Índice
1. Introdução: Teologia e Misticismo na Tradição da Igreja Oriental
2. As Trevas Divinas
3. Deus na Trindade
4. Energias Incriadas
5. Ser Criado
6. Imagem e Semelhança
7. A Economia do Filho
8. A Economia do Espírito Santo
9. Dois Aspectos da Igreja
10. O Caminho da União
11. A Luz Divina
12. Conclusão: A Festa do Reino
Introdução: Teologia e Misticismo na Tradição da Igreja Oriental
É nossa intenção, no seguinte
ensaio, estudar certos aspectos da espiritualidade oriental em relação aos
temas fundamentais da tradição dogmática ortodoxa. No presente trabalho,
portanto, o termo "teologia mística" não significa mais que uma
espiritualidade que expressa uma atitude doutrinária.
Em certo sentido, toda a teologia
é mística, na medida em que manifesta o mistério divino: os dados da revelação.
Por outro lado, o misticismo é freqüentemente colocado em oposição à teologia
como um reino inacessível ao entendimento, como um mistério inexprimível, uma
profundidade oculta, a ser vivido ao invés de conhecido; cedendo a uma
experiência específica que ultrapassa nossas faculdades de compreensão e não a
qualquer percepção sensorial ou da inteligência. Se adotássemos esta última
concepção de forma incondicionalmente, resolutamente opondo o misticismo à
teologia, seríamos levados em última instância à tese de Bergson que distingue,
em sua obra Deux Sources, a "religião estática" das Igrejas da
"religião dinâmica" dos místicos; a primeira de caráter social e
conservador, e a última de caráter pessoal e criativo.
Até que ponto a afirmação de
Bergson é justificável? Esta é uma pergunta difícil, ainda mais porque os dois
termos que Bergson contrapõe no plano religioso estão enraizados nos dois pólos
de sua visão filosófica do universo: a natureza e o élan vital. Para além desta
atitude de Bergson, no entanto, muitas vezes se ouve expressar a perspectiva
que enxergaria no misticismo um reino reservado para poucos, uma exceção à
regra comum, um privilégio concedido a algumas almas que desfrutam da
experiência direta da verdade, os outros, entretanto, precisam se contentar com
uma submissão mais ou menos cega aos dogmas impostos desde fora, em relação a
uma autoridade coercitiva. Essa oposição às vezes é levada a grandes
proporções, especialmente se a realidade histórica for forçada a um padrão
preconcebido. Assim, os místicos são colocados contra os teólogos, os
contemplativos contra os prelados, os santos contra a Igreja. Basta lembrar
para muitos uma passagem de Harnack, na vida de São Francisco de Paulo Sabatier
e outras obras, mais freqüentemente escritas por historiadores protestantes.
A tradição oriental nunca fez uma
nítida distinção entre misticismo e teologia; entre a experiência pessoal dos
mistérios divinos e o dogma afirmado pela Igreja. As seguintes palavras ditas
há um século por um grande teólogo ortodoxo, o Metropolita Filareto de Moscou,
expressam perfeitamente esta atitude: "nenhum dos mistérios da sabedoria
mais secreta de Deus deve parecer estranha ou completamente transcendente para
nós, mas com toda a humildade, devemos submeter o nosso espírito à contemplação
das coisas divinas”. [1] Em outras palavras, devemos viver o dogma que expressa
uma verdade revelada, que nos aparece como um mistério insondável, de tal forma
que, ao invés de assimilar o mistério ao nosso modo de entendimento, devemos,
ao contrário, buscar por uma mudança profunda, uma transformação interior do
espírito, permitindo experimentá-lo de forma mística. Longe de ser mutuamente
opostos, a teologia e o misticismo se apóiam e se complementam. Um é impossível
sem o outro. Se a experiência mística é um trabalho pessoal a partir do
conteúdo da fé comum, a teologia é uma expressão, para o proveito de todos,
daquilo que pode ser experimentado por todos. Fora da verdade mantida por toda
a experiência pessoal da Igreja, o misticismo seria privado de toda certeza, de
toda objetividade. Seria uma mistura da verdade e da falsidade, da realidade e
da ilusão: "misticismo" no mau sentido da palavra. Por outro lado, o
ensinamento da Igreja não poderia manter as almas se não expressasse, em certo
grau, uma experiência interior de verdade, concedida em diferentes medidas a
cada um dos fiéis. Não existe, portanto, nenhum misticismo cristão sem
teologia; mas, acima de tudo, não há teologia sem misticismo. Não é por acaso
que a tradição da Igreja Oriental tenha reservado o nome de "teólogo"
peculiarmente para três santos escritores dos quais o primeiro é São João, o
mais "místico" dos quatro Evangelistas; o segundo São Gregório
Nazianzeno, escritor de poesia contemplativa; e o terceiro São Simeão, chamado
"o Novo Teólogo", o cantor da união com Deus. O misticismo é,
portanto, tratado no presente trabalho como o aperfeiçoamento e a coroa de toda
a teologia: como teologia por excelência.
Ao contrário do gnosticismo, [2]
onde o conhecimento por si próprio constitui o objetivo do gnóstico, a teologia
cristã sempre é, em última instância, um meio: uma unidade de conhecimento que
facilita um fim que transcende todo o conhecimento. Este fim último é a união
com Deus ou deificação, a Θεώσις dos Padres Gregos. Assim, somos por fim levados
a uma conclusão que pode parecer bastante paradoxal: a teoria cristã deve ter
um significado eminentemente prático; e quanto mais mística é, mais diretamente
ela aspira ao fim supremo da união com Deus. Todo o desenvolvimento das
disputas dogmáticas que a Igreja atravessou ao longo dos séculos parece-nos, se
o considerarmos do ponto de vista puramente espiritual, dominado pela constante
preocupação que a Igreja teve de salvaguardar, em cada momento de sua história,
para todos os cristãos, a possibilidade de alcançar a plenitude da união
mística. Assim, a Igreja lutou contra os gnósticos em defesa desta mesma ideia
de deificação como o fim universal: "Deus tornou-se homem para que os
homens se tornassem deuses". Ela afirmou, contra os Arianos, o dogma da
Trindade consubstancial; pois é o Verbo, o Logos, que nos abre o caminho para a
união com a Divindade; e se o Verbo encarnado não tem a mesma substância com o
Pai, se Ele não é verdadeiramente Deus, então nossa deificação é impossível. A
Igreja condenou os nestorianos para que derrubasse o muro da divisão, através
do qual, na pessoa do próprio Cristo, eles teriam separado Deus do homem. Ela
se ergueu contra os Apolinarianos e os Monofisitas para mostrar que, uma vez
que a plenitude da verdadeira natureza humana foi assumida pelo Verbo, é toda a
nossa humanidade que deve entrar em união com Deus. Ela lutou contra os
Monotelitas porque, fora da união das duas vontades, divina e humana, não
poderia haver a possibilidade de deificação: "Deus criou o homem por sua
vontade apenas, mas Ele não pode salvá-lo sem a cooperação da vontade
humana". A Igreja emergiu triunfante da controvérsia iconoclasta,
afirmando a possibilidade da expressão através de um meio material das
realidades divinas - símbolo e garantia de nossa santificação. A principal
preocupação, a questão em jogo, nas questões que sucessivamente se originam
sobre o Espírito Santo, a graça e a própria Igreja - esta última, a questão
dogmática do nosso tempo - é sempre a possibilidade, a maneira ou o meio de
nossa união Com Deus. Toda a história do dogma cristão se desenvolve sobre este
centro místico, guardado por diferentes armas contra seus numerosos e diversos
inimigos no curso das eras sucessivas.
As doutrinas teológicas que foram
elaboradas no decorrer dessas disputas podem ser tratadas na mais direta
relação com o fim vital - a união com Deus - para a realização da qual são
subservientes. Assim, elas aparecem como os fundamentos da espiritualidade
cristã. É isto que devemos entender ao falar de "teologia mística";
não o misticismo propriamente dito, as experiências pessoais de diferentes
mestres da vida espiritual. Tais experiências, por
outro lado, muitas vezes permanecem inacessíveis para nós: mesmo que
possam encontrar expressão verbal. O que, na realidade, pode-se dizer da
experiência mística de São Paulo: Conheço um homem em Cristo que há catorze
anos (se no corpo, não sei, se fora do corpo, não sei; Deus o sabe) foi
arrebatado ao terceiro céu. E sei que o tal homem (se no corpo, se fora do corpo,
não sei; Deus o sabe) foi arrebatado ao paraíso; e ouviu palavras inefáveis,
que ao homem não é lícito falar. Para atrever-se em julgar a natureza dessa
experiência, seria necessário compreendê-la mais plenamente do que o de São
Paulo, que confessa a sua ignorância: “não sei; Deus o sabe”. Nós
deliberadamente deixamos de lado toda questão de psicologia mística. Tampouco são doutrinas teológicas que
propomos estabelecer no presente trabalho, mas apenas elementos da teologia
indispensáveis à compreensão de uma espiritualidade: os dogmas que constituem o
fundamento do misticismo. Aqui, portanto, está a primeira
definição e limitação do nosso assunto, que é a teologia mística da Igreja
Oriental.
A segunda limitação circunscreve
nosso assunto, por assim dizer, no espaço. Trata-se do Oriente cristão ou, mais
precisamente, da Igreja Ortodoxa Oriental, que formará a área de nossos estudos
sobre a teologia mística. Devemos reconhecer que essa limitação é um pouco
artificial. Na realidade, uma vez que a divisão entre o Oriente e o Ocidente
apenas data de meados do século XI, tudo o que é anterior a esta data constitui
um tesouro comum e indivisível para ambas as partes de uma cristandade
dividida. A Igreja Ortodoxa não seria o que é se não houvesse São Cipriano, Santo
Agostinho e São Gregório Magno. Da mesma forma, a Igreja Católica Romana não
seria o que é sem São Atanásio, São Basílio ou São Cirilo de Alexandria. Assim,
quando se fala da teologia mística do Oriente ou do Ocidente, posiciona-se
dentro de uma das duas tradições que permaneceram, até certo momento, duas
tradições locais dentro de uma única Igreja, testemunhando uma única verdade
cristã; mas que subseqüentemente separam-se, uma do outra, e dão origem a duas
atitudes dogmáticas diferentes, irreconciliáveis em vários pontos. Podemos
julgar as duas tradições, assumindo nossa posição em um terreno neutro, tão
alheio a uma quanto à outra? Isso seria julgar o cristianismo do ponto de vista
não-cristão: em outras palavras, recusar antecipadamente a entender qualquer
coisa sobre o objeto de estudo. Pois a objetividade de modo algum consiste em
se posicionar fora de um objeto, mas, ao contrário, consiste em considerar o
próprio objeto em si mesmo e por si só. Existem áreas em que o que é geralmente
denominado "objetividade" é apenas indiferença, e onde a indiferença
significa incompreensão. No atual estado de diferença dogmática entre o Oriente
e o Ocidente, é essencial, se desejamos estudar a teologia mística da Igreja
Oriental, escolher entre dois pontos de vista possíveis. Ou colocar-se no
terreno dogmático ocidental e examinar a tradição oriental através do Ocidente
- isto é, por meio de críticas - ou então apresentar essa tradição à luz da
atitude dogmática da Igreja Oriental. Este último caminho
é o único possível para nós.
Será objetado,
talvez, que a dissensão dogmática entre o Oriente e o Ocidente foi apenas
acidental, que não tem importância decisiva, que se tratou mais uma questão dois
mundos históricos diferentes, que, cedo ou mais tarde, viriam a se separar para
que cada um pudesse seguir seu próprio caminho; e, por fim, que a disputa
dogmática não foi mais do que um pretexto para romper de uma vez por todas a
unidade eclesiástica que, de fato, deixara de ser uma realidade.
Tais afirmações, que são ouvidas
com muita frequência tanto no Oriente como no Ocidente, são resultado de uma
mentalidade puramente secular e do hábito generalizado de tratar a história da
Igreja segundo os métodos que excluem a natureza religiosa da Igreja. Para o
"historiador da Igreja", o fator religioso desaparece e se encontra
deslocado por outros; como, por exemplo, o jogo de interesses políticos ou
sociais, o papel desempenhado pelas condições raciais ou culturais,
considerados como fatores determinantes na vida da Igreja. Nós pensamos que
somos mais perspicazes, mais atualizados, ao colocar esses fatores como as
verdadeiras forças orientadoras da história eclesiástica. Embora reconhecendo
sua importância, um historiador cristão dificilmente pode resignar-se a
considerá-los senão como acidental em relação à natureza essencial da Igreja.
Ele não é capaz de ver na Igreja um corpo autônomo, sujeito a uma lei diferente
do determinismo deste mundo. Se considerarmos a questão dogmática da processão
do Espírito Santo, que dividiu o Oriente e o Ocidente, não podemos tratá-la
como um fenômeno fortuito na história da Igreja. Do ponto de vista religioso, é
a única questão de importância na cadeia de eventos que terminou na separação.
Condicionado, pois pode muito bem ter sido, por vários fatores, essa escolha
dogmática era - para uma parte como para a outra - um compromisso espiritual,
uma tomada consciente de um dos lados em uma questão de fé.
Se muitas vezes somos levados a
minimizar a importância da questão dogmática que determinou todo o
desenvolvimento subsequente das duas tradições, isso é devido a certa
insensibilidade ao dogma - que é considerado algo externo e abstrato. Dizem que
é a espiritualidade que importa. A diferença dogmática não tem nenhuma
conseqüência. No entanto, a espiritualidade e o dogma, o misticismo e a
teologia estão inseparavelmente ligados à vida da Igreja. No que diz respeito à
Igreja Oriental, já observamos que ela não faz distinção clara entre teologia e
misticismo, entre o reino da fé comum e a da experiência pessoal. Assim, se
quisermos falar de teologia mística na tradição oriental, não podemos fazer de
outra maneira senão considerando-a dentro da definição dogmática da Igreja
Ortodoxa.
Antes de abordar nosso assunto, é
necessário dizer algumas palavras sobre a Igreja Ortodoxa, pouco conhecida até
os nossos dias no Ocidente. O livro do padre Congar, a Cristandade Dividida,
embora muito notável em muitos aspectos, permanece, apesar de todo esforço pela
objetividade, sujeito, nas páginas que ele dedica à Igreja Ortodoxa, a certas
noções preconcebidas. "Ao passo que o Ocidente", diz ele,
"baseando-se na desenvolvida e limitada
ideologia Agostiana, reivindicava a independência na vida e organização da
Igreja, e assim estabelecia as linhas de uma eclesiologia muito definida, o
Oriente estabelecia-se na prática e, até certo ponto, na teoria, em um
princípio de unidade que era político, não-religioso e não verdadeiramente
universal". [4] Para o padre Congar, assim como para a maioria dos
escritores católicos e protestantes que se expressaram sobre esse assunto, a
Ortodoxia se apresenta sob a forma de uma federação de igrejas nacionais, tendo
como base um princípio político - a igreja do estado. Tais afirmações
generalizadas só são possíveis ignorando-se a base canônica e a história da
Igreja Oriental. A perspectiva que basearia a unidade de uma igreja local em um
princípio político, racial ou cultural é considerada pela Igreja Ortodoxa como
uma heresia, particularmente conhecida pelo nome do filetismo.[5] É o território eclesiástico, a área santificada por
uma tradição cristã mais ou menos antiga que constitui a base de uma província
metropolitana, administrada por um arcebispo ou metropolita, com os bispos de
todas as dioceses reunindo-se de tempos em tempos em sínodo. Se as
províncias metropolitanas são agrupadas para formar igrejas locais sob a
jurisdição de um bispo que muitas vezes tem o título de patriarca, ainda é a comunidade
de tradição local e de destino histórico (bem como a conveniência de convocar
um concílio de muitas províncias), que determina a formação desses grandes
círculos de jurisdição, cujos territórios não correspondem necessariamente aos
limites políticos de um estado. [6] O Patriarca de Constantinopla goza de um
certo primado de honra, arbitrando de tempos em tempos em disputas, mas sem
exercer uma jurisdição sobre todo o corpo da Igreja ecumênica. As igrejas
locais do Oriente tinham mais ou menos a mesma atitude em relação ao
patriarcado apostólico de Roma - primeira sé da Igreja antes da separação e
símbolo de sua unidade. A Ortodoxia não reconhece líder visível da Igreja. A
unidade da Igreja se expressa através da comunhão dos líderes das igrejas
locais, pelo acordo de todas as igrejas em relação a um concílio local - que,
assim, adquire uma importância universal; por fim, em casos excepcionais, pode
manifestar-se através de um concílio geral.[7] A catolicidade da Igreja, longe
de ser o privilégio de qualquer um ou centro específico, é concretizada na
riqueza e multiplicidade das tradições locais que dão testemunho unânime de uma
única Verdade: aquilo que é preservado sempre, em todos os lugares e por todos.
Uma vez que a Igreja é católica em todas as suas partes, cada um de seus
membros - não só o clero, mas também cada leigo - é chamado a confessar e a
defender a verdade da tradição; opondo-se até mesmo aos bispos se caírem em heresia. Um cristão
que recebeu o dom do Espírito Santo no sacramento da Santa Crisma deve ter
plena consciência de sua fé: ele é sempre responsável pela Igreja. Daí o
caráter inquieto e às vezes agitado da vida eclesiástica de Bizâncio, da Rússia
e de outros países do mundo Ortodoxo. Isso, no entanto, é o preço pago por uma
vitalidade religiosa, uma intensidade de vida espiritual que penetra toda a
massa dos crentes, unida na consciência de que formam um único corpo com a
hierarquia da Igreja. A partir disso, também vem a energia invencível que
permite à Ortodoxia passar por todas as provas, todos os cataclismos e
convulsões, adaptando-se continuamente à nova realidade histórica e
mostrando-se mais forte do que as circunstâncias externas. As perseguições dos
fiéis na Rússia, cuja fúria sistemática não conseguiu destruir a Igreja, são a
melhor testemunha de um poder que não é deste mundo.
A Igreja Ortodoxa, embora
comumente referida como Oriental,
considera-se, apesar disso, a Igreja universal; e isso é verdade no sentido de
que ela não está limitada por nenhum tipo particular de cultura, pelo legado de
qualquer civilização (helenística ou outra), ou por formas culturais
estritamente orientais. Além disso, oriente
pode significar muitas coisas: do ponto de vista cultural, o Oriente é menos
homogêneo do que o Ocidente. O que tem em comum o helenismo e a cultura russa,
apesar das origens bizantinas do cristianismo na Rússia? A Ortodoxia tem sido
fermento em muitas culturas diferentes para ser considerada uma forma cultural
do Cristianismo Oriental. As formas são diferentes: a fé é uma. A Igreja
Ortodoxa nunca confrontou culturas nacionais com outras que poderiam ser
consideradas especificamente Ortodoxas. É por esta razão que a sua obra
missionária conseguiu expandir-se tão prodigiosamente: testemunhar a conversão
da Rússia ao cristianismo nos séculos X e XI, e, mais tarde, a pregação do
Evangelho em toda a Ásia. No final do século XVIII, as missões Ortodoxas
chegaram às ilhas Aleutianas e ao Alasca, passaram de lá para a América do
Norte, criando novas dioceses da Igreja Russa além dos confins da Rússia,
espalhando-se para a China e o Japão. [8] As variações antropológicas e
culturais que se encontra da Grécia às partes mais remotas da Ásia e do Egito
ao Ártico, não destroem o caráter homogêneo desse parentesco de espiritualidade,
muito diferente do Ocidente cristão.
Existe uma grande riqueza de
formas de vida espiritual que se encontra dentro dos limites da Ortodoxia, mas
o monaquismo continua a ser a mais clássica de todas. Ao contrário do
monaquismo ocidental, no entanto, o do Oriente não inclui uma multiplicidade de
ordens diferentes. Este fato é explicado pela concepção da vida monástica, cujo
objetivo só pode ser a união com Deus em uma completa renúncia à vida deste
mundo presente. Se o clero secular (sacerdotes e diáconos casados), ou
confraternidades de leigos podem ocupar-se de trabalho social, ou se dedicar a
outras atividades externas, ocorre de outra forma com
os monges. Estes últimos tomam o hábito acima de tudo para se dedicarem
à oração, à vida interior, em um claustro ou eremitério. Entre um mosteiro de
vida comum e a solidão de um ancorita que segue as tradições dos Pais do
Deserto, existem muitos tipos intermediários de instituições monásticas.
Poder-se-ia dizer de forma geral que o monaquismo oriental era exclusivamente contemplativo, se a distinção entre
os dois caminhos, ativo e contemplativo, tivesse no Oriente o mesmo significado
que no Ocidente. Na verdade, para um monge oriental, os dois caminhos são
inseparáveis. Um não pode ser exercido sem o outro, pois a regra ascética e a
escola de oração interior recebem o nome de atividade
espiritual. Se os monges se ocupam de tempos em tempos com trabalhos físicos, é
acima de tudo com um fim ascético em vista: para melhor superar sua natureza
rebelde, bem como para evitar a ociosidade, inimiga da vida espiritual. Para
alcançar a união com Deus, na medida em que é realizável aqui na Terra,
exige-se esforço contínuo ou, mais precisamente, uma vigília incessante onde a
integridade do homem interior, "a união de coração e o espírito"
(para usar uma expressão do ascetismo Ortodoxo), resiste a todos os assaltos do
inimigo: todo movimento irracional de nossa natureza caída. A natureza humana
deve passar por uma mudança; deve ser cada vez mais transfigurada pela graça no
caminho da santificação, que tem um alcance que não é apenas espiritual, mas
também corporal e, portanto, cósmico. O trabalho espiritual de um monge que
vive em comunidade ou um eremita retirado do mundo conserva
todo o seu valor para o universo inteiro, mesmo que permaneça escondido
da vista de todos. É por isso que as instituições monásticas sempre tiveram
grande veneração em todos os países do mundo Ortodoxo.
O papel desempenhado pelos
grandes centros de espiritualidade foi muito considerável não apenas na vida
eclesiástica, mas também na esfera da cultura e da política. Os mosteiros do
Monte Sinai e de Studion, perto de Constantinopla, a república monástica do
Monte Athos, reunindo religiosos de todas as nações (havia monges latinos antes
do cisma), outros grandes centros além dos limites do Império, como o mosteiro
de Tirnovo, na Bulgária, e as grandes lavras
da Rússia - Petcheri em Kiev e a Santíssima Trindade próximo de Moscou - todos
foram bastiões da Ortodoxia, escolas da vida espiritual, cuja influência
religiosa e moral foi de primeira importância na moldagem de povos
recém-convertidos ao Cristianismo. [9] Mas se o ideal monástico teve uma
influência tão grande sobre as almas, esse não era, contudo, o único tipo de
vida espiritual que a Igreja oferecia aos fiéis. O caminho da união com Deus
pode ser buscado fora do claustro, em todas as circunstâncias da vida humana.
As formas externas podem mudar, os mosteiros podem desaparecer, como nos nossos
dias desapareceram por um tempo na Rússia, mas a vida espiritual continua com a
mesma intensidade, encontrando novos modos de expressão.
A hagiografia oriental, que é
extremamente rica, mostra ao lado dos santos monges muitos exemplos de
perfeição espiritual alcançado por leigos simples e pessoas casadas que vivem
no mundo. Também conhece caminhos estranhos e inusitados para a santificação:
aquele, por exemplo, dos "tolos por Cristo", que cometiam atos
extravagantes para que seus dons espirituais pudessem permanecer escondidos dos
olhos dos outros sob o horrível aspecto da loucura; ou, em vez disso, para que
eles pudessem ser libertados dos laços deste mundo em sua expressão mais íntima
e espiritualmente problemática, a de nosso "ego" social. A união com
Deus às vezes se manifesta através de dons carismáticos como, por exemplo, de
direção espiritual exercida pelos staretz ou anciões. Estes últimos são mais
freqüentemente monges que, tendo passado muitos anos de sua vida em oração e
isolados de todo o contato com o mundo, no final de suas vidas, abrem para
todos as portas de suas celas. Possuem o dom de poder penetrar nas
profundidades insondáveis da consciência humana, de revelar pecados e as
dificuldades internas que normalmente nos são desconhecidas, de elevar as almas
sobrecarregadas e de dirigir os homens não apenas no seu curso espiritual, mas
também em todas as vicissitudes de suas vidas no mundo.[11]
As experiências individuais dos
maiores místicos da Igreja Ortodoxa na maioria das vezes permanecem
desconhecidas para nós. Exceto
por algumas raras exceções, a literatura espiritual do Oriente cristão
possui pouquíssimos relatos autobiográficos que tratam da vida interior, como
os de Angela de Foligno e Henry Suso, ou como Histoire d’une âme de Santa Teresa de Lisieux. O caminho da união
mística é quase sempre um segredo entre Deus e a alma em questão, que nunca é
confiado aos outros, a não ser a um confessor ou alguns discípulos. O que é
publicado exteriormente é o fruto desta união: a sabedoria, a compreensão dos mistérios
divinos, expressando-se no ensinamento teológico ou moral ou no conselho para a
edificação de seus irmãos. Quanto ao aspecto interior e pessoal da experiência
mística, permanece escondido dos olhos de todos. Deve ser reconhecido que foi
apenas em um período comparativamente tardio, por volta do século XIII, na
verdade, que o individualismo místico fez sua aparição na literatura ocidental.
Apenas raramente São Bernardo fala diretamente de sua experiência pessoal - em
uma única ocasião nos Sermões sobre o Cântico dos Cânticos - e com uma espécie de relutância, seguindo o
exemplo de São Paulo. Foi necessário que certa divisão tivesse ocorrido entre a
experiência pessoal e a fé comum, entre a vida do indivíduo e a vida da Igreja,
para que a espiritualidade e o dogma, o misticismo e a teologia, pudessem se tornar duas esferas distintas; e para que
as almas incapazes de encontrar alimento adequado nas sumas teológicas se
voltassem para buscar com avidez nos relatos de experiência mística individual,
a fim de revigorar-se numa atmosfera de espiritualidade. O individualismo
místico permaneceu estranho à espiritualidade da Igreja Oriental.
O padre Congar está certo quando
diz: "Nós nos tornamos homens diferentes. Nós temos o mesmo Deus, mas
diante Dele somos homens diferentes, incapazes de concordar quanto à natureza
do nosso relacionamento com Ele". [12] Mas, para avaliar com precisão essa
divergência espiritual, seria necessário examiná-la em suas manifestações mais
perfeitas: nos diferentes tipos de santidade no Oriente e no Ocidente desde o
cisma. Só então seríamos capazes de falar do vínculo estreito que sempre existe
entre o dogma que a Igreja confessa e o fruto espiritual que produz. Pois a experiência interior do cristão se
desenvolve dentro do círculo delineado pelo ensino da Igreja: dentro do quadro
dogmático que molda sua pessoa. Se até mesmo uma doutrina política professada
pelos membros de um partido pode modelar a mentalidade deles de forma a
produzir um tipo de homem distinguível dos outros por certas marcas morais ou
psíquicas, a fortiori o dogma
religioso consegue transformar as próprias almas daqueles que o confessam. São
homens diferentes dos outros homens, daqueles que foram formados por outra concepção
dogmática. Nunca é possível entender uma espiritualidade se não se tiver em
conta o dogma em que está enraizada. Devemos aceitar os fatos como são, e não
procurar explicar a diferença entre a espiritualidade oriental e ocidental por
motivos raciais ou culturais quando uma questão maior, uma questão dogmática,
está em jogo. Nem
podemos dizer que as questões da processão do Espírito Santo ou da natureza da
graça não têm grande importância no esquema da doutrina cristã, que permanece
mais ou menos idêntica entre os Católicos Romanos e entre os Ortodoxos. Em
dogmas tão fundamentais como estes, é este "mais ou menos" que é
importante, pois transmite uma ênfase diferente a toda doutrina, apresenta-a em
outra luz; em outras palavras, dá lugar a outra espiritualidade.
Fica a cargo do leitor julgar em
que medida esses aspectos teológicos do misticismo Ortodoxo podem ser úteis
para a compreensão de uma espiritualidade que é estranha ao cristianismo
ocidental. Se, permanecendo leais aos nossos respectivos pontos de vistas
dogmáticos, conseguirmos conhecer uns aos outros, sobretudo nos pontos em que
diferimos, isso, sem dúvida, seria um caminho mais seguro em direção à união do
que aquele que deixa as diferenças de lado. Pois, nas palavras de Karl Barth,
"a união das Igrejas não é produzida, mas a descobrimos". [13]
NOTAS
1 Sermons and Addresses of the Metropolitan
Philaret, Moscow, 1844, Part II, p. 87. (In Russian.)
2 Veja o artigo por M. H.-Ch. Puech: ‘Où en est le problème du
gnosticisme?’, Revue de l’Université de Bruxelles, 1934, Nos. 2 and 3.
3 II Cor. xii, 2–4.
4 M. J. Congar, O.P., Chrétiens
désunis. Principes d’un
‘oecuménisme’ catholique, Paris, 1937, p. 15. English translation by M. A.
Bousfield, Divided Christendom, London, 1939, p. 13.
5 Synod of Constantinople, 1872. v. Mansi,
Coll. concil., vol. 45, 417–546. See also the article by M. Zyzykine: ‘L’Eglise
orthodoxe et la nation,’ Irénikon, 1936, pp. 265–77.
6 Assim, o Patriarcado de Moscou
inclui as dioceses da América do Norte e de Tóquio além das fronteiras da
Rússia. Por outro lado, o catolicato da Geórgia, embora dentro dos limites dos
EUA, não faz parte da Igreja Russa. Os territórios dos Patriarcados de
Constantinopla, Alexandria, Antioquia e Jerusalém são politicamente dependentes
de muitos poderes diferentes.
7 O nome do Concílio Ecumênico,
dado no Oriente aos sete primeiros sínodos gerais, corresponde a uma realidade
de caráter puramente histórico. Estes são os concílios dos territórios
"ecumênicos", isto é, do Império Bizantino que se estendeu (teoricamente,
pelo menos) por todo o mundo cristão. Em épocas posteriores, a Igreja Ortodoxa
conheceu concílios gerais que, sem ter o título de "ecumênico", não
eram nem menores nem menos importantes.
8 Veja S. Bolshakoff, The Foreign Missions of
the Russian Orthodox Church, London, 1943.
9 Há algumas informações úteis
sobre o monasticismo oriental no pequeno livro de pe. N. F. Robinson, S.S.J.E., intitulado
Monasticism in the Orthodox Churches (Londres, 1916). Sobre o Monte
Athos, veja Hasluck: Athos e seus Monastérios (Londres, 1924) e F. Spunda, Der
Heilige Berg Athos (Leipzig, 1928). Para a vida monástica na Rússia, ver os
seguintes estudos de Igor Smolitsch, 'Studien zum Klosterwesen Russlands', em
Kyrios, n. 2 (1937), pp. 95-112 e n. 1 (1939), pp. 38, e, acima de tudo, o
mesmo autor 'Das altrussische Mönchtum' (XI-XVI Jhr.), Würzburg, 1940, em Das
östliche Christentum, XI, e Russischer Mönchtum, Würzburg, 1953.
10 Veja sobre esse assunto E.
Benz, ‘Heilige Narrheit’, in Kyrios, 1938, Nos. i and 2, pp. 1–55; Mme
Behr-Sigel, ‘Les Fous pour le Christ et la sainteté laïque dans l’ancienne
Russie’, in Irénikon, Vol. XV
(1939), pp. 554–65; Gamayoun, ‘Etudes sur la spiritualité populaire russe: les
fous pour le Christ’, in Russie et Chrétienté, 1938–9, I, pp. 57–77.
11 Smolitsch, Leben und Lehre der Starzen,
Vienna, 1936.
12 Congar, op. cit., p. 47.
13 ‘The Church and the churches’, Oecumenica,
III, No. 2, July, 1936.
Boa noite, irmão em Cristo, Nosso Senhor e Salvador! Eu soube que os ortodoxos acreditam que existe uma purificação depois da morte; ela é semelhante a do Catolicismo?
ResponderExcluirNão acreditamos em uma purificação após a morte. Os Ortodoxos não acreditam em purgatório.
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