sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Redenção e Deificação (Vladimir Lossky)

"Deus se fez homem para que o homem possa se tornar Deus". Estas palavras poderosas, que encontramos pela primeira vez em Santo Irineu, [1] são novamente encontradas nos escritos de Santo Atanásio, [2] São Gregório de Nazianzo [3] e São Gregório de Nissa. [4] Os Pais e os teólogos ortodoxos têm repetido elas em todos os séculos com a mesma ênfase, desejando resumir nesta sentença surpreendente a própria essência do cristianismo: uma inefável descida de Deus até o limite último de nossa condição humana caída, até a morte - uma descida de Deus que abre para os homens um caminho de ascensão, as vistas ilimitadas da união dos seres criados com a Divindade.

A descida (katábasis) da pessoa divina de Cristo torna as pessoas humanas capazes de uma ascensão (anábasis) no Espírito Santo. Era necessário que a humilhação voluntária, a kénōsis redentora, do Filho de Deus acontecesse, para que os homens caídos pudessem realizar sua vocação da théōsis, a deificação dos seres criados pela graça incriada. Assim, a obra redentora de Cristo - ou melhor, de um modo mais geral, a Encarnação do Verbo - parece estar diretamente relacionada ao objetivo final das criaturas: conhecer a união com Deus. Se esta união foi realizada na pessoa divina do Filho, que é Deus feito homem, é necessário que cada pessoa humana, por sua vez, se torne deus por graça, ou "um participante da natureza divina", de acordo com a expressão de São Pedro (II Pedro 1: 4).

Uma vez que, no pensamento dos Pais, a Encarnação do Verbo está tão intimamente ligada à nossa deificação final, poder-se-ia perguntar se a Encarnação teria ocorrido se Adão não tivesse pecado. Esta questão foi frequentemente levantada, mas parece-nos uma questão irreal. De fato, não temos conhecimento de qualquer condição da raça humana, exceto a condição resultante do pecado original, em que nossa deificação - a realização do propósito divino para nós - se tornou impossível sem a encarnação do Filho, um fato necessariamente tendo o caráter de uma redenção. O Filho de Deus desceu do céu para realizar a obra de nossa salvação, para nos libertar do cativeiro do diabo, para destruir o domínio do pecado em nossa natureza e desfazer a morte, que é o salário do pecado. A Paixão, Morte e Ressurreição de Cristo, pela qual se realizou sua obra redentora, ocupam assim um lugar central na dispensação divina para o mundo decaído. Deste ponto de vista, é fácil entender por que a doutrina da redenção tem uma importância tão grande no pensamento teológico da Igreja.

No entanto, quando o dogma da redenção é tratado isoladamente do corpo geral do ensinamento cristão, há sempre o risco de limitar a tradição, interpretando-o exclusivamente em termos da obra do Redentor. Então, o pensamento teológico se desenvolve em três linhas: o pecado original, sua reparação na cruz e a apropriação dos resultados salvíficos da obra de Cristo aos cristãos. Nessas perspectivas constritivas de uma teologia dominada pela idéia de redenção, a sentença patrística, "Deus se fez homem para que o homem possa se tornar Deus", parece ser estranha e anormal. O pensamento de união com Deus é esquecido por causa de nossa preocupação somente com nossa própria salvação; ou melhor, a união com Deus é vista apenas negativamente, em contraste com nossa atual miséria.

II

Foi Anselmo de Cantuária, com seu tratado Cur Deus Homo, que, sem dúvida, fez a primeira tentativa de desenvolver o dogma da redenção, à parte do restante do ensinamento cristão. Em sua obra, os horizontes cristãos são limitados pelo drama entre Deus, que é infinitamente ofendido pelo pecado, e o homem, incapaz de satisfazer as exigências impossíveis da justiça vingativa. O drama encontra sua resolução na morte de Cristo, o Filho de Deus que se tornou homem para substituir-se por nós e pagar nossa dívida à justiça divina. O que acontece com a dispensação do Espírito Santo aqui? Sua parte é reduzida à de um auxiliar, um assistente na redenção, fazendo com que recebamos o mérito de expiação de Cristo. O objetivo final de nossa união com Deus é, se não excluído de todo, pelo menos excluído de nossa visão pela abóbada austera de uma concepção teológica construída sobre as idéias de culpa original e sua reparação. O preço de nossa redenção tendo sido pago na morte de Cristo, a ressurreição e a ascensão são apenas um glorioso final feliz de Sua obra, uma espécie de apoteose sem relação direta com nosso destino humano. Essa teologia redentorista, colocando toda a ênfase na paixão, parece não ter interesse no triunfo de Cristo sobre a morte. O próprio trabalho do Cristo Redentor, ao qual esta teologia está confinada, parece ser truncado, empobrecido, reduzido a uma mudança da atitude divina em relação aos homens caídos, sem relação com a natureza da humanidade.

Encontramos uma concepção inteiramente diferente da obra redentora de Cristo no pensamento de Santo Atanásio: "Cristo", diz ele, "tendo entregue o templo do Seu corpo à morte, ofereceu um sacrifício para todos os homens, para torná-los inocentes e livres da culpa original, e também para mostrar-se vitorioso sobre a morte e para criar os primeiros frutos da ressurreição geral com o Seu próprio corpo incorruptível". Aqui a imagem jurídica da Redenção é completada por outra imagem, a imagem física - ou melhor, biológica - do triunfo da vida sobre a morte, da incorruptibilidade triunfando na natureza que havia sido corrompida pelo pecado. 

Nos Pais em geral, assim como nas Escrituras, encontramos muitas imagens expressando o mistério de nossa salvação realizada por Cristo. Assim, no Evangelho, o Bom Pastor é uma imagem "bucólica" da obra de Cristo. [6] O homem forte, superado pelo "mais forte que ele, que tira suas armas e destrói seu poder", é uma imagem "militar", [7] que é freqüentemente encontrada novamente nos Pais e na Liturgia: Cristo vitorioso sobre Satanás, pisoteando as portas do inferno, fazendo da cruz seu estandarte de triunfo. [8] Há também uma imagem "médica", de natureza doentia curada pela salvação como o antídoto para um veneno.[9] Existe uma imagem que poderia ser denominada "diplomática", o estratagema divino que engana o diabo em sua astúcia. [10] E por aí vai. Finalmente, chegamos à imagem mais usada por São Paulo, do Antigo Testamento, onde foi emprestada da esfera das relações jurídicas. [11] Tomada nesse sentido, a redenção é uma imagem jurídica da obra de Cristo, encontrada lado a lado com muitas outras imagens. [12] Quando usamos a palavra "redenção", como fazemos hoje em dia, como um termo genérico que designa a obra salvífica de Cristo em toda a sua plenitude, não devemos esquecer que essa expressão jurídica tem o caráter de uma imagem ou símile: Cristo é o Redentor no mesmo sentido que Ele é o Guerreiro vitorioso sobre a morte, o perfeito Sacrificador, etc.

O erro de Anselmo não foi apenas o fato de ele ter desenvolvido uma visão jurídica da redenção, mas sim de querer ver uma expressão adequada do mistério de nossa redenção realizada por Cristo nas relações jurídicas implicadas pela palavra "redenção". Rejeitando outras expressões desse mistério como imagens inadequadas, quasi quaedam picturae ele acreditava ter encontrado na imagem jurídica - a da redenção - o próprio corpo da verdade, sua "solidez racional", veritatis rationabilis solidilas, a razão pela qual era necessário que Deus morresse pela nossa salvação. [13]

A impossibilidade de provar racionalmente que a obra de redenção era necessária, fazendo uso do significado jurídico do termo "redenção", foi demonstrada por São Gregório de Nazianzo, em um reductio ad absurdum magistral. Ele diz: "Devemos agora considerar um problema e uma doutrina muitas vezes ignorada silenciosamente, o que, a meu ver, precisa de um estudo profundo. O sangue derramado para nós, o mais precioso e glorioso sangue de Deus, o sangue do Sacrificador e do Sacrifício - por que foi derramado e a quem foi oferecido? Estávamos sob o reino do diabo, vendidos ao pecado, depois de termos ganho corrupção por causa de nosso desejo pecaminoso. Se o preço do nosso resgate for pago àquele que nos tem em seu poder, pergunto-me: por que esse preço é pago? Se é dado ao diabo, é ultrajante! O bandido recebe o preço da redenção. Ele não apenas recebe de Deus, ele recebe o próprio Deus. Por sua violência, ele exige um resgate tão desproporcional que seria mais justo para ele para nos libertar sem resgate. Mas se o preço é pago ao Pai, por que isso deveria ser feito? Não é o Pai quem nos mantém como Seus cativos. Além disso, por que o sangue de Seu único Filho seria aceitável ao Pai, que não desejou aceitar Isaque, quando Abraão ofereceu a Ele seu filho como holocausto, mas substituiu o sacrifício humano pelo sacrifício de um carneiro? Não é evidente que o Pai aceita o sacrifício não porque Ele o exigiu ou teve alguma necessidade dele senão por Sua dispensação? Era necessário que o homem fosse santificado pela humanidade de Deus; era necessário que Ele mesmo nos libertasse, triunfando sobre o tirano por Sua própria força, e que Ele nos chamasse a Si mesmo pelo Seu Filho que é o Mediador, que faz tudo pela honra do Pai, a quem Ele é obediente em todas as coisas. . . . Deixe o resto do mistério ser venerado silenciosamente." [14] O que emerge da passagem que acabamos de citar é que, para São Gregório de Nazianzo, a idéia de redenção, longe de implicar a idéia de uma necessidade imposta pela justiça vingativa, é antes uma expressão da dispensação, cujo mistério não pode ser adequadamente esclarecido em uma série de conceitos racionais. Ele diz, na passagem posterior, que "era necessário para nós que Deus se encarnasse e morresse para que pudéssemos viver de novo" (c. 28). "Nada pode ser comparado ao milagre da minha salvação: algumas gotas de sangue re-fazem todo o universo" (c. 29).

Depois dos horizontes constritos de uma teologia exclusivamente jurídica, encontramos nos Pais uma idéia extremamente rica de redenção que inclui a vitória sobre a morte, os primeiros frutos da ressurreição geral, a libertação da natureza humana do cativeiro sob o diabo, e não apenas a justificação, mas também a restauração da criação em Cristo. Aqui a Paixão não pode ser separada da Ressurreição nem o corpo glorioso de Cristo, sentado à direita do Pai, da vida dos cristãos aqui abaixo. Mesmo que a redenção apareça como o aspecto central da encarnação, isto é, da dispensação do Filho para o mundo caído, ela é apenas um aspecto da dispensação mais vasta da Santíssima Trindade em direção ao ser criado ex nihilo e chamado para alcançar a deificação livremente - para alcançar a união com Deus, para que "Deus seja tudo em todos". O pensamento dos Pais nunca exclui essa visão final. A redenção tem a nossa salvação do pecado como um objetivo imediato, mas essa salvação será, em sua realização final no futuro, nossa união com Deus, a deificação dos seres criados a quem Cristo resgatou. Mas essa realização final envolve a dispensação de outra Pessoa divina, enviada ao mundo depois do Filho.

A obra do Espírito Santo é inseparável da obra do Filho. Para poder dizer com os Pais: "Deus se tornou homem para que o homem possa se tornar Deus", não basta suplementar as insuficiências da teoria de Anselmo retornando à idéia mais ampla e mais rica de redenção encontrada nos Pais. Devemos, acima de tudo, recuperar o verdadeiro lugar da dispensação do Espírito Santo, distinto mas não separável da do Verbo Encarnado. [15] Se o pensamento de Anselmo pôde parar na obra redentora de Cristo, isolando-a do resto do ensinamento cristão, constringindo os horizontes da tradição, era precisamente porque em seu tempo o ocidente já havia perdido a verdadeira idéia da Pessoa do Espírito Santo,  relegando-o a uma posição secundária, tornando-o numa espécie de lugar-tenente ou representante do Filho. Deixaremos essa questão de lado, pois já tentamos analisar o dogma da processio ab utroque e suas conseqüências para toda a teologia ocidental. Nós nos limitamos aqui à tarefa positiva de mostrar por que a idéia de nossa deificação final não pode ser expressa somente em uma base cristológica, mas exige também um desenvolvimento pneumatológico.



III 

No ocidente, o pensamento teológico de nossos dias está fazendo um grande esforço para retornar às fontes patrísticas dos primeiros séculos - particularmente aos Pais Gregos - a fim de incorporá-los em uma síntese católica. Não só a teologia pós-tridentina, mas também a escolástica medieval, com toda a sua riqueza filosófica, hoje em dia parece teologicamente inadequada. Um poderoso esforço está sendo feito para voltar a usar a noção da Igreja como o corpo de Cristo, como uma nova criatura recapitulada por Cristo, uma natureza ou um corpo tendo o Cristo ressuscitado como sua Cabeça.

Uma vez que o primeiro Adão perdeu sua vocação de livre realização da união com Deus, o Segundo Adão, o Verbo divino, realizou esta união das duas naturezas em Sua Pessoa, quando Ele se encarnou. Entrando na realidade do mundo caído, Ele quebrou o poder do pecado em nossa natureza, e por Sua morte, que revela o grau supremo de Sua entrada em nosso estado decaído, Ele triunfou sobre a morte e a corrupção. No batismo nós morremos com Cristo, simbolicamente, para ressuscitar, realmente, n'Ele, na nova vida de Seu corpo vitorioso, para nos tornarmos membros deste corpo único, existindo historicamente e concretamente na terra, mas com a Cabeça no céu, na eternidade, no mistério da Santíssima Trindade. Cristo, que é tanto o Sacrificador como o Sacrifício, oferece no altar celestial o sacrifício único que é feito aqui embaixo em inumeráveis altares terrestres no mistério eucarístico. Assim, não há divisão entre o invisível e o visível, entre o céu e a terra, entre a Cabeça sentado à direita do Pai e a Igreja, Seu corpo, no qual flui incessantemente Seu mais precioso sangue.

"Aquilo que era visível em nosso Redentor agora passou para os sacramentos" [16]. Essa concepção da unidade dos cristãos que formam o corpo único de Cristo está agora sendo revivida em todo o ocidente. É acima de tudo uma concepção litúrgica e sacramental, que ressalta o caráter orgânico da Igreja, como nossa unidade em todo o Cristo. Não é necessário enfatizar a importância dessa teologia do corpo de Cristo, que recupera de uma nova maneira as riquezas da tradição patrística. O que é importante no momento é perceber que esse modo de considerar a doutrina da redenção reabrirá o caminho para uma cristologia mais ampla e uma eclesiologia mais ampla, na qual a questão de nossa deificação, de nossa união com Deus, possa novamente ser levantada. Podemos agora dizer novamente o que os Pais disseram: "Deus se fez homem para que o homem possa se tornar Deus". Mas quando alguém tenta interpretar estas palavras apenas em uma base cristológica e sacramental, na qual a parte do Espírito Santo é a de uma ligação entre a Cabeça Celestial da Igreja e Seus membros terrestres, nós entramos em sérias dificuldades e alcançamos problemas insolúveis. [17]

Nesta concepção da Igreja como o corpo de todo o Cristo, que contém em si os seres humanos que são membros da Igreja (uma concepção que aceitamos plenamente, em qualquer caso), existe uma espécie de totalitarismo cristão. É possível, alguém pode perguntar, salvaguardar a idéia de que todas as pessoas humanas são distintas uma da outra e, acima de tudo, da única Pessoa de Cristo, que aqui parece estar identificada com a pessoa da Igreja? Não há também o perigo de perder a idéia de liberdade pessoal e de substituir o determinismo do estado pecaminoso do qual somos salvos por algum tipo de determinismo sacramental, no qual o processo orgânico da salvação, realizado na totalidade coletiva da Igreja, tende a suprimir o encontro pessoal com Deus? Em que sentido somos todos um só corpo em Cristo, e em que sentido é verdade que não somos e não podemos ser um sem deixar de existir como pessoas humanas ou hipóstases, cada uma das quais é chamada a realizar em sua pessoa a união com Deus? Pois pareceria que há tantas uniões com Deus quanto há pessoas humanas, cada pessoa tendo uma relação absolutamente única com a Divindade, e que existe tantas santidades no céu quanto há destinos pessoais na terra.

IV 

Quando desejamos falar sobre pessoas humanas em relação ao corpo de Cristo do qual somos membros, devemos renunciar resolutamente ao sentido da palavra "pessoa" que pertence à sociologia e à maioria dos filósofos. Devemos ir buscar nossa norma ou "cânone" de pensar numa região superior, na idéia de pessoa ou hipóstase, como é encontrado na teologia trinitária. O dogma da Trindade, que coloca nosso espírito diante da antinomia da identidade absoluta e da diversidade não menos absoluta, é expresso na distinção entre natureza e pessoas ou hipóstases. Aqui cada pessoa existe não excluindo outras, não por oposição ao "Não-eu", mas por uma recusa em possuir a natureza para si mesmo (fazendo uso de uma linguagem psicológica, que está muito fora de lugar quando falamos da Trindade). A existência pessoal supõe uma relação com o outro; uma pessoa existe "para" ou "em direção" a outra: ho lógos ên pròs tòn theón, como diz o prefácio do Evangelho de São João. Em poucas palavras, digamos que uma pessoa só pode ser totalmente pessoal na medida em que ela não tem nada que busque possuir para si mesma, excluindo outras, ou seja, quando tem uma natureza comum com as outras. É só então que a distinção entre pessoas e natureza existe em toda a sua pureza; do contrário, estamos na presença de indivíduos, dividindo a natureza entre eles. Não há partilha ou divisão da natureza entre as três Pessoas da Santíssima Trindade. As Hipóstases não são três partes de um todo, da natureza única, mas cada uma inclui em Si a natureza divina inteira. Cada uma é o todo, porque Ele não tem nada para Si mesmo: até a vontade é comum as Três.

Se nos voltarmos agora para os seres humanos, criados à imagem de Deus, poderemos encontrar, tomando como ponto de partida o dogma da Trindade, uma natureza comum existente em muitas hipóstases criadas. Contudo, na realidade do mundo caído, os seres humanos tendem a existir excluindo uns aos outros. Cada um se afirma contrastando-se com os outros, isto é, dividindo - repartindo - a unidade da natureza, cada um possuindo uma parte da natureza humana para si mesmo, de modo que "meu" contrastará "eu" com tudo o que é "não eu". Deste ponto de vista, o que habitualmente chamamos de pessoa humana não é verdadeiramente uma pessoa, mas um indivíduo, uma parte da natureza comum, mais ou menos como as outras partes ou indivíduos humanos dos quais a humanidade é composta. Mas na medida em que ele é uma pessoa no verdadeiro sentido teológico da palavra, um ser humano não é limitado por sua natureza individual. Ele não é apenas uma parte do todo, mas potencialmente inclui o todo, tendo em si todo o cosmos terrestre, do qual ele é a hipóstase. [18] Assim, cada pessoa é um aspecto absolutamente original e único da natureza comum a todos. O mistério de uma pessoa humana, que a torna absolutamente única e insubstituível, não pode ser apreendido em um conceito racional e definido em palavras. Todas as nossas definições inevitavelmente têm referência a um indivíduo, mais menos como outros indivíduos; e a palavra mais perfeita para indicar personalidade em sua diversidade absoluta sempre será uma palavra errada. Pessoas, como tais, não são partes da natureza. Embora ligadas a partes individuais da natureza comum na realidade criada, elas potencialmente contêm em si, cada uma a seu modo, toda a natureza. Em nossa experiência habitual, não conhecemos nem a verdadeira diversidade pessoal, nem a verdadeira unidade da natureza. Vemos, por um lado, indivíduos humanos e, por outro lado, totalidades coletivas humanas, em conflito perpétuo.

Encontramos na Igreja a unidade de nossa natureza perpetuamente sendo realizada, pois a Igreja é mais unida que uma totalidade coletiva: São Paulo a chama de "o corpo". É a natureza humana, cuja unidade não é mais representada pelo velho Adão, a cabeça da raça humana em sua extensão aos indivíduos. Essa natureza humana, resgatada e renovada, é remontada e recapitulada na Hipóstase ou na Pessoa divina do Filho de Deus que se tornou homem. Se nesta nova realidade, nossas naturezas individualizadas são libertadas de suas limitações (não há grego nem cita, homem livre ou escravo), e se o indivíduo, existente por oposição ao seu "Não-eu", é chamado a desaparecer tornando-se um membro de um corpo único, isso não significa que pessoas humanas ou hipóstases sejam assim suprimidas. Pelo contrário. Somente na Igreja elas podem se realizar em sua verdadeira diversidade. Não sendo partes de uma natureza comum, como é o caso dos indivíduos, as pessoas não se confundem umas com as outras por causa da unidade da natureza que está em processo de realização na Igreja. [19] Elas não se tornam porções da Pessoa de Cristo. Elas não estão incluídos na Pessoa de Cristo como em uma super-pessoa. Isso seria contrário à própria ideia de uma pessoa. Somos um em Cristo em virtude de nossa natureza, em que Ele é a Cabeça de nossa natureza, formando em Si mesmo um só corpo.

Uma conclusão deve ser feita: se nossas naturezas individuais são incorporadas na gloriosa humanidade de Cristo e entram na unidade de Seu Corpo pelo batismo, conformando-se à morte e ressurreição de Cristo, nossas pessoas precisam ser confirmadas em sua dignidade pessoal pelo Espírito Santo, para que cada uma possa realizar sua própria união com a Divindade. O batismo - o sacramento da unidade em Cristo - precisa ser completado pelo crisma - o sacramento da diversidade no Espírito Santo.

V

O mistério da nossa redenção conduz ao que os Padres chamam de recapitulação da nossa natureza por Cristo e em Cristo. Este é o fundamento cristológico da Igreja, que se expressa acima de tudo na vida sacramental, com a sua qualidade de objetividade absoluta. Mas se quisermos salvaguardar outro aspecto da Igreja, que tem uma qualidade de subjetividade não menos absoluta, deve basear-se na dispensação de outra Pessoa divina, independente, em Sua origem, da Pessoa do Filho Encarnado. [20] Sem isso, corremos o risco de despersonalizar a Igreja, submetendo a liberdade de suas hipóstases humanas a uma espécie de determinismo sacramental. Por outro lado, se apenas o aspecto subjetivo for enfatizado, perderemos - juntamente com a idéia do Corpo de Cristo - a base lógica e objetiva da Verdade e cairemos nos caprichos da fé "individual".

A ponto é que a Encarnação e a obra redentora de Cristo, consideradas à parte da dispensação do Espírito Santo, não podem justificar a multiplicidade pessoal da Igreja - algo que é tão necessário quanto a sua unidade natural em Cristo. O mistério do Pentecostes é tão importante quanto o mistério da Redenção. A obra redentora de Cristo é uma pré-condição indispensável da obra deificante do Espírito Santo. O próprio Senhor afirmou isso quando disse "Eu vim lançar fogo à terra, e quem me dera que já estivesse a arder!" (Lucas 12: 49). Mas, por outro lado, pode-se dizer que a obra do Espírito serve a do Filho, pois é recebendo o Espírito que as pessoas humanas podem testemunhar em plena consciência a divindade de Cristo. O Filho se tornou como nós pela encarnação; nós nos tornamos como Ele pela deificação, participando da divindade no Espírito Santo, que comunica a divindade a cada pessoa humana de uma maneira particular. A obra redentora do Filho está relacionada à nossa natureza. A obra deificadora do Espírito Santo diz respeito às nossas pessoas. Mas as duas são inseparáveis. Uma é impensável sem a outra, pois cada uma é a condição da outra, cada uma está presente na outra; e, finalmente, elas são apenas uma dispensação da Santíssima Trindade, realizada por duas pessoas divinas enviadas pelo Pai ao mundo. Esta dupla dispensação do Verbo e do Paracleto tem como meta a união dos seres criados com Deus.

Considerado do ponto de vista de nosso estado decaído, o objetivo da dispensação divina pode ser denominado salvação ou redenção. Este é o aspecto negativo do nosso objetivo final, que é considerado da perspectiva do nosso pecado. Considerado do ponto de vista da vocação última dos seres criados, o objetivo da dispensação divina pode ser denominado deificação. Esta é a definição positiva do mesmo mistério, que deve ser realizado em cada pessoa humana na Igreja e que será plenamente revelado no futuro, quando, depois de reunir todas as coisas em Cristo, Deus se tornará tudo em todos.





NOTAS

1 Adversus haereses V, preface; P.G. 7, col. 1120
2 De incarnatione verbi 54; P.G. 25, col. 192B
3 Poema dogmatica 10, 5-9; P.G.37, col. 465
4 Oratio catechetica magna 25; P.G. 45, col. 65D
5 De incarnatione verbi 20; P.G. 25, col. 129D·132A.
6 Mateus 18:12·14, Lucas 15:4-7, João 10:1-16.
7 Mateus 12:29, Marcos 3:27, Lucas 11:21-22.
8 Santo Atanásio, De incarnatione verbi 30: P.G. 25, col. 148.
9 São João de Damasco, De imaginibus III, 9: P.G. 94, col. 13320. A imagem de Cristo como o médico da natureza humana, ferida pelo pecado, é freqüentemente encontrada em conexão com a parábola do Bom Samaritano, que foi interpretada desta maneira pela primeira vez por Orígenes, Homilia 34 sobre 51. Luke, P.G. 13, cols. 1886-1888: Commentary on St. John 20, 28; P.G. 14, col. 656A.
10 São Gregório de Nissa, Oratio catechetica magna 22-24: P.G. 45, cols. 60·65. 
11 Rom. 3:24, 8:23: I Cor. 1:30: Eph. 1:7, 14:30: Col. 1:14: Hebe. 9:15, 11:35, com o senso de libertação. 1 Tim. 2: 6: I Cor. 6:20, 7:22: Gal. 3:13, com o sentido de resgate pago.
12Para São Paulo, a imagem sacrificial ou sacerdotal da obra de Cristo é basicamente idêntica à imagem jurídica - a da compra ou da redenção propriamente dita - mas também a completa e aprofunda. Com efeito, a idéia de propiciação em sangue (Rom. 3:26) une as duas imagens - a jurídica e a sacrificial - na noção da morte expiatória do homem justo, uma noção característica das profecias messiânicas (Isaías 53 ).
13 Cur Deus homo I, 4; P.L. 158, col. 365.
14 Or. 45, 22; P.G. 36, col. 653.
15 Encontramos em Santo Atanásio alguns indícios de uma explicação pneumatológica da sentença: "Deus se fez homem para que o homem possa se tornar deus". Isto é, acima de tudo, manifesto na célebre oposição de Cristo, "Deus portando carne", e cristãos, "homens portadores do Espírito". A Palavra assumiu carne para que pudéssemos receber o Espírito Santo. De incarnatione et contra Arianos 8; P.G. 26, col. 996C.
16 Leo o Grande, Sermon 74, 2; P.L. 54, col. 398.
17 Para se ter uma idéia das dificuldades em que a teologia católica romana de nossos tempos fracassa - dificilmente capaz de reconciliar a deificação pessoal com a noção da Igreja como o corpo de Cristo - é útil consultar Pe. L. Bouyer, Mystère pascal (Paris, 1945), p. 180 · 194.
18 Ao falar do "cosmo terrestre" - a natureza da qual o homem é a hipóstase (ou as hipóstases) - estamos deixando de lado a questão do "cosmo celestial", o mundo angélico. Este é um assunto completamente diferente, não diretamente relacionado ao problema com o qual estamos ocupados aqui.
19 "De qualquer forma, estamos divididos em personalidades bem definidas, segundo as quais alguém é Pedro ou João, Tomé ou Mateus, estamos, por assim dizer, estabelecidos em um só corpo em Cristo, sendo nutridos por uma única carne". São Cirilo de Alexandria, Comentário sobre São João 11, 11; P.G. 74, col. 560.
20 "O Espírito Santo é encontrado presente em cada um daqueles que O recebem como se Ele tivesse sido comunicado somente a ele, e todavia Ele derrama graça completa sobre todos." São Basílio, De spiritu sancto 9, 2; P.G. 32, cols. 108-109.

Um comentário:

  1. Excelente blog! Gostaria de poder conversar mais consigo sobre a Ortodoxia, pois penso que seguimos na mesma linha, de Lossky, de Kalistos Ware, de Romanides e outros. Recebi seu comentário em meu próprio blog, precedejesus1.blogspot.com.br, sobre a Teologia Mística de Vladimir Lossky. Caso interesse, deixo meu e-mail para contato, tito.helena@gmail.com, pois os comentários que postamos são sempre noreply, e não sei se é possível responder por aí. Parabéns pelas suas postagens. Talvez um dia possamos conversar pessoalmente! Abs., Pe. Tito Luis Kehl

    ResponderExcluir