quarta-feira, 21 de agosto de 2019

A Recuperação da Deificação pelo Ocidente Cristão (Paul L. Gavrilyuk)

Como um arcaísmo antes desprezado se tornou um desideratum ecumênico

No início do século XX, a noção de deificação (theōsis, theopoiesis) representava tudo o que era geralmente considerado exótico e equivocado em relação à teologia ortodoxa. Em sua magnum opus História do Dogma, Adolf von Harnack, um importante historiador protestante da época, lamentou a direção errada que a teologia cristã adotou no século II: “Quando a religião cristã foi representada como a crença na encarnação de Deus e como a esperança segura da deificação do homem, uma especulação que originalmente esteve apenas na margem do conhecimento religioso foi transformada no ponto central do sistema e o conteúdo simples do Evangelho foi obscurecido”. [1] Para Harnack, a idéia de deificação era um sintoma de um mal mais grave, a saber, a helenização, que provocou a distorção e obscurecimento da simples mensagem bíblica da "Paternidade de Deus e da irmandade dos homens" pela metafísica grega. A conclusão do historiador alemão foi típica do seu tempo. [2]

Do outro lado do espectro teológico protestante, Karl Barth [3] também foi igualmente indiferente. Aceitar a divinização, sustentava Barth, era encorajar uma conversa muito abstrata sobre a natureza humana de Cristo e mudar o "centro cristológico" da soteriologia para a esfera nebulosa de uma "antropologia desagradável". [3] Os principais alvos da crítica sinuosa de Barth são os projetos de apoteose de Hegel e Feuerbach, [4] e que Barth viu como “a ameaça, no luteranismo, de uma divinização da natureza humana de Jesus Cristo e uma paralela des-divinização de sua divindade” [5]. A impressão geral é que Barth foi muito propenso a tornar a theosis culpada por associação, especialmente quando ele lista “a deificação da criatura” entre “as características da cristologia ebionita” [6] (uma verdadeira pirueta de imaginação histórica) e considera a (deplorável) devoção católica ao coração de Jesus como um exemplo de deificação. [7] Aparentemente, a desenvoltura polêmica às vezes liberta os teólogos da desanimadora responsabilidade de verificar a evidência histórica.

Parcialmente em reação a esse tipo de crítica, tornou-se comum os teólogos ortodoxos insistirem que a doutrina da deificação representa uma abordagem caracteristicamente “ortodoxo” do mistério da salvação e contrastarem essa doutrina com as teorias de redenção (na opinião deles, deficiente) que foram desenvolvidas por teólogos ocidentais do segundo milênio. [8] [...] É notável que, apesar de seu status exaltado, o conceito de deificação não seja mencionado explicitamente nas definições dogmáticas dos primeiros Sete Concílios Ecumênicos. A falta de precisão dogmática contribuiu para a considerável fluidez do conceito.

O final do século XX testemunhou uma mudança dramática na atitude dos teólogos ocidentais em relação ao conceito de deificação. A noção que antes era percebida pela maioria dos observadores ocidentais como estranha, através dos esforços conjuntos de numerosos estudiosos da última geração, está gradualmente sendo arrastada para o interior da tradição teológica ocidental. Agora é dito que um número crescente de teólogos ocidentais - Agostinho, Anselmo de Cantuária, [10] Tomás de Aquino, [11] João da Cruz, [12] Martinho Lutero, [13] João Calvino, [14] Lancelote Andrewes, [15] João e Carlos Wesley, [16] Jonathan Edwards, [17] até os Reformadores Radicais e assim por diante - ensinaram uma versão de deificação. [A] Esta é uma reversão formidável do destino, especialmente à luz das acusações de obscurecimento, idolatria e heresia contra a deificação em tempos menos ecumênicos. Embora seja prematuro falar em aceitação universal - e é improvável que alguns dos opositores convictos sejam convencidos [18] - vale a pena repetir que um número crescente de mentes teológicas ocidentais consideram a doutrina profundamente atraente. Este artigo discutirá alguns exemplos representativos dessa tendência e os fatores que explicam a crescente popularidade da doutrina.

Os primeiros críticos usualmente construíam a noção patrística de deificação como sendo apenas uma melhoria insignificante em relação à apoteose pagã, seguindo o modo dos antigos heróis gregos e imperadores romanos. Nessa leitura, não há muita diferença entre a observação do imperador Vespasiano, prematuramente morrendo de diarreia excessiva - “Eu acho que estou prestes a me tornar um deus” [19] - e a fórmula de permuta antiga, que aparece em  Irineu de Lyon: o Filho de Deus "tornou-se o que somos para nos tornar o que ele é" (Adv. Haer. 5. Praef.). Para o crédito deles, a maioria dos críticos atuais da deificação reconhece que a apoteose pagã e a theosis cristã não são exatamente a mesma coisa.

Em um estudo pioneiro, La divinization du chrétien d'aprés les pères grecs (1938, tradução inglesa publicada em 2002), Jules Gross argumentou que, ao desenvolver a doutrina da deificação, os Padres gregos utilizaram dos recursos filosóficos e religiosos do helenismo e transcenderam seu contexto pagão. A noção de que a felicidade humana consiste em alcançar semelhança com Deus (homoiose theō) era amplamente compartilhada na antiguidade tardia. Mas a teologia cristã transformou essa expectativa comum colocando-a no contexto da metafísica trinitária, tornando a encarnação fundacional para alcançar a semelhança divina, e insistindo que, qualquer que seja o significado de deificação, a noção não implica que um ser criado possa se tornar incriado.

Respondendo a Harnack e outros, Gross afirmou que, longe de ser uma instância de rendição intelectual ao helenismo pagão, a deificação foi um desenvolvimento legítimo das idéias bíblicas de filiação divina e incorporação em Cristo. A Deificação é “participar da natureza divina” (2 Pedro 1: 4), entendido como conformidade com as perfeições divinas, particularmente incorruptibilidade e imortalidade, e tornando-se pela graça o que Deus é por natureza. Gross concluiu que “a partir do quarto século a doutrina da divinização é fundamental para a maioria dos Padres gregos. Forma uma espécie de centro de sua soteriologia ”. [20]

A obra de Norman Russell, The Doctrine of Deification in the Greek Patristic Tradition (2004), baseia-se no estudo de Gross, superando-o em escopo e precisão metodológica. Russell oferece uma cuidadosa análise textual do vocabulário de deificação e contextualiza as contribuições de autores patrísticos individuais, considerando problemas teológicos mais amplos que eles tiveram que confrontar. Ele distingue o uso da linguagem de deificação em nominal (deificação como um título de honra), analógica (humanos tornam-se pela graça o que os Filho de Deus é por natureza), ética (imitação dos atributos morais de Deus), e realista (enfatizando transformação e participação em Deus) em várias fontes, mostrando como, por volta do quarto século, esses usos são integrados em uma visão amadurecida. [21] Com Gross, Russell vê o século IV como um período durante o qual a noção de deificação tornou-se um tema central na soteriologia patrística. Ao contrário de Gross, que conclui seu tratamento com João de Damasco, Russell propõe que a teologia de Máximo, o Confessor, é um ponto culminante no desenvolvimento da doutrina da deificação. O estudioso britânico também fornece um breve tratamento de autores bizantinos posteriores, como Simeão o Novo Teólogo e Gregório Palamas. Sendo amplamente expositivo, o importante trabalho de Russell não aborda explicitamente a crítica da deificação na teologia moderna não-ortodoxa. Essa tarefa é realizada em vários estudos históricos aos quais nos voltamos agora.

Em The Ground of Union: Deification em Aquinas e Palamas (1999), Anna Williams [B] compara dois pensadores, cujos projetos teológicos passaram a simbolizar a divisão dos caminhos entre o Ocidente e o Oriente. Mais especificamente, o método teológico escolástico de Aquino é comumente contrastado com a dependência de Palamas na experiência religiosa; a insistência de Palamas de que as energias divinas são incriadas parece contradizer a suposição de que a graça é criada; por fim, o otimismo de Aquino de que o intelecto beatificado pode "ver" a essência de Deus é improvável de ter sido compartilhado por Palamas, que insiste que a essência divina, ao contrário das energias incriadas, permanece incognoscível até mesmo no eschaton.

Williams argumenta que os sistemas teológicos de Tomás de Aquino e Palamas não estão tão distantes como se pensava anteriormente, e que a “base da união” entre eles reside precisamente na doutrina da deificação. Embora Williams admita que Tomás de Aquino raramente menciona a deificação pelo nome, ela, apesar disso, acha a ideia de deificação implícita não apenas no ensino de Aquino sobre virtudes e hábitos, e na santificação, mas também na estrutura geral da Summa Theologiae. [22] De acordo com Williams, os projetos de Aquino e Palamas convergem em uma tentativa comum de defender os dois pólos da doutrina da deificação: a transcendência de Deus e a participação da criatura em Deus. Williams sustenta que as diferenças entre Aquino e Palamas resultam do fato de que, no processo de elaborar suas respectivas visões, um teólogo se inclina demais em um pólo, enquanto negligencia o outro. [23] Na maioria dos casos, como ela argumenta, as diferenças são questões de ênfase e semântica, ao invés de discordância substancial. 

Introduzindo seu estudo, Williams reconhece que sua abordagem histórica é impulsionada por uma preocupação ecumênica para reverter a tendência de colocar Tomás de Aquino contra Palamas. [24] O projeto de Williams parece mais uma tentativa de um teólogo sistemático para aprimorar as teologias de Tomás de Aquino e Palamas, criando um domínio mais elevado no qual suas diferenças poderiam ser reconciliadas. Este domínio, como Williams argumenta de maneira convincente, é a metafísica participativa. É difícil ver, no entanto, como as diferenças substanciais nos projetos de Tomás de Aquino e Palamas poderiam ser reduzidas a questões de semântica. Por exemplo, os comentários de Palamas sobre a natureza do conhecimento teológico não chegam perto do rigor especulativo da cientia aristotélica de Aquino. É igualmente pouco convincente que a distinção essência / energia de Palamas seja puramente nocional e não real: afinal, as pessoas deificadas, mesmo no eschaton, participam da realidade das energias divinas, mas não na realidade da essência divina. Pode ser inteiramente legítimo interpretar a descrição de virtudes e hábitos de Tomás de Aquino como analogias de perfeição divina à luz da deificação - mas o próprio Tomás de Aquino não faz essa conexão. Lendo Aquino, Williams utiliza a mais ampla definição de deificação possível - participação em Deus - e então encontra vários exemplos dessa ideia na teologia de Tomás. Como o leitor verá, esse ampliamento do conceito de deificação é característico não apenas do estudo de Williams, mas também de outros trabalhos que buscam descobrir os pontos de contato entre os Padres Orientais e os teólogos ocidentais do segundo milênio.

Esse ampliamento do conceito [da theosis] é legítimo ou ele deveria ser definido de forma mais restritiva? Quanto do contexto de crenças e práticas concretas associadas à deificação nos Padres Gregos deve ser mantido? A maioria dos primeiros autores patrísticos nos deixa apenas com alusões dispersas sobre o significado da deificação. Somente no começo do século VI, Pseudo-Dionísio, o Areopagita, dá o que parece ser a mais antiga definição explícita na Hierarquia Eclesiástica 1. 3: “deificação é a obtenção da semelhança de Deus e a união com ele na medida do possível.” [25] Aqui o autor do Corpus Dionysiacum identifica a deificação com o apogeu da ascensão divina, a união mística. Mas outros autores (e Pseudo-Dionísio em outros lugares) tratam a deificação de forma mais expansiva, e incluem não apenas a união mística, mas todas as etapas do processo que leva a tal união como parte da theosis.

Parece ser relativamente incontroverso que os conceitos ontológicos de participação, semelhança divina e união com Deus sejam constitutivos da noção de deificação. Uma definição minimalista, assumida por Williams e outros, sustenta que a deificação é a participação em Deus.[26] Um corolário dessa definição, sob o pressuposto da metafísica participativa, é que todas as coisas são deificadas em um grau não especificado: participando do ser, todas as coisas existentes participam em Deus. Sendo tão central a noção de participação para entender a deificação, é necessário uma maior precisão no uso do termo.

Minha discussão sobre uma definição viável da deificação até agora careceu de uma referência cristológica explícita. É geralmente aceito que a fórmula de permuta “Deus se tornou homem para que o homem pudesse se tornar deus” (e suas numerosas versões) fundamenta a deificação na encarnação. Deve-se notar que o significado da fórmula de permuta, quaisquer que sejam seus méritos retóricos, está longe de ser auto-evidente. No contexto da controvérsia ariana, a fórmula de permuta pretendia expressar a crença de que na encarnação o Filho de Deus, permanecendo inteiramente Deus, assumiu a natureza humana; conseqüentemente, esse ato divino permitiu que os seres humanos, permanecendo seres criados, se tornassem semelhantes a Deus pela graça. Há também um conjunto de noções e práticas que esclarecem várias dimensões da deificação. A lista de tais noções inclui adoção filial, libertação, batalha espiritual, libertação do poder do demoníaco, purificação, perdão, justificação, reconciliação, iluminação, perfeição, cura, santificação, transfiguração, glorificação, regeneração, imitação de Cristo, incorporação em Cristo, comunhão, segunda criação, eleição, consumação escatológica, recapitulação, deiformidade, apropriação, sofianização, união mística e assim por diante. Em alguns contextos, a deificação funciona como um termo abrangente que cobre a maioria dessas noções, enquanto em outros contextos a deificação é colocada lado a lado com essas noções como algo completamente distinto delas. No entanto, é comum que os teólogos não-ortodoxos contemporâneos simplesmente reduzam a deificação em uma dessas categorias. Em um artigo recente, Roger Olson questiona este movimento: “É confuso encontrar 'deificação' sendo usada como algo que por muito tempo tem sido chamado 'santificação' ou 'união com Cristo', ou 'comunhão com Deus', ou mesmo 'estar pleno de Deus '. Por que agora adotar a terminologia da deificação se alguém não está disposto a assumir o antigo significado de elevação acima da humanidade na bondade criada através das energias divinas?” [27] [C] Olson segue Vladimir Lossky e Georgios Mantzaridis na suposição de que uma doutrina adequada da deificação deve incluir a distinção essência / energia de Palamas como seu elemento constitutivo. [28]

Para complicar ainda mais as coisas, o contexto patrístico mais amplo da theosis pressupõe também certos pressupostos e práticas antropológicas conducentes à deificação. Autores patrísticos comumente assumem que a luta ascética e a participação na vida sacramental da Igreja são pré-requisitos da deificação. Tal suposição, por sua vez, depende da compreensão sinérgica da operação da graça e do livre arbítrio, bem como de uma visão “elevada” dos sacramentos. Na maioria das discussões sobre deificação nos autores ocidentais, essas suposições antropológicas e sacramentais são convenientemente ignoradas.

Consideremos, por exemplo, a sensacional reinterpretação da doutrina de justificação de Lutero à luz da deificação proposta por um grupo de estudiosos finlandeses chefiados por Tuomo Mannermaa. [29] É revelador que esta linha de interpretação surgiu como resultado da participação de Mannermaa no diálogo ecumênico entre os representantes da Igreja Evangélica Luterana da Finlândia e da Igreja Ortodoxa Russa. [30] De acordo com Mannermaa, a theosis “como expressão de uma estrutura fundamental na teologia de Martinho Lutero” era “improvável até como uma linha de questionamento” uma geração atrás, e “é de fato um tipo extremo de formulação”. [31] Deve ser observado que Mannermaa exagera um pouco o caráter revolucionário de sua descoberta, já que, como o leitor pode recordar, a presença da noção no vocabulário da teologia luterana causou a ira de Karl Barth no início do século.

Os estudiosos finlandeses - mais notavelmente, Mannermaa, Risto Saarinen e Simo Peura - argumentam que Lutero defendia uma versão da metafísica participativa e que a justificação para ele envolvia uma transformação ontológica do fiel como resultado da união com Cristo na fé. É relativamente incontestável que, especialmente em seus primeiros escritos, Lutero recorreu ao conceito de deificação. No entanto, as confissões luteranas posteriores encontraram muito pouco lugar para essa noção. Ainda é um assunto de debate nos estudos sobre Lutero o quão essencial essas noções são para a explicação de Lutero da justificação e se a postura filosófica de Lutero era consistentemente realista.

Está além do escopo deste artigo argumentar a favor ou contra a interpretação finlandesa. Em vez disso, gostaria de voltar à questão metodológica de como o significado da deificação é tanto ampliado quanto deslocado nesta discussão. Consistente com fontes patrísticas, duas idéias são consideradas constitutivas da theosis: participação em Deus e a habitação de Cristo. [32] A extensão da noção de deificação leva a dois problemas.

Primeiro, a deificação é subordinada a um conceito mais geral de justificação - algo que não é feito por nenhum dos autores patrísticos. De fato, na maioria dos tratamentos patrísticos da theosis, a justificação não desempenha nenhum papel. À luz da definição da theosis como a participação em Deus, o segundo ponto parece ser um engano de categoria embaraçoso: todas as coisas participam em Deus, mas somente os seres racionais podem ser justificados. Parece, portanto, que a noção de justificação não pode abranger a deificação (como definida anteriormente).

Em segundo lugar, “a deificação pela graça somente através da fé somente” tem muito pouco valor na Ortodoxia. A maioria dos autores patrísticos simplesmente se recusam a interpretar “obras” como se estivessem em competição causal com a graça. A primazia soteriológica e a necessidade da graça não são enfraquecidas pelo fato de que a aceitação humana da ajuda divina envolve muita luta e esforço ascético. Mas a insistência de Lutero na aceitação passiva da graça não deixa muito espaço para o paradoxo patrístico da passividade humana e a cooperação ativa do livre-arbítrio com a graça - um ponto no qual as antropologias patrística e luterana gregas se separam. Da mesma forma, a ênfase na fé, embora presente em alguns tratamentos patrísticos da deificação, nunca deve excluir a importância de outras virtudes. Para os Padres Gregos, a deificação envolve uma batalha espiritual ao longo da vida, a superação dos vícios e a subida da escada das virtudes (comumente avançada na linguagem que permite uma leitura tanto agostiniana quanto pelagiana). Os pressupostos e práticas antropológicas associadas à deificação em Lutero estão em uma categoria própria. Por mais ecumênico que a discussão sobre a theosis na versão de Lutero da metafísica participativa possa ser, a profunda mudança no significado da deificação não deve ser ignorada.

Em Calvin, Participation and the Gift (2007), Todd Billings explora a possibilidade de que a teologia de Calvino também possa conter um tema de deificação. O ponto central do Billings é semelhante ao de Williams e Mannermaa, já que ele também foca no entendimento de Calvino sobre a participação humana em Deus. No entanto, ao contrário de Williams e Mannermaa, Billings argumenta que poderia haver uma maneira distinta, porém legítima, de falar sobre deificação no Ocidente, que não segue o Oriente Bizantino em detalhes. [33] Billings corretamente adverte que a presença dos temas de união, participação e adoção em um dado autor da Reforma não é suficiente para atribuir ao autor uma doutrina da theosis similar àquela encontrada entre os Padres Gregos.[34] Billings reconhece que a rejeição de Calvino ao sinergismo da graça e do livre arbítrio, assim como a insistência de Calvino na imputação da justiça de Cristo ao fiel, torna a consideração do Reformador sobre a deificação bastante distinta daquela dos Padres Gregos. Eu também acrescentaria que a teologia sacramental de Calvino, apesar de todas as suas complexidades e ambiguidades, carece da ênfase distintiva da teologia patrística na Eucaristia como principal veículo da deificação.

Uma importante coleção de ensaios, co-editada por Michael Christensen e Jeffrey Wittung sob o título Partakers of the Divine Nature: The History and Development of Deification in the Christian Tradition (2007) é baseada nos artigos entregues em uma conferência realizada na Drew University em maio de 2004. [35] Este volume historicamente estruturado, de autoria conjunta de dezoito colaboradores, abrange fontes bíblicas selecionadas (epístolas Paulinas e Petrinas), material patrístico (incluindo Efraim e o autor sírio e copta-árabe Bulus al Bushi), bem como Anselmo, Lutero, Calvino, João Wesley, Sergius Bulgakov e Karl Rahner. Embora vários períodos recebam cobertura desigual - por exemplo, a discussão dos teólogos medievais ocidentais é limitada principalmente a Anselmo - o volume supera todos os trabalhos publicados anteriormente sobre deificação no âmbito histórico. Os contribuintes para o volume baseiam-se nos estudos discutidos anteriormente e também se aventuram em campos antes inexplorados.

Infelizmente, as considerações de espaço permitem-me discutir apenas duas contribuições para este importante volume. Refletindo sobre o lugar da deificação na teologia ortodoxa, Andrew Louth propõe que para a Ortodoxia, a theosis não é um theologoumenon isolado (ou seja, opinião teológica), mas um tema de significado estrutural, um fio condutor presente nas doutrinas da encarnação, cosmologia, escatologia, antropologia e soteriologia. À luz da deificação como o telos da criação, a encarnação se torna mais do que uma operação de resgate divina destinada a reverter as conseqüências da Queda. A deificação fornece o contexto para recuperar o significado cósmico da encarnação: a união das naturezas divina e humana em Cristo torna-se o fundamento da união escatológica de todos os seres criados em Deus. [36]

Examinando o estado atual das pesquisas sobre deificação nos autores ocidentais, Gösta Hallonsten oferece uma nota de cautela que há muito precisava ser dita. O autor observa que há uma falta de definição clara da theosis no trabalho de Williams sobre Tomás de Aquino. A deificação é identificada de forma variada com participação em Deus, união com Deus e santificação. No entanto, como Hallonsten observa corretamente, a presença da doutrina da santificação em Aquino, mesmo que compatível com alguns aspectos da doutrina ortodoxa da theosis, não implica que Tomás de Aquino tenha uma doutrina de deificação.[37] Hallonsten expressa reservas semelhantes no caso da compreensão de Lutero sobre a incorporação em Cristo. Hallonsten propõe uma distinção útil entre tema e doutrina da theosis. A deificação como tema pode envolver noções tais como participação na natureza divina, adoção filial, união com Deus e assim por diante. A doutrina da theosis, insiste Hallonsten, precisa ser definida com mais precisão. A doutrina propriamente dita deve incluir certos pressupostos antropológicos e uma visão soteriológica completa.[38] A valiosa distinção de Hallonsten entre tema e doutrina foi adotada por Billings em seu trabalho sobre Calvino.

A recuperação da deificação em autores ocidentais empreendida por estudiosos contemporâneos segue duas linhas: alguns enfatizam que o significado da deificação em um determinado autor ocidental é fundamentalmente idêntico ou contínuo ao uso patrístico do conceito (Williams, Mannermaa); enquanto outros falam mais cautelosamente de uma distinta reinterpretação ocidental do tema da deificação (Hallonsten, Billings, Olson). A segunda interpretação é mais plausível historicamente, embora talvez menos atraente ecumenicamente.

Além da distinção de Hallonsten entre tema e doutrina da deificação, deve-se também acrescentar a tipologia útil de Norman Russell de usos nominais, analógicos, éticos e realistas da linguagem da deificação. A definição mais ampla da deificação inclui ideias como participação em Deus, semelhança de Deus e união com Cristo, juntamente com a fórmula de permuta. Uma compreensão consideravelmente mais desenvolvida da deificação inclui a antropologia sinérgica, o realismo sacramental e a distinção essência / energia.

De acordo com os estudos históricos pesquisados anteriormente, o consenso sobre a deificação entre Palamas, Aquino, Lutero e Calvino equivale à proposição de que cada teólogo adotou uma versão da metafísica participativa. [39] Assim, o consenso é alcançado apenas para a mais ampla definição possível da deificação e não para a definição mais desenvolvida. Às vezes, esses quatro teólogos recorrem às mesmas imagens bíblicas em suas respectivas soteriologias. Deve-se enfatizar, entretanto, que as diferenças em suas pressuposições antropológicas, em suas compreensões da operação da graça e em suas teologias sacramentais não podem ser reduzidas à semântica.

A recuperação atual do tema da deificação em um número impressionante de autoridades teológicas ocidentais não pode ser atribuída simplesmente ao diligente trabalho de escavação histórica. É provavelmente mais preciso descrever a recuperação da deificação como um feito teológico disfarçado de teologia histórica. Por exemplo, a insistência de Mannermaa de que a theosis é uma "estrutura fundamental" na teologia de Lutero, quaisquer que sejam os méritos históricos de tal afirmação, teve o impacto de lançar uma luz muito diferente, talvez até mesmo incoerente, na doutrina luterana da justificação forense. Portanto, a descoberta da theosis em Lutero não deve ser interpretada incorretamente como um exercício ecumênico benigno. É uma tentativa corajosa de revisar a doutrina “sobre a qual a igreja [luterana] fica de pé ou cai”. Duas coisas acontecem no processo: a explicação padrão da soteriologia de Lutero sofre uma alteração e o significado da deificação muda consideravelmente. A justificação não é mais uma "ficção legal"; a theosis é agora uma espécie de justificação. Tais movimentos envolvem uma constante ida e vinda entre a exposição histórica dos escritos de Lutero e a teologia construtiva. Embora as conseqüências de se falar de theosis em Aquino, ou em alguns teólogos anglicanos e nos Wesleys, sejam menos sísmicas, o tamanho do ampliamento conceitual que tal movimento exige coloca os estudos recentes em uma categoria mista de exposições-históricas-que-se-tornaram-propostas-ecumênicas.

Surge uma pergunta: o que explicaria tal apelo transconfessional da idéia de deificação hoje? Minhas respostas a essa pergunta serão reconhecidamente parciais e provisórias. Obviamente, há agora um interesse mais sistemático entre os teólogos ocidentais na herança do cristianismo do oriente. As rejeições simplistas das distintas afirmações teológicas da tradição ortodoxa, tão comuns no tempo de Harnack, são raras hoje em dia. As acusações retóricas de que a doutrina da deificação é uma heresia ou um absurdo poético estão ausentes das discussões contemporâneas.

Há fortes indícios de que estamos vivendo uma nova onda de ressourcement. Ao contrário da primeira onda, que produziu a nouvelle théologie no catolicismo romano, esta nova onda é transconfessional, envolvendo estudiosos da Igreja Católica Romana, Evangélica, Protestante e Anglicana. O resultado é uma reformulação do campo da teologia sistemática, informada por um envolvimento mais profundo com recursos patrísticos e maior sensibilidade ecumênica. Nesse sentido, Deification and Grace (2007), de Daniel Keating, publicado como parte da série “Introduções à Doutrina Católica” é uma exposição bem informada e lúcida das riquezas da noção patrística da deificação, que, como Keating argumenta, deveria ser totalmente possuída pelo Ocidente. [40] Na teologia católica romana, os predecessores de Keating, que também procuraram recuperar a noção de deificação, incluem Teilhard de Chardin, Hans von Balthasar e Catherine Mowry LaCugna. Entre os luteranos, os resultados controversos da pesquisa finlandesa foram adotados por Carl Braaten e Robert Jenson. Em outras comunhões cristãs, o interesse em nosso tema é igualmente forte. [41]

A deificação oferece uma visão de redenção que move a discussão para além dos opostos tradicionais de, digamos, teorias de substituição penal e influência moral da expiação. Certamente, a ênfase no caráter transformador dos dons da graça, característica do movimento carismático, pode ser melhor adaptado em categorias terapêuticas, como a deificação, do que em categorias jurídicas. Além disso, a linguagem da deificação tende a promover o uso de categorias ontológicas mais abrangentes na soteriologia, e não apenas categorias jurídicas e morais. Quando a noção de participação da criatura em Deus é colocada no coração da teologia - seja como pressuposição, ou como meta, ou ambos - a relação entre as ordens natural e sobrenatural, teologia natural e revelada, liberdade e graça, esferas secular e sagrada, é reconcebida.

Como um exemplo de tal reconceituação, considere o seguinte manifesto teológico: “O arcabouço teológico central da ortodoxia radical é a participação desenvolvida por Platão e reelaborada no cristianismo, porque qualquer configuração alternativa forçosamente reserva um território independente de Deus. Este último pode levar apenas ao niilismo (embora em diferentes formas). A participação, no entanto, recusa qualquer reserva de território criado, ao passo que permite às coisas finitas sua própria integridade.” [42] Embora seja duvidoso se a metafísica participativa é a única ontologia que evita as armadilhas do niilismo, não se pode duvidar que essa ontologia é incompatível com a pressuposto moderno da esfera auto-enclausurada, autoexplicativa e autoperpetuadora do secular.

O renascimento do tema da theosis na teologia sistemática contemporânea é uma medida da disposição dos teólogos ocidentais de se engajar construtivamente com uma idéia tipicamente “oriental”. Claramente, a noção de theosis não é mais “propriedade” do Oriente cristão, se tal propriedade unilateral fosse alguma vez uma possibilidade histórica. Como enfatizei neste artigo de revisão, nas discussões ecumênicas o significado da deificação é freqüentemente ampliado indefinidamente. Se eu puder arriscar uma previsão condicional, a deificação, desde que suas implicações completas sejam realizadas, funcionará como uma bomba-relógio no devido tempo produzindo uma "destruição criativa" das visões soteriológicas desenvolvidas pelas Igrejas da Reforma. Se a idéia terá o poder de aproximar essas igrejas ao Oriente cristão em outros aspectos, por exemplo, desenvolvendo uma compreensão sacramental do mundo ou uma antropologia sinérgica, o tempo mostrará.

Paul L. Gavrilyuk - The retrieval of Deification: How a once-despised archaism became an ecumenical desideratum 


NOTAS


[A] Nota do tradutor. Acrescento aqui um comentário pertinente do teólogo ortodoxo Andrew Louth: 
A doutrina da deificação deixou de ter um papel central na teologia ocidental a partir do século XII, embora tenha tido um lugar continuado entre os místicos. Tal abandono implicou sua marginalização, e suspeita, e também fascinação. (Embora ainda seja importante no místico Bernardo de Claraval, está ausente em Pedro Lombardo, e Aquino só usa a linguagem da deificatio em relação à natureza humana de Cristo, não dos seres humanos.) Não faz mais parte do padrão da teologia católica ou protestante contemporânea; nas tentativas ocidentais de compreendê-la, consequentemente, assimilaram-na a um quadro estranho, e não surpreendentemente, ela se encaixa ali de maneira muito desajustada. (Andrew Louth, “The Place of Theosis in Orthodox Theology”) 

[B] Nota do tradutor. 

Sobre o livro The Ground of Union: Deification in Aquinas and Palamas da A.N. Williams que tenta conciliar o pensamento de Tomás de Aquino e São Gregório Palamas acrescento duas críticas. A primeira feita pelo David Bradshaw, autor do livro Aristotle East and West. A segunda pelo teólogo católico romano Gösta Hallonsten. Esse teólogo faz uma importante distinção entre o tema da theosis e a doutrina da theosis, pois, como foi dito no artigo acima: "a deificação como tema pode envolver noções tais como participação na natureza divina, adoção filial, união com Deus e assim por diante. A doutrina da theosis, insiste Hallonsten, precisa ser definida com mais precisão. A doutrina propriamente dita deve incluir certos pressupostos antropológicos e uma visão soteriológica completa."

David Bradshaw - The Ground of Union: Deification in Aquinas and Palamas por A.N. Williams. Journal of the History of Philosophy 38 (2000), 586-88.
A importância de Palamas para a história da filosofia reside no fato de que ele apresenta uma versão do pensamento cristão que é profundamente enraizado na tradição, e totalmente ortodoxo, mas não deve nada ao escolasticismo ocidental. Uma rápida comparação com Aquino revela vários pontos de divergência. (1) Enquanto Aquino mantém  que todos os atributos e atividades divinas são idênticos à essência divina, sendo as distinções entre eles meramente quoad nos, Palamas mantém que a distinção entre a ousia (essência) divina e energeia não é apenas imposta por nossa perspectiva, mas é verdadeiramente presente em Deus. (2) Enquanto Aquino pouco fala sobre deificação e explicitamente reserva a visão da essência divina para a vida após a morte, Palamas insiste que a deificação é possível nesta vida e que a condição daqueles que a experimentam é similar (embora, claro, não idêntica) a dos bem-aventurados após a ressurreição. (3) Enquanto que Aquino permite que os bem-aventurados, em última análise, alcancem uma visão da essência divina, Palamas mantém que a ousia (essência) divina é intrinsecamente incognoscível para as criaturas. [...] 
The Ground of Union: Deification in Aquinas and Palamas por A.N. Williams, é a primeira comparação de tamanho de livro dessas duas figuras fundamentais. É uma revisão da tese de doutorado da autora, e tem uma certa rigidez característica do gênero; no entanto, é claro e bem informado, e Williams deve ser elogiada por sua tentativa de compreender ambos autores com simpatia. Sua tese geral é que Aquino e Palamas são muito mais próximos do que parecem à primeira vista. Em particular, Tomás de Aquino possui uma doutrina de deificação, embora raramente use o termo, e a distinção de Palamas entre ousia (essência) e energeia é "nominal" em vez de "real". 
Eu não acho que a tentativa de reconciliação seja um sucesso. É verdade que, para Aquino, a graça é "uma participação da natureza divina" e, portanto, um meio de deificação. Mas isso não apaga as diferenças consideráveis entre os dois autores em sua compreensão do que é a deificação e como ela ocorre. Aquino distingue incisivamente entre as operações inferenciais da razão natural e da fé e a visão direta da essência divina (S.T. I Q. 12, art. 11-13; S.C.G.III.39-40, 47). Nesta vida presente há apenas o primeiro; qualquer conhecimento mais direto de Deus só pode ocorrer num estado de êxtase que abandona os sentidos e é "separado desta vida mortal". Para Palamas, em contraste, a luz incriada pode ser vista com olhos corporais, e essa percepção elevada é a condição normal e duradoura daqueles que a alcançaram. Subjacente a essas diferenças está outra: para Palamas, com sua ênfase ascética e monástica, a deificação é uma transformação tanto da carne como da alma. É surpreendente que Williams diga quase nada sobre as diferentes atitudes de Tomás de Aquino e Palamas em relação ao corpo e aos sentidos, pois esta é certamente uma das diferenças cruciais entre eles. 
A ideia de que a distinção da ousia (essência) e energeia é meramente nominal também não se mantém após um exame cuidadoso. Williams defende essa ideia baseando-se na relutância de Palamas em falar da energeia como uma "realidade" que é distinta da mesma forma que a essência divina é distinta das três hipóstases. Mas falar assim apenas distrai o leitor da questão importante; a questão importante é se Palamas pensa que a distinção existe independentemente do pensamento humano ou é meramente quoad nos. A resposta é claramente a primeira (ou seja, é uma distinção independente do pensamento humano). Ele não apenas afirma uma relação causal entre a ousia e as energeiai (até mesmo seguindo Máximo, o Confessor, falando das energeiai como "obras" de Deus), ele também dá as energeiai atributos que não poderiam pertencer à ousia, como de ser plural e de vir a ser e passar no tempo.
Gosta Hallonsten  - Theosis in Recent Research: A Renewal of Interest and a Need for Clarity (Theosis em Pesquisas Recentes: Uma Renovação de Interesse e uma Necessidade de Clareza)
A monografia de A. N. Williams oferece referências mais extensas às doutrinas patrísticas e ortodoxas da deificação, mas ela nunca define expressamente o que ela quer dizer com doutrina da theosis. Ela freqüentemente usa essa terminologia como uma caracterização não apenas da teologia de Gregório Palamas, mas também da de São Tomás. Ela admite, no entanto, que o próprio Thomas raramente fala sobre theosis expressis verbis. Além disso, embora o título do livro pareça equiparar a deificação à união com Deus, às vezes a autora, quase de passagem, define a theosis como santificação. Embora essas duas doutrinas não sejam mutuamente exclusivas, a doutrina da theosis tradicionalmente inclui a santificação e é, de fato, muito mais abrangente. Se encontrarmos em Tomás uma doutrina de santificação que é compatível com o conceito de santificação incluído na doutrina ortodoxa da theosis, isso não significa que a doutrina da santificação em São Tomás necessariamente implique uma doutrina da theosis. [...]

Devemos também considerar aqui o que exatamente se entende por doutrina da deificação no sentido ortodoxo. A escola finlandesa, assim como Williams e muitos outros estudiosos contemporâneos, parecem pensar que o cerne da doutrina da deificação é a participação na vida divina. Essa conclusão parece óbvia, uma vez que se toma como ponto de partida o tema da theosis, que de fato lida principalmente com o objetivo em termos de participação na vida divina. Além disso, isso é sugerido pelas duas principais referências das escrituras. No entanto, se a doutrina da theosis de acordo com os Padres Gregos ou a teologia ortodoxa atual é examinada, será percebido que a deificação como doutrina não é apenas sobre o objetivo final, mas é concebida como uma doutrina abrangente envolvendo toda a economia da salvação. [...] 
Referindo-se à comparação de Williams entre Tomás de Aquino e Palamas, o mais surpreendente é que ela deixa de lado todo esse problema. Sua tese é que ambos os pensadores têm uma doutrina de participação dos seres humanos na vida de Deus, o que é verdade. Como foi dito anteriormente, o simples fato de ter uma doutrina de participação de qualquer tipo, junto com o uso de palavras como deificação, participação da natureza divina, adoção e filiação, para Williams equivale a ter uma doutrina de deificação. O que falta em seu livro é uma discussão real das diferenças entre os dois tipos de participação que Aquino e Palamas ensinam, respectivamente. Esta é uma conseqüência inevitável, tanto quanto eu posso ver, de falta de compreensão da doutrina integral da theosis de acordo com a tradição oriental. [...] Eu acho que a discussão da deificação poderia ser beneficiada com a idéia de que há três nomes diferentes para ela, ou mais precisamente, que a theosis pode se referir a três fenômenos diferentes, que podem estar interconectados - mas nem sempre. Eles são os seguintes: 
1. Primeiro, há o tema da theosis, que na maioria das vezes está relacionado com temas escriturais similares, como adoção e filiação. Embora o tema da theosis seja certamente encontrado na maioria dos escritores cristãos ao longo das eras, isso não deve, entretanto, nos induzir ao erro de falar sobre uma doutrina da theosis. Por uma questão de clareza, gostaria de salientar aqui que o tema da theosis inclui o tema da "permuta feliz"; o admirável commercium.  
2. Segundo, a theosis está conectada a uma certa antropologia, freqüentemente baseada na distinção entre imagem e semelhança e sempre teleologicamente orientada de maneira dinâmica em relação ao protótipo. Este protótipo, a verdadeira imagem de Deus, é Cristo. Assim, a importância da Encarnação como ponto central na economia da salvação. Essa antropologia, além disso, baseia-se ou implica uma visão da relação entre a criação e seu Criador, que é caracterizada pela causalidade formal e implica a presença e ação contínuas da graça ou das energias de Deus desde o início até o fim. 
3. Terceiro, a theosis é uma doutrina abrangente que envolve toda a economia da salvação. Todo o plano de Deus e sua realização da criação através da encarnação, salvação, santificação e o eschaton estão incluídos nesta visão abrangente.. 
Os pontos 2 e 3 estão intimamente juntos, enquanto o ponto 1 é mais independente. Não há dúvida de que existem outras classificações, pois a abrangência desse tópico é um tanto elusiva. No entanto, espero que meu ponto principal leve a uma discussão mais aprofundada, a saber, que uma distinção deve ser feita entre o tema e a doutrina da theosis, e que o rótulo “doutrina da theosis” deveria preferencialmente ser reservado para a doutrina integral da deificação apresentada pela tradição ortodoxa. Promover a compreensão cristã mútua é uma coisa boa. Nós não alcançamos esse objetivo, no entanto, simplesmente por meio da interpretação de similaridades como identidades.

[C] Nota do tradutor. "Bondade criada" não tem a ver com a deificação. O autor citado aqui, Roger Olson, aparentemente se engana. O homem participa nas energias incriadas (incluindo a bondade) de Deus. A definição de deificação utilizada aqui já uma versão diluída se o autor de fato pensa que a bondade é criada. 

1   Adolf von Harnack, History of Dogma, trans. Neil Buchanan (Boston, MA: Little, Brown, and Company, 1901), Vol. 2, p. 318. Como Fergus Kerr observa, “basta apenas rastrear as referências à deificação no índice do ótimo trabalho de Hamack para ver como o tema o deixa irritado.” Veja Fergus Kerr, After Aquinas: Versions of Thomism (Oxford: Blackwell, 2002), p. 155.

2 Veja Stephen Finlan e Vladimir Kharlamov, eds. Theosis: Deification in Christian Theology (Eugene, OR: Pickwick Publications, 2006), p. 8 n. 20, 21.

3   Karl Barth, Church Dogmatics, W. 2. The Doctrine of Reconciliation, editado por G. W. Bromiley
e T. F. Torrance, (Edinburgh: T. & T. Clark, 1958), §64, pp. 81-82. 

4 Karl Barth, CD, I.2. §22, p. 759.

5 Karl Barth, CD, W. 2. §64, p. 68; IV. 1. §59, 181.

6 Karl Barth, CD, I. 2. §1, p. 19.

7 Karl Barth, CD, I. 2. §15, p. 138.

8 Veja Vladimir Lossky, “Redemption and Deification,” em In the Image and Likeness of God, editado por John H. Erickson e Thomas E. Bird,(Crestwood, NY: St Vladimir’s Seminary Press, 1974/2001), p. 99, onde a deificação é nitidamente contrastada com a teoria da satisfação de Anselmo. Mais recentemente, veja Robert G. Stephanopoulos, “The Doctrine of Theosis,” em The New Man: an Orthodox and Reformed Dialogue (New Brunswick, NJ: Agora Books, 1973), pp. 149-161; Daniel B. Clendenin, “Partakers of Divinity: The Orthodox Doctrine of Theosis,” Journal of the Evangelical Theological Society 37/3 (September, 1994), pp. 365-379; at p. 365.

9 Veja, e.g., Emil Bartos, Deification in Eastern Orthodox Theology (Eugene, OR: Wipf & Stock, 1999); Georgios I. Mantzaridis, The Deification of Man (Crestwood, NY: St Vladimir’s Semi­nary Press, 1984).

10 N. R. Kerr, “St Anselm: Theoria and the Doctrinal Logic of Perfection,” em M. J. Christensen e Jeffrey A. Wittung, eds., Partakers of the Divine Nature: The History and Development of Deification in the Christian Traditions (Grand Rapids, MI: Baker Academic, 2007).

11  A. N. Williams, The Ground of Union (Oxford: Oxford University Press, 1999).

12 David B. Hart “The Bright Morning of the Soul: John of the Cross on Theosis,” Pro Ecclesia 12/3 (Summer, 2003), pp. 324-344.

13 Carl E. Braaten and Robert W. Jenson,eds., Union With Christ: The New Finnish Interpretation of Luther (Grand Rapids, MI: Wm. B. Eerdmans Publishing Company, 1998).

14  J. Todd Billings, Calvin, Participation, and the Gift: The Activity of Believers in Union with Christ
(Oxford: Oxford University Press, 2008).

15 A. M. Allchin, Participation in God: A Forgotten Strand in Anglican Tradition (Wilton, CT: Morehouse-Barlow, 1984).

16 S. T. Kimbrough, “Theosis in the Writings of Charles Wesley”, St Vladimir’s Theological Quarterly 52 (2008), pp. 199-212.

17   Richard B. Steele, “Transfiguring Light: The Moral Beauty of the Christian Life According to
Gregory Palamas and Jonathan Edwards,” St Vladimir’s Theological Quarterly 52 (2008), pp. 403-439.

18   Por exemplo, Professor Bruce McCormack do Princeton Theological Seminary chamou a idéia de deificação “idólatra” numa palestra pública dada no Providence College como parte do simpósio “Divine Impassibility and the Mystery of Human Suffering” em Março 30-31, 2007.

19  Suetonius, Life of Vespasian, 23.4.

20  Jules Gross, The Divinization of the Christian According to the Greek Fathers, trans. Paul A. Onica (Anaheim, CA: A & C Press, 2002), p. 271.

21  Russell, The Doctrine of Deification, p. 9.

22  Williams, The Ground of Union, pp. 158-159.

23  Williams, The Ground of Union, pp. 173-174.

24  Williams, The Ground of Union, pp. 8-27.

25  Russell, The Doctrine of Deification, p. 1.

26 Cf. Williams, The Ground of Union, p. 32: “Primeiro, podemos dizer com segurança que, onde encontramos referências à participação humana na vida divina, certamente temos uma afirmação específica da theosis.”

27 Roger E. Olson, “Deification in Contemporary Theology,” Theology Today 64/2 (July, 2007), pp. 186-200; at p. 193.

28  Vladimir Lossky, Mystical Theology of the Eastern Church (Crestwood, NY: Saint Vladimir’s
Seminary Press, 1976/ 1998); Georgios I. Mantzaridis, The Deification of Man (Crestwood, NY: Saint Vladimir’s Seminary Press, 1984); Olson, “Deification in Contemporary Theology,” p. 199.

29 Os resultados desta pesquisa, que tem sido realizada desde 1970, são convenientemente resumidos pelos principais contribuidores em Carl E. Braaten e Robert W. Jenson, eds., Union With Christ (1998).

30  Tuomo Mannermaa, The Christ Present in Faith: Justification and Deification; la contribution to the Ecumenical Dialog, (Hannover, 1989) [Trad. inglesa The Christ Present in Faith: Luther’s View of Justification, trans. Thomas S. Obersat (Minneapolis, MN: Fortress Press, 2005.]; “Why is Luther So Fascinating? Modem Finnish Luther Research,” em Union with Christ: The New Finnish Interpretation of Luther, p. 1.

31 Tuomo Mannermaa, “Theosis as a Subject of Finnish Luther Research,” Pro Ecclesia 4/1 (Winter, 1994), pp. 37-47; at p. 37.

32 Tuomo Mannermaa, “Theosis as a Subject of Finnish Luther Research”, p. 42.

33 J. Todd Billings, “John Calvin: United to God through Christ,” in Partakers of the Divine Nature: The History and Development of Deification in the Christian Tradition, p. 201.

34 J. Todd Billings, Calvin, Participation and the Gift, p. 55.

35 Dois contribuidores para o volume, Stephen Finlan e Vladimir Kharlamov, coeditaram simultaneamente sua própria coleção: Theosis: Deification in Christian Theology (Eugene, OR: Pickwick Publications, 2006). Esta coleção, contendo contribuições de sete estudiosos, é mais modesta em escopo e de menor qualidade do que Partakers of the Divine Nature. O volume inclui uma introdução bem documentada, um capítulo dedicado ao Antigo Testamento, um capítulo sobre 2 Pedro, os próximos seis capítulos sobre autores patrísticos e os dois últimos capítulos dedicados a T. F. Torrance e Vladimir Soloviev.

36 Andrew Louth, “The Place of Theosis in Orthodox Theology,” in Partakers of the Divine Nature, editado por Michael J. Christensen and Jeffery A. Wittung, (Grand Rapids, MI: Baker Academic, 2008), p. 43.

37 Gösta Hallonsten, “Theosis in Recent Research: a renewal of interest and a need for clarity,” pp. 282-283.

38 Ibid., p. 287.

39 Minha conclusão se baseia na valiosa discussão em William T. Cavanaugh, “A Joint Declaration? Justification as Theosis in Aquinas and Luther,” The Heythrop Journal 41/3 (July, 2000), pp. 265-280.

40 Daniel A. Keating, Deification and Grace (Naples, FL: Sapientia Press, 2007).

41 Veja Olson, “Deification in Contemporary Theology,” pp. 188-189. As listas abrangentes de Olson incluem também um teólogo anglicano A. M. Allchin, o teólogo reformado Jürgen Moltmann e teólogos evangélicos como Clark Pinnock, Stanley Grenz, Robert Rakestraw, Daniel Clendenin e Veli-Matti Kärkkäinen.

42 John Milbank, Graham Ward and Catherine Pickstock, “Introduction”, in J. Milbank et al. (eds.) Radical Orthodoxy (London: Routledge, 1999), p. 3.

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