nós Ortodoxos, durante esse período, limitar nossos passeios, atividades de lazer e consumo; é também tradição aproveitar esse período de calma e maior solidão, retornar a nós mesmos, aumentar nossas leituras espirituais e orar mais. Para tudo isso, temos a experiência dos últimos anos; será necessário apenas prolongar o esforço por algumas semanas.

Em geral, o confinamento é uma boa oportunidade para vivenciarmos a hesíquia (hesychia) tão querida à espiritualidade Ortodoxa, um estado de solitude e especialmente de calma exterior e interior; para descansarmos do movimento incessante, do barulho e do estresse ligado às nossas condições habituais de vida; e para re-habitarmos nossa morada interior - o que os Padres hesicastas chamam de "o lugar do coração".

O confinamento também permite que casais e filhos fiquem juntos mais vezes do que o normal, e isso é benéfico para todos. Claro que isto nem sempre é evidente, já que alguns não estão acostumados a viver juntos por muito tempo, mas pode ser uma oportunidade de fortalecer positivamente os laços relacionais.

Este retorno a si mesmo e à vida conjugal e familiar não deve, no entanto, ser um esquecimento dos outros. A esmola, que faz parte da prática habitual da Quaresma, pode tomar a forma de uma assistência mais constante e regular às pessoas que conhecemos que sofrem de doença, solidão ou preocupação excessiva. Para esta atividade, os modernos meios de comunicação são bons...

Observo que muitos de nossos concidadãos tiveram que organizar atividades esportivas em suas casas e apartamentos. Durante a Quaresma, estamos acostumados a fazer grandes prostrações. Podemos multiplicá-las (os monges têm uma regra de fazer pelo menos 300 por dia, alguns deles fazem até 3000!). O Patriarca Paulo da Sérvia, que as fazia todos os dias até os 91 anos de idade (só uma lesão no joelho poderia detê-lo!), disse, com a força de seus estudos médicos e de sua boa saúde, que elas eram a melhor ginástica que as pessoas podem fazer para se manterem em forma...

Passemos agora, se você não se importa, a mais algumas questões teológicas. Em primeiro lugar, a quem ou a que podemos atribuir a epidemia atual e as doenças em geral?

Uma epidemia é uma doença contagiosa que se propaga. Tudo o que se pode dizer sobre doenças também pode ser dito sobre ela, exceto que seu caráter imenso que é imposto a uma região, a um país ou ao mundo inteiro (como é o caso atualmente), levanta questões adicionais. Não é surpreendente, no discurso religioso, ver o tema do Apocalipse, o fim do mundo, ou a idéia do castigo divino pelos pecados dos homens, com alusões ao dilúvio (Gn 6-7), o destino de Sodoma e Gomorra (Gn 19), a peste que dizimou o acampamento de Davi após o censo (2 Sam 24:15-) ou as sete pragas do Egito (Ex 7-11). Alguns esclarecimentos, portanto, são necessários.

Segundo a concepção Ortodoxa elaborada pelos Padres a partir da Bíblia, o pecado ancestral (que na tradição ocidental é chamado de pecado original) teve, no plano físico, três efeitos: passividade (da qual o sofrimento é uma forma predominante), corrupção (da qual a doença é a forma principal), e morte, que resulta desta última. O pecado de Adão e Eva consistiu em separar-se de Deus, o que resultou na perda da graça que lhes assegurava a impassibilidade, a incorruptibilidade e a imortalidade. Adão e Eva, sendo os protótipos da humanidade, consequentemente transmitiram aos seus descendentes a sua natureza humana que tinha sido alterada pelos efeitos deletérios do pecado deles. A desordem que afetou a natureza humana também afetou toda a natureza, pois o homem, separado de Deus, perdeu seu status de rei da criação e privou as demais criaturas da graça que ele lhes transmitia como mediador. Embora a criação fosse originalmente inteiramente boa, como Deus a criou (como nos é dito em Gênesis capítulo 1), o mal entrou nela como entrou no homem: um mal que não é apenas moral, mas também físico, e que resulta na desordem que afeta a ordem original da criação, assim como em processos que destroem o que Deus estabeleceu. A Providência de Deus, como observa Vladimir Lossky, tem impedido que a criação seja completamente destruída, mas a natureza tornou-se um campo de batalha no qual o bem e o mal se chocam constantemente. Os organismos vivos estão constantemente lutando para eliminar micróbios, bactérias, vírus ou alterações genéticas (devido ao envelhecimento ou fatores ambientais) que buscam destruí-los, até que, enfraquecidos pela velhice (que diminui suas defesas imunológicas), são finalmente derrotados e morrem. As bactérias ou vírus podem durante milênios afetar apenas espécies animais, ou serem hospedados por elas sem afetá-las, e de repente serem transmitidos aos seres humanos. É o que tem acontecido com as diferentes espécies de vírus que têm causado epidemias nas últimas décadas.

Você está apontando a culpa dos primeiros pais neste processo. Os pecados de seus descendentes, os nossos próprios pecados, desempenham um papel nesse processo? As orações encontradas na Grande Euchologion (o livro oficial de orações da Igreja) para tempos de epidemia, mas também os discursos de alguns bispos, sacerdotes ou monges, culpam ali os pecados de todos, vendo no que está acontecendo uma espécie de punição por causa dos pecados, e pedem arrependimento.

Segundo a concepção Ortodoxa (que difere neste ponto da concepção Católica do pecado original), a falta do próprio Adão e Eva é pessoal e não é transmitida aos seus descendentes; apenas os seus efeitos são transmitidos. Entretanto, seus descendentes, desde o início até os dias de hoje, como diz São Paulo no capítulo 5 da Epístola aos Romanos, pecaram de maneira semelhante à de Adão; imitaram-no e confirmaram o pecado dele e seus efeitos através de seus próprios pecados. Há, portanto, uma responsabilidade coletiva pelos males que afetam o mundo caído, o que justifica que se possa culpar o pecado e chamar ao arrependimento. Entretanto, isto se aplica a um nível geral, de modo a explicar a origem e o sustento de doenças e outros males, e não a um nível pessoal, para explicar se isso acontece com uma determinada pessoa ou grupo de pessoas. Embora algumas doenças possam ser atribuídas a faltas ou paixões pessoais (por exemplo, doenças relacionadas à alimentação ou bebida excessiva, ou doenças sexualmente transmissíveis), outras ocorrem independentemente da qualidade espiritual das pessoas que elas afetam. As crianças doentes não são culpadas de nenhuma falta; os santos não escapam das doenças e muitas vezes têm mais doenças do que outros que são moralmente desordenados. As epidemias às vezes atingem mosteiros inteiros; por exemplo, uma epidemia de peste atingiu os mosteiros da Tebaida depois da Páscoa em 346, matando um terço dos Padres do Deserto que lá viviam, incluindo São Pacômio, o pai do monaquismo cenobita; o sucessor que ele havia nomeado; e quase uma centena de monges em cada um dos grandes mosteiros da região. Durante as grandes epidemias de peste do passado, os observadores cristãos foram forçados a observar que a doença atingiu as pessoas de forma aleatória em termos de sua qualidade moral ou espiritual. A questão da relação da doença com o pecado da pessoa ou com o pecado de seus pais foi feita a Cristo, que respondeu a seus discípulos sobre o homem nascido cego: "Nem ele nem seus pais pecaram." A doença, portanto, tem uma relação original, principal e coletiva com o pecado, mas somente em uma minoria de casos ela tem uma relação atual e pessoal. Penso, portanto, que a questão do pecado e do arrependimento em orações ou sermões pode ser abordada, mas deve ser abordada de forma discreta. As pessoas que sofrem de doença não precisam de acusações de culpa somadas ao seu sofrimento, mas precisam de apoio, consolo, cuidado compassivo, e também de ajuda para assumir a responsabilidade espiritual pela sua doença e sofrimento, de modo que possam espiritualmente tirar proveito dela. Se o arrependimento tem um significado, este é como um momento de viragem, uma mudança de estado de espírito (que é o significado da palavra grega metanoia).  A doença dá origem a uma série de perguntas das quais ninguém pode escapar: Por quê? Por que eu? Por que agora? Por quanto tempo? O que será de mim? Toda doença constitui um questionamento que é muito mais vivo e profundo porque não é abstrato ou gratuito, mas sim parte de uma experiência ontológica. Esse questionamento é, muitas vezes, uma espécie de crucificação. Pois a doença sempre põe em questão mais ou menos os fundamentos, a estrutura e as formas de nossa existência, os equilíbrios adquiridos, a livre disposição das nossas faculdades físicas e mentais, nossos valores de referência, nossas relações com os outros e nossa própria vida, porque a morte aparece sempre mais evidente do que de costume (é o caso, em particular, desta epidemia, que tem provocado a morte imprevisível e rápida de pessoas, especialmente dos idosos, mas também dos mais jovens, sem que haja patologias graves subjacentes em todos os casos). A doença é uma oportunidade para que cada pessoa experimente sua fragilidade ontológica, sua dependência, e recorra a Deus como Aquele que pode ajudar a superá-la: se não fisicamente (pois, de fato, ocorrem, em resposta à oração, curas milagrosas), então, pelo menos espiritualmente, e lhe dê um sentido pelo qual ela se edifica, e sem o qual ela só se permite ser destruída.

Não é incomum, porém, encontrar nas orações do próprio Grande Euchologion ou em outras (por exemplo, cânones e acatistes), bem como nos discursos do clero que se multiplicaram recentemente na Internet, a idéia de que essa epidemia foi enviada por Deus (ou por seus arcanjos ou anjos) para despertar os homens, para conduzi-los ao arrependimento e à conversão, em um mundo que se tornou completamente materialista e totalmente esquecido de Deus.

Como acabo de dizer, concordo que esta provação (como qualquer provação na vida) é uma oportunidade de questionamento, consciência e retorno a Deus e a uma vida mais espiritual.

Já falei sobre isso no que diz respeito aos indivíduos. Mas é óbvio - e há muitos artigos na imprensa observando isto - que esta epidemia também põe em questão os fundamentos, a organização e o modo de vida materialista e consumista de nossas sociedades modernas; os falsos sentimentos de segurança que derivaram do progresso da ciência e da tecnologia; mostra também as ilusões do transhumanismo, porque, como dizem os especialistas, novos vírus continuarão a aparecer e as epidemias não só persistirão, como se multiplicarão no futuro, deixando frequentemente o homem impotente (basta pensar: ainda não foi encontrada vacina ou cura para o resfriado comum, que afeta grande parte da população a cada ano, e que é causado por um vírus da família dos coronavírus).

Mas, com todo respeito por essas orações e por esses clérigos aos quais você faz alusão, fico chocado com a forma como eles concebem Deus e Sua ação para com a humanidade. Esta é uma visão que era comum no Antigo Testamento, mas que o Novo Testamento mudou. No Velho Testamento, havia a idéia de que os justos eram prósperos porque eram recompensados por Deus, enquanto os pecadores eram punidos com justiça por todo tipo de males. O Novo Testamento pôs um fim a essa "lógica", e essa visão é prefigurada por Jó. Os discursos do clero a que você se refere assemelham-se aos dos amigos de Jó, que correspondem a esse silogismo: "Tu tens todo tipo de males, portanto Deus te castigou, e se Ele te castigou, é porque és um pecador". Jó se recusa a aceitar a idéia de que Deus pode tê-lo castigado. O Novo Testamento nos revela um Deus de amor, um Deus compassivo e misericordioso, cujo propósito é salvar a humanidade através do amor, não através do castigo. A idéia de que Deus teria espalhado esse vírus no mundo ou que o teria espalhado por seus anjos ou arcanjos (como lemos em alguns textos) me parece quase blasfema, mesmo com referência a uma pedagogia divina que usaria o mal para o bem, e assim, estranhamente, tiraria o bem do mal. Deus é para nós um Pai, nós somos seus filhos. Que pai entre nós teria a idéia de inocular seus filhos com um vírus com um propósito supostamente pedagógico? Que pai não sofre, ao contrário, ao ver seus filhos adoecerem, sofrerem e correrem o risco de morrer?

Alguns teólogos atribuem a Deus as causas da doença, do sofrimento e da morte, porque temem que, de maneira semelhante aos maniqueus, se não as atribuímos a Deus, poderemos considerar que há ao lado de Deus (o princípio do bem) um princípio do mal que compete com ele e, portanto, limita a onipotência que é um de seus atributos essenciais. Mas se tudo vem de Deus, devemos admitir também que ele é causa não só de epidemias, mas também de guerras, genocídios, campos de concentração, e que ele colocou Hitler, Stalin ou Pol-Pot no poder para torná-los instrumentos de sua suposta justiça e para educar as pessoas...

Na realidade, segundo os Padres, o mal tem apenas uma fonte: o pecado, ele próprio causado pelo mau uso do livre arbítrio do homem. Eles são também um efeito da ação do diabo e dos demônios (anjos caídos por terem também feito mau uso de seu livre arbítrio), cujo poder, após o pecado do primeiro homem, pôde se estabelecer no mundo: tendo o homem deixado de ser "o rei da criação", Satanás pôde se tornar "o príncipe deste mundo".

No que está acontecendo agora, é a ação do demônio que deve ser ressaltada, e não a de Deus, e em segundo lugar também a falta da pessoa na China que, tendo consumido ou tocado um animal portador do vírus (este era também o caso em todas as epidemias anteriores), transmitiu o efeito de sua falta a toda a humanidade, assim como Adão transmitiu o efeito de seu pecado a toda a humanidade.

O que você acabou de dizer levanta várias questões. Primeiro de tudo, alguns dizem que Deus criou todos os germes, todos os vírus, e que a própria morte está incluída na criação desde o início, e que, como diz Gênesis, tudo o que Deus criou é bom. 

Esta é realmente uma idéia encontrada entre alguns teólogos Católicos modernos (por exemplo, Teilhard de Chardin e seu discípulo Gustave Martelet), e que tem sido adotada por alguns teólogos Ortodoxos (por exemplo, John Zizioulas, Metropolita de Pergamon, e mais recentemente Arquimandrita Cirilo Hovorun). Eles têm uma concepção naturalista, que é parcialmente baseada na da ciência moderna. Nossa fé Ortodoxa é diferente: os Padres são unânimes em afirmar que Deus não criou a morte, e que a morte é conseqüência do pecado, bem como a doença e o sofrimento, que não pertenciam à condição paradisíaca original, e que, além disso, serão abolidos na futura condição paradisíaca, no Reino dos Céus.

A questão de saber se doença, sofrimento e morte são males exige uma resposta dupla.

No plano físico, antes de tudo, eles são inquestionavelmente males, porque são, como eu disse anteriormente, distúrbios, perturbações introduzidas no bom funcionamento dos organismos vivos criados por Deus. Mesmo do ponto de vista naturalista, saúde e vida correspondem ao estado normal para um ser vivo, enquanto que doença, enfermidade e morte constituem um estado anormal. A doença, como disse anteriormente, é uma forma de corrupção; é um processo de deterioração, destruição, aniquilação; e o sofrimento é um elemento que acompanha esse processo e atesta que algo em nosso corpo "não está certo". A natureza diabólica das doenças é muito clara em algumas delas: por exemplo, as doenças auto-imunes, onde os órgãos utilizam os recursos do corpo para destruírem a si mesmos (é uma espécie de suicídio); o câncer, que a partir de uma alteração genética produz tumores absurdos (que não desempenham nenhum papel sensato no organismo) e não têm outra finalidade que não seja o seu próprio crescimento em detrimento de outros órgãos, que então vampirizam e destroem pouco a pouco, utilizando, contra a terapêutica implementada contra eles, todos os recursos que o ser vivo acumulou, ao longo de milhões de anos, para se desenvolver e proteger; o vírus atual, que, como outros da mesma família, infiltra as células dos pulmões e secundariamente outros órgãos vitais, invade-os (como um inimigo faz contra um país), coloniza-os e impede o seu funcionamento ou perturba seriamente estes, a ponto de causar a morte.

No nível espiritual, doença, sofrimento e morte continuam sendo males devido à sua primeira origem (pecado), mas podem ser abordados e vivenciados espiritualmente de uma forma construtiva, e desta forma tornam-se bens - mas apenas bens espirituais. Por ocasião da doença e do sofrimento, quando o homem, como já disse, se aproxima da morte, ele pode recorrer a Deus, aproximar-se dEle e desenvolver diversas virtudes (isto é, disposições ou estados permanentes, que o assimilam a Deus e o unem a Ele). São Gregório Nazianzeno diz que, através da doença, muitos homens assim se tornaram santos.

Se Cristo morreu por nós, foi para vencer a morte e nos permitir, no final dos tempos, ressuscitar como Ele mesmo o fez. Mas Sua paixão e agonia na cruz também têm outro significado, que não enfatizamos o suficiente: ao sofrer e morrer, Ele aboliu o poder do sofrimento e da morte; Ele nos concedeu, se nos unirmos a Ele e assim recebermos a graça que Ele adquiriu para nós, não mais temer o sofrimento e melhorar-nos espiritualmente através disso, e não mais temer a morte, mas colocar nossa esperança na vida eterna, para que possamos dizer com São Paulo no capítulo 15 da primeira Epístola aos Coríntios: "Ó morte, onde está a tua vitória? Ó morte, onde está o teu aguilhão?"

Suas observações anteriores levantam outra questão: por que Deus, se é bom e todo-poderoso, não elimina a doença e o sofrimento neste mundo, e por que eles persistem quando Cristo os venceu para toda a humanidade, que Ele assumiu em sua pessoa?

Esta é uma forte objeção entre os ateus, e muitas vezes levanta dúvidas entre os crentes.

A resposta dos Padres é que Deus criou o homem livre, e respeita o livre arbítrio do homem, mesmo em suas conseqüências. Como o pecado se perpetua no mundo, suas conseqüências continuam a afetar a natureza humana e todo o cosmo.

Cristo removeu a necessidade do pecado, pôs um fim à tirania do diabo e tornou a morte inofensiva, mas não removeu o pecado, a ação dos demônios, a morte física, ou as conseqüências do pecado em geral, de modo a não forçar e negar o livre arbítrio que causou isso. No plano físico, o mundo caído permanece sujeito à sua própria lógica. Por esta razão, também, a doença afeta cada pessoa de maneira diferente, e isto é particularmente notável no caso de uma epidemia: de acordo com as constituições físicas individuais, afeta uns e poupa outros; afeta uns levemente e afeta outros severamente; causa a morte de uns e deixa outros vivos; mata adolescentes e poupa homens velhos.

Somente no final dos tempos se realizará a restauração de todas as coisas e aparecerá "um novo céu e uma nova terra", onde a ordem e a harmonia da natureza destruída pelo pecado serão restauradas numa natureza elevada a um modo superior de existência, onde os bens adquiridos por Cristo na sua obra redentora e deificadora da nossa natureza serão plenamente comunicados a todos os que se uniram a Ele.

O homem que vive em Cristo na Igreja, onde se encontra a plenitude da graça, recebe o "penhor do Espírito", conhece espiritualmente as primícias dos bens que estão por vir. Nesse plano espiritual, o pecado, o demônio, a morte e a corrupção já não têm mais poder sobre ele, não podem afetá-lo; ele está espiritualmente livre deles. Mas a incorruptibilidade e a imortalidade, se assim lhe forem asseguradas, só se tornarão reais para o seu corpo depois da Ressurreição e do Juízo, assim como a deificação de todo o seu ser só encontrará o seu pleno cumprimento neste último momento (cf. 1 Cor 15, 28).

Com essa expectativa, o cristianismo preocupa-se em aliviar o sofrimento humano e curar doenças, e sempre incentivou os meios utilizados para isso...

O amor ao próximo é, juntamente com o amor a Deus, a principal virtude defendida pelo cristianismo. O amor ao próximo implica compaixão, vontade de ajudá-lo em tudo, de consolá-lo, de apoiá-lo, de aliviá-lo do seu sofrimento, de curá-lo das suas doenças, de mantê-lo saudável. Os milagres realizados por Cristo e pelos apóstolos são um exemplo. É por isso que o cristianismo, desde o início, reconheceu os méritos da medicina, não hesitou em integrar a medicina "profana" praticada na sociedade em que nasceu e se desenvolveu, e inclusive esteve envolvido na origem da criação dos hospitais. Durante séculos, tanto no Oriente como no Ocidente, e até há relativamente pouco tempo, as enfermeiras eram freiras (na Alemanha, as enfermeiras ainda são chamadas de Krankenschwestern, "irmãs dos doentes"!). Na atual epidemia, todos os pesquisadores, médicos, enfermeiros, motoristas de ambulância, mas também todo o pessoal técnico e de manutenção, têm demonstrado dedicação e espírito de sacrifício, mesmo ao ponto de colocar em risco sua própria saúde e vida, o que está em todos os sentidos de acordo com os valores cristãos. Todas as igrejas os abençoam, e nós devemos apoiá-los fortemente com nossas orações.

Já que você disse que de alguma forma a natureza caída segue sua própria lógica, nossas orações podem ter um efeito sobre esta epidemia, para desacelerá-la ou detê-la?

Nosso dever é orar a Deus para que detenha esta epidemia. Mas, para que isso aconteça, todos teriam que se voltar em sua direção e pedir-lhe isso. Caso contrário, por respeito à livre escolha deles, ele não imporá sua onipotência àqueles que não querem reconhecê-lo e pedir sua ajuda. Esta é a razão pela qual a ação divina não se manifestou para deter as grandes epidemias do passado. Deus, por outro lado, tem respondido ao pedido de pequenos grupos unidos e tem milagrosamente parado epidemias localizadas. Do mesmo modo, brechas na lógica do mundo caído sempre foram feitas em favor de pessoas particulares, através da intervenção de Deus, da Mãe de Deus, ou dos santos. Mas, por definição, os milagres são exceções à ordem comum e habitual. O próprio Cristo não realizou curas coletivas, mas sempre curas individuais, e sempre, deve ser enfatizado, em conexão com um objetivo espiritual e ação espiritual concomitante (o perdão dos pecados) relacionada com a vida e o destino de uma pessoa. Isto me dá a oportunidade de lembrar que, assim como a doença pode ser espiritualmente utilizada para nosso benefício, a saúde preservada ou recuperada é inútil se não fizermos bom uso espiritual da mesma. Da mesma forma, uma das questões que nos é posta pela atual epidemia é: o que fizemos até agora com a nossa saúde, e o que faremos com ela se sobrevivermos?

Com relação às curas milagrosas realizadas por Cristo, vemos que elas foram concedidas às vezes a pedido das pessoas por ele curadas, às vezes a pedido de seus parentes. Isso nos lembra que é importante orar por nós mesmos, a fim de obter proteção e cura, mas também pelos nossos entes queridos, e mais amplamente por todas as pessoas, como fazem todos os santos que oram pelo mundo inteiro, pois, em sua própria pessoa, sentem-se solidários com todos.

Orações de todos os tipos têm florescido em sites Ortodoxos nas últimas semanas. Qual(is) oração(ões) você particularmente recomenda?

Toda oração é boa, porque nos aproxima de Deus e do próximo. Podemos nos dirigir a Cristo, à Mãe de Deus e a todos os santos, porque, como São Paisios, o Athonita, me disse durante um dos meus encontros com ele,  todo santo pode curar todas as doenças e os santos não têm ciúmes uns dos outros.

No entanto, continuo um pouco reticente quanto a certas formas de piedade que beiram à superstição, mas que são inevitáveis em tais circunstâncias: por exemplo, uma Santa Corona recentemente  emergiu do esquecimento; sem dúvida ela logo será acompanhada por São Virus (o bispo de Viena no século IV).

De minha parte, eu gosto muito e uso várias vezes ao dia a oração composta pelo Patriarca Daniel da Romênia, que é curta, simples e completa ao mesmo tempo. Eu modifiquei o texto muito levemente:
"Ó Senhor, nosso Deus, Tu que és rico em misericórdia e que com profunda sabedoria guias nossas vidas, ouve nossas orações, recebe nosso arrependimento por nossos pecados, põe um fim a esta epidemia. 
Tu que és o médico de nossas almas e de nossos corpos, dá saúde aos que sofrem com a doença, fazendo-os levantar-se prontamente de seu leito de dor, para que glorifiquem a Ti, o Salvador misericordioso. 
Preservai de todas as doenças aqueles que são saudáveis.  
Preservai-nos, Teus servos indignos, e a nossos pais e parentes. 
Abençoa, fortalece e guarda, Senhor, pela Tua graça, todos aqueles que, com amor pela humanidade e espírito de sacrifício, cuidam dos doentes em suas casas ou nos hospitais.
Remove toda doença e sofrimento do Teu povo, e ensina-nos a apreciar a vida e a saúde como dons que vêm de Ti. 
Concede-nos, Senhor, a Tua paz e enche nossos corações com uma fé inabalável na Tua proteção, esperança na Tua ajuda e amor por Ti e pelo nosso próximo. 
Porque a Ti cabe, ó nosso Deus, ter misericórdia de nós e nos salvar, e nós Te glorificamos: Pai, Filho e Espírito Santo, agora e sempre e pelos séculos dos séculos. 
Amém."



Entrevista em inglês: https://orthodoxie.com/en/the-spiritual-origin-nature-and-meaning-of-the-current-pandemic-an-interview-with-jean-claude-larchet-by-orthodoxie-com/

Entrevista em francês (original): https://orthodoxie.com/lorigine-la-nature-et-les-sens-de-la-pandemie-actuelle-une-interview-de-jean-claude-larchet-par-orthodoxie-com/ 

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