A jornada da alma em direção a Deus, expliquei a Emily naquele dia, deve passar por três estágios identificáveis e distintos. No início, há o estágio da Catarsis, ou a purificação da alma de paixões egoístas. Segue-se o estágio da Fotisis, ou a iluminação da alma, um dom do Espírito Santo, uma vez que a alma sofreu a sua purificação. Finalmente, o estágio da Theosis, união com Deus, como destino e lar final da alma humana. Os últimos dois estágios são impossíveis de alcançar sem que a alma primeiro passe pelas chamas da catarsis das paixões egoístas.
Além de compartilhar essas idéias com Emily e Mike, também tive a oportunidade de desenvolvê-las e apresentá-las em uma conferência realizada no mês de maio em Montreal. O tema da conferência anual foi a interface entre as tradições de sabedoria do mundo e a ciência moderna. A preparação para minha apresentação me ajudou a resumir a importância deste Caminho Triplo, à medida que eu compreendia-o através da minha exploração da espiritualidade Athonita e do meu aprendizado com o Padre Maximos.
De acordo com a tradição de sabedoria dos santos anciãos, eu disse à audiência que a Catarsis é essencial para nos ajudar a superar os dois obstáculos básicos que nos mantém separados do conhecimento e da visão de Deus. A barreira mais fundamental é antes de tudo a soma total de nossas paixões e desejos mundanos. Essas paixões são produtos do encantamento e da escravização de nossos corações e mentes pelo o universo material grosseiro e transitório, com suas miríades de tentações e seduções.
A segunda barreira fundamental que nos impede de conhecer a Deus é a nossa confiança exclusiva em nossos sentidos e no intelecto racional para a compreensão da realidade, que passamos a equiparar a matéria grosseira. A maior parte da filosofia e teologia ocidental foi vítima dessa falácia racionalista e sensorial.
Ao se concentrar principalmente no mundo material, perdemos nossa conexão com o céu. Perdemos o relacionamento com Deus que Adão e Eva apreciaram antes da Queda, ou que o Filho Pródigo tinha antes de sua decisão de deixar o Palácio celestial. Essa divisão está no cerne de nossa situação existencial e é a causa de todas as perturbações e sofrimentos psíquicos subseqüentes.
Como os humanos podem curar esta divisão e como a Catarsis pode ser alcançada? A resposta de Athonita é através da askesis, ou exercício espiritual. O praticante em tempo integral da askesis é o "asceta" que, ao contrário das noções negativas populares sobre o significado dessa palavra, é alguém que se dedica exclusivamente a exercícios espirituais para obter o prêmio final da Theosis. Assim como o corredor de maratona cujo corpo é submetido a um treinamento rigoroso e muitas vezes doloroso, o "asceta" deve ser submetido a um treinamento sistemático e extenuante semelhante. Tais atos podem parecer incompreensíveis e até mesmo masoquistas para um estranho.
De acordo com os anciãos athonitas, a askesis implica a superação da atração dos sentidos que mantêm a mente e o coração escravizados neste mundo de matéria grosseira. Monges e freiras, bem como leigos comprometidos, devem substituir os prazeres culinários pelo jejum periódico e sistemático como forma de exercício espiritual, a fim de dominar a paixão da gula. Monges e freiras também devem substituir a vida sexual pela abstinência para libertar sua energia e redirecioná-la exclusivamente para o objetivo maior de estabelecer um relacionamento "erótico" com o Divino. A posse de objetos materiais deve dar lugar a total não-possessão e a pobreza. Além disso, os aspirantes novatos devem se esvaziar de todos os desejos e ambições mundanas e desistir de quaisquer posições sociais de poder e prestígio que possam ter mantido na sociedade.
O cristianismo oriental oferece alguns casos dramáticos de indivíduos que rejeitaram grandes riquezas e poder por uma existência contemplativa em tempo integral. Um desses casos foi o de São Savva, o maior dos santos sérvios que um dia foi rei da Sérvia. Ele renunciou ao seu trono, juntou-se a Chilandari, o mosteiro sérvio no Monte Athos, e mais tarde retornou à Sérvia para servir seus ex-súditos como professor e médico espiritual.
Os leigos devem desenvolver uma sensação de liberdade interior de possessões externas, posições e sentimentos de auto-importância. Eles são convidados a usar os objetos deste mundo, mas não se tornarem emocionalmente ligados e escravizados por eles. As pessoas comuns que vivem no mundo também podem se envolver na askesis, pois, de acordo com os santos anciãos, a própria vida é uma forma de askesis. Quando é praticada, qualquer evento que vem deve ser visto como uma "tentação" que pode ser "explorada" espiritualmente para alcançar a humildade, o caminho real e único para Deus. A humildade ou a superação das paixões egoístas pode ser alcançada no contexto do monaquismo ou dentro da vida no mundo mais amplo, com a sua miríade de "tentações" positivas e negativas. O casamento, por exemplo, é considerado pela Ecclesia como uma forma de askesis, uma arena para transcender a absorção do ego pelo o outro. É um erro, argumentava o padre Maximos, considerar o casamento, como fazem muitos cristãos tradicionais, como principalmente um meio de procriação. O objetivo primário do casamento é a askesis praticada por duas pessoas que são convidadas a superar sua separação em sua ascensão comum em direção a Deus.
Quando se é esvaziado de apegos mundanos e preocupações e se atinge a kenosis, a mente pode então ser preenchida com a realidade de Deus. A oração incessante substitui a confiança exclusiva na razão e no intelecto para apreender a natureza da realidade. Se alguém vive no mundo ou num mosteiro, a prática da oração permanece no centro da vida espiritual.
Ao empreender um esforço espiritual sério, idealmente precisa-se de um guia experiente, um ancião com dons divinos. Tal ancião assumiria a sagrada responsabilidade de monitorar o desenvolvimento espiritual do iniciante, ajudando o novato a navegar através da miríade de obstáculos que podem ser encontrados neste tipo de esforço. A tradição Athonita preservou este sistema de "paternidade espiritual", que parece ter desaparecido em qualquer outro lugar dentro do movimento cristão. Na ausência de um ancião, o leigo ainda pode ser espiritualmente nutrido pela tradição da Ecclesia. Também é possível estudar livros sagrados como a Bíblia, bem como as vidas e ensinamentos dos santos. Os santos, o padre Maximos dizia repetidamente, podem servir de farol para navegar pelo caminho espiritual. Eles podem nos ensinar a viver e a desenvolver o tipo de discernimento necessário para que possamos distinguir o autêntico do não autêntico, o mestre ou santo do falso profeta e impostor, os anjos dos demônios.
Eu disse à minha audiência em Montreal que a noção de Catarsis é seriamente deficiente e quase completamente ignorada no Ocidente. Mesmo dentro da Nova Era, movimento espiritual de potencial humano, que floresceu nos últimos tempos, pouca atenção foi dada à Catarsis como o desfoque da mente das preocupações egoístas e a reorientação no Divino. A maior atenção tem sido colocada no empoderamento pessoal, na transformação e na obtenção de estados extáticos e poderes psíquicos. Portanto, um dos dons espirituais que o Oriente cristão pode trazer para o Ocidente contemporâneo, eu argumentei, é a metodologia da catarsis para superar o culto ao narcisismo.
Fotisis, a iluminação da alma, eu continuei a argumentar, não pode ser alcançada pelo esforço humano. Fotisis é a conseqüência natural do esforço realizado durante a etapa anterior de Catarsis e é oferecido ao coração como um dom pelo Espírito Santo. É somente no estágio da Catarsis que a vontade humana pode e deve estar ativamente envolvida. Fotisis como um dom de Graça é, entre outras coisas, a própria Sabedoria Sagrada. Nesse estado, a alma purificada, o santo, torna-se um canal através do qual Deus revela Sua Sabedoria, que é o verdadeiro significado da Iluminação, ou Fotisis.
Os anciãos santos cristãos ensinam que uma alma que foi purificada de paixões egoístas e chegou ao estágio de Fotisis geralmente é dotada de dons do espírito, como visão profética, cura, clarividência e outras habilidades "paranormais" que parecem violar as leis conhecidas da física. Mais importante, no entanto, Fotisis significa a visão e a experiência da Luz Incriada, a luz divina de Deus. É a experiência mística de Moisés no Monte Sinai, de Jesus no Monte Tabor, dos apóstolos no Pentecostes e de todos os santos ao longo dos tempos.
Antes de sua morte em 1994, ancião Paisios confiou a um hieromonge que era um conhecido próximo dele sobre uma experiência extraordinária que ele teve com a Luz Incriada que era típica de outros relatos. "Uma noite, enquanto eu estava na minha cela, recitando a Efche, a Oração de Jesus", ele relatou, "eu comecei a me sentir sobrecarregado com uma alegria celestial. Minha cela escura, acesa por apenas uma vela, começou a ser preenchida gradualmente com uma luz azul-branca muito bonita. No início, a luz era muito intensa. Mas então meus olhos se acostumaram ao seu brilho. Foi a Luz Incriada que se manifestou! Fiquei naquela condição durante várias horas e perdi todas as sensações de assuntos mundanos. Eu vivi em um mundo espiritual diferente, muito diferente desse mundo de carnalidade.
Enquanto naquele estado eu fui exposto a visões celestiais e experiências extraordinárias. Sem perceber, muitas horas passaram. Então, a Luz Incriada começou a recuar e voltei para a minha condição anterior. Eu estava com fome e comi um pedaço de pão seco. Eu estava com sede e bebi um pouco de água. Eu estava cansado e sentei-me para descansar. Eu me senti como um animal e deplorava-me por não ser diferente dos animais. Esta humildade natural nasceu dentro de mim como conseqüência da mudança na minha situação. Da condição espiritual em que eu estava, entrei nessa e, percebendo a diferença, restava-me pouca coisa além de me condenar e me detestar. Quando andei lá fora, pensei que ainda era noite de lua cheia. Não muito longe de mim, vivia outro irmão em seu eremitério. Eu andei até lá e perguntei-lhe a hora. Eram dez da manhã. A Luz Incriada foi tão intensa que pensei que a luz do dia era noite e o sol era a lua!"
A experiência da Luz Incriada também pode assumir outras formas. Pode provocar fenômenos de cura dramáticos e servir como um escudo contra perigos externos. Um caso extraordinário é o do famoso crítico de arte russo Peter Andreyevich Streltzov, que se juntou ao mosteiro na Optina e se tornou um hieromonge com o nome de padre Arseny. Durante o terrorismo stalinista, o padre Arseny foi exilado para a Sibéria em um gulag, um dos famosos campos de prisioneiros. Durante dezenove anos, entre 1939 e 1958, em condições extremas, o carismático padre Arseny trouxe cura e consolo a muitos prisioneiros, incluindo comunistas e criminosos endurecidos. Muitos desses prisioneiros, tocados por seus atos de bondade e altruísmo, foram transformados e se tornaram seus discípulos. O episódio mais dramático ocorreu quando o padre Arseny e um jovem prisioneiro chamado Alexei foram trancados em uma barraca de isolamento não aquecida feito de nada além de ferro fundido. Sua sentença era ficar trancado lá por quarenta e oito horas em temperaturas abaixo de trinta graus Fahrenheit [-34º C]. Na realidade, foram condenados a uma morte cruel. Os guardas esperavam encontrar dois cadáveres congelados quando abriram a porta dois dias depois.
De acordo com seu biógrafo, no momento em que os guardas fecharam a porta, o padre Arseny aconselhou calmamente o seu companheiro para aproveitar a oportunidade que lhes foi oferecida e a orar abertamente e sem medo. Ele então se colocou imediatamente em um estado de oração intensa. Alexei, que não era religioso, pensou que o padre Arseny tinha perdido a cabeça. Ele estava começando a sentir seu corpo se congelando e se preparando para morrer. O espaço era preenchido com a voz do padre Arseny orando. De repente, tudo mudou. A escuridão, o frio, o entorpecimento, a dor e o medo desapareceram. Alexei olhou para ele e não podia acreditar em seus olhos. A câmara de isolamento tornou-se espaçosa e muito brilhante e o interior se assemelhava a uma igreja. O padre Arseny agora estava vestindo roupas brilhantes enquanto orava alto com as mãos levantadas. De cada lado do padre Arseny, um jovem muito bonito estava vestindo um traje brilhante. Alexei levantou-se. Seu corpo estava quente, ele conseguia respirar livremente, e seu coração estava cheio de alegria. Ele então começou a seguir o padre Arseny com a oração, sentindo a presença de Deus com eles. Duas vezes o pensamento cruzou a mente de Alexei de que estavam morrendo e que estavam em estado de delírio. Mas tudo parecia o contrário. Sentia tudo totalmente real. O padre Arseny pediu-lhe que se deitasse e dormisse enquanto continuava com a oração.
Em algum momento eles ouviram gritos e pancadas na porta. Alexei abriu os olhos e viu que o padre Arseny ainda estava rezando. Os dois jovens os abençoaram e desapareceram instantaneamente. A luz gradualmente recuou e eles se encontraram novamente dentro da cabana estreita e congelada. Quando os guardas abriram a porta, ficaram atordoados. Em vez de dois cadáveres congelados, eles encontraram ambos de pé com sorrisos guardados e rostos serenos. Estamos vivos, o padre Arseny simplesmente anunciou aos guardas atônitos, recusando-se a oferecer mais explicações.
É importante notar aqui que a experiência da Luz Incriada pode inesperadamente acontecer a qualquer ser humano, independentemente de sua posição na vida. Alexei não era um crente no entanto, ele teve a experiência da Luz Incriada, que não só salvou sua vida, mas também transformou-o como uma pessoa. Saulo era um perseguidor de cristãos até que ele caiu de seu cavalo na estrada para Damasco e foi cegado temporariamente pelo brilho da Luz Incriada. Essa experiência o catapultou a cumprir sua extraordinária missão histórica como São Paulo, apóstolo das nações.
Uma vez que os dons da Graça são concedidos a uma pessoa através da Fotisis, então a Theosis é o destino seguinte e final da jornada da alma. Este estágio está além de todos os estágios e desafia toda a compreensão humana. De acordo com a tradição dos santos anciãos e do cristianismo em geral, a alma individual não perde a sua singularidade ao retornar a Deus. Não se fundem com Deus de tal forma que sua autonomia é comprometida ou destruída. O Filho Pródigo não perde sua identidade ao retornar ao palácio. Pelo contrário, ele traz consigo em seu novo estado deificado as experiências acumuladas de sua permanência temporária mundana.
Este ponto particular pode ser uma das principais diferenças entre a espiritualidade dos anciãos cristãos e de algumas crenças budistas sobre o destino final da alma humana. Do ponto de vista dos anciãos cristãos, o que é aniquilado através da Catarsis não é a "consciência do eu" interna e auto-consciente, mas a soma das paixões egoístas que obstruem nossa visão de Deus. São Serafim de Sarov pode estar em estado de união com Deus, mas ele ainda permanece autônomo dentro dessa unicidade como uma alma consciente de si mesma, como São Serafim servindo o plano de Deus. [...]
Apesar dessas limitações inerentes à compreensão da Theosis, os adeptos espirituais, os grandes santos e os teólogos contemporâneos tentaram transmitir-nos um pequeno vislumbre desse último mistério do destino humano. "A divinização do indivíduo é o dom supremo da Graça do Espírito Santo", escreveu um teólogo grego contemporâneo que baseou seu trabalho nos testemunhos experienciais dos principais anciãos da Ecclesia. Os seres humanos deificados sofrem mudanças não só na mente e na alma, mas também no corpo. Tais indivíduos se tornam esquecidos das necessidades corporais comuns, como alimentos e sono, uma vez que não têm os impulsos físicos e as necessidades dos humanos comuns. Tais pessoas não são mais sujeitas e confinadas pelas leis físicas como humanos comuns. "Sua alma provou a profundidade do Eros divino e a doçura dos dons mentais e, portanto, não pode descansar sobre o que alcançou até agora, mas prossegue para outros domínios celestiais".
Finalmente, o ensino dos santos anciãos sobre a Theosis tem sua dimensão social. "A theosis não deve ser vista no contexto de uma alegria pessoal e egocêntrica. Muitas vezes, é sublinhado pelos santos anciãos que o indivíduo deificado, mesmo que ele (ou ela) tenha alcançado a perfeição dentro de um Deus perfeito e tenha se unido com os maiores poderes arcangélicos dos Querubins e Serafins, [ele] não descansa nesta condição de alegria. Em vez disso, ele se torna um emissário do Espírito Santo, escolhendo viver entre os semelhantes e servi-los através de palavras e ações, como os apóstolos. Tal pessoa deificada, que está em contínua contemplação de Deus, é capaz de guiar os outros para a salvação e Theosis.” [...]
Por que os intelectuais, os historiadores da religião e os teólogos ocidentais têm ignorado o ensinamento dos anciãos cristãos sobre o Caminho Triplo? Eu me perguntava. Por que o influente e polêmico bispo anglicano de Newark, o Dr. John Spong, por exemplo, declarou com total frustração que "se a Comissão Anglicana pode virar tão longe para a direita, junta-se a um estridente protestantismo fundamentalista, um antiquado catolicismo romano, e uma tradição ortodoxa irrelevante como as principais expressões do cristianismo no início do século XXI. . . Não vejo nenhuma esperança para um futuro cristão em nenhum deles. Há poucas dessas tradições conservadoras com as quais eu poderia identificar."?
O bispo Spong parece ser um teólogo racionalista e radical que não mostra interesse ou consciência da tradição mística e milagrosa dos santos anciãos. Ele julga o cristianismo com base em como ele é representado pelas igrejas, e não pela Ecclesia mística, como encarnada na vida dos santos. Ele não está sozinho entre os teólogos ocidentais, os historiadores e os filósofos ocidentais oferecendo esse tipo de avaliação em relação aos aspectos externos da tradição cristã. O interesse deles é na ética, na justiça social e na reforma. Ainda que façam pesquisas salutares como estas, elas não são como eu entendo caminhos para a iluminação mística. A questão que eu tentei explorar é, por que esses estudiosos desconhecem ou estão dispostos a desconsiderar toda uma tradição mística cristã? Estas foram perguntas que levantei com meus alunos durante um seminário sobre a sociologia da religião que ofereci no seguinte ano acadêmico.
A resposta sociológica, expliquei aos meus alunos, reside na forma como o cristianismo se desenvolveu nos parâmetros históricos do Império Romano. Constantino, o imperador romano do século IV, tomou algumas decisões cruciais que tiveram um impacto duradouro tanto sobre a civilização ocidental quanto sobre o cristianismo. Em meados do século IV ele elevou o cristianismo de uma seita perseguida à religião oficial do Império Romano. Desde então, o cristianismo e o judaísmo de que emergiu, juntamente com a filosofia grega e o direito romano, tornaram-se o terceiro pilar cultural que sustentou o que entendemos como a civilização ocidental. O politeísmo dos antigos foi substituído pelo Deus Único de Israel, e os Dez Mandamentos tornaram-se o fundamento ético do Ocidente. Constantino então mudou a capital de seu império de Roma para Constantinopla depois que ele percebeu que os primeiros se tornaram vulneráveis às tribos bárbaras do norte. Mudar a capital para "a Nova Roma" foi uma decisão estratégica crucial que afetou o curso da história ocidental. Permitiu que o império durasse mais mil anos. Havia, talvez, uma razão adicional para mudar sua capital para o leste. A antiga Roma estava muito manchada com seu passado pagão. Constantinopla foi um novo começo, uma cidade sem história, fundada exclusivamente na nova religião.
Enquanto a parte oriental do império conhecida como Bizâncio florescia e prosperava, a infra-estrutura social e política da parte ocidental do império acabou por desmoronar sob o peso das invasões germânicas. Este desenvolvimento deixou a Igreja Romana como a única instituição organizada, mantendo uma sociedade da Europa Ocidental politicamente fragmentada e barbarizada. A Idade das Trevas caiu sobre a Europa, um desenvolvimento que não ocorreu em Bizâncio, e este é um ponto importante que os historiadores ocidentais têm muitas vezes esquecido. É interessante notar que durante a Idade das Trevas, Constantinopla era um dos principais centros de cultura com mais de um milhão de habitantes, enquanto que Paris tinha apenas alguns milhares. Aqui está como um historiador medieval descreveu as condições prevalecentes no Ocidente:
“A liderança tão necessária pela sociedade ocidental desorganizada do século VI só poderia vir inicialmente da igreja, que tinha em suas fileiras quase todos os homens alfabetizados na Europa e as instituições mais fortes da época. A igreja, no entanto, também sofria severamente com as invasões germânicas. Os bispos identificaram seus interesses com os da nobreza leiga e eram freqüentemente parentes de reis e aristocratas mais poderosos; o clero secular em geral era ignorante, corrupto e incapaz de lidar com o problema de cristianizar uma sociedade que permanecia intensamente pagã apesar da conversão formal de massas de guerreiros germânicos ao cristianismo. As maiores superstições pagãs foram enxertadas no cristianismo latino. . . . No início do século VII, a disciplina da igreja na Gália estava em um estado de caos, e o problema era o mais básico de preservar os rudimentos suficientes da alfabetização para perpetuar a liturgia nas doutrinas do cristianismo latino. . . . A igreja latina foi preservada da extinção, e a civilização européia com ela, pelas duas instituições eclesiásticas que, por sua vez, tinham força e eficiência para resistir a força do barbarismo circundante: o clero regular (isto é, os monges) e o Papado.”
Esses desenvolvimentos históricos sinalizaram o início da preocupação da Igreja ocidental com a gestão deste mundo, tanto que, em alguns casos, o próprio Papa participou de expedições militares e usou a espada com a mesma tranqüilidade que o Evangelho. Foi um desenvolvimento horrível para os monges e eremitas orientais, que se opuseram a qualquer tipo de violência. "A relutância da igreja bizantina em aceitar que o fim pode justificar os meios (até o ponto de insistir que matar soldados inimigos na batalha era pecaminoso) levaram a um sentimento de que ninguém poderia se envolver em política, guerra ou comércio sem alguma mancha moral. Isso colocou os bizantinos em certa desvantagem contra comerciantes ou cruzados ocidentais, ou guerreiros muçulmanos".
Enquanto as instituições políticas e militares da parte ocidental do império colapsaram, a infra-estrutura social e política geral da parte oriental do Império Romano permaneceu relativamente intacta. Os vários imperadores ainda lidavam com os assuntos deste mundo, muitas vezes cometendo crimes atrozes contra seus inimigos, enquanto a Igreja permaneceu do outro mundo, tanto na sua práxis como na orientação teológica, cumprindo seu papel como a consciência do império e servindo freqüentemente como um poder de compensação contra a arbitrariedade do poder imperial. Seu foco e domínio legítimo não eram os assuntos do estado, mas os reinos além deste mundo. O elemento místico do cristianismo oriental (o Caminho Triplo) que sobreviveu até hoje em algumas comunidades monásticas antigas pode, portanto, ser atribuído ao fato de que, em Bizâncio, a Igreja, ao contrário de sua contraparte ocidental, não exerceu o poder político direto e autoridade sobre sociedade. Havia limites claros e definitivos entre a esfera eclesiástica e religiosa, por um lado, e o estado imperial, por outro. O imperador como o "vicegerente de Cristo" na Terra percebia como seu principal papel a salvaguarda e proteção do cristianismo ortodoxo. Com o apoio econômico e político completo do estado, os monges foram deixados em paz em seus mosteiros para concentrar toda a sua energia e atenção na exploração sistemática da vida espiritual interior e dos objetivos do outro mundo. Enquanto o cristianismo ocidental se tornou mais orientado para este mundo, o cristianismo oriental permaneceu monástico e de caráter eremítico.
A função essencial dos monges e das freiras era vista como a busca da santidade. Os mosteiros bizantinos podem ter dedicado menos tempo a estudar e educar do que os seus homólogos ocidentais, mas levaram a sério a obrigação de hospitalidade e trabalhos patrocinados de caridade, estabelecendo hospitais, orfanatos e casas para os pobres. No entanto, o maior estresse foi colocado na abnegação do mundo, como foi plenamente demonstrado pelos mosteiros de Meteora agarrados às rochas perpendiculares das montanhas da Tessália ou pela extraordinária república monástica da Montanha Sagrada de Athos.
Os diferentes desenvolvimentos históricos das partes ocidental e oriental do Império Romano foram paralelos e talvez foram responsáveis pelo surgimento de duas orientações distintas na teologia cristã. O tipo que se desenvolveu no Ocidente baseou-se no pensamento de Aristóteles, o precursor filosófico da revolução científica e do filósofo cujo principal foco era o estudo deste mundo. Deus como o "Motor Imóvel", ensinava Aristóteles, pode ser conhecido e comprovado pelo estudo da natureza e através de deduções filosóficas e lógicas. São Tomás de Aquino, que introduziu Aristóteles no Ocidente, foi o catalisador para a Igreja Católica Romana abraçar a filosofia aristotélica e estabelecê-la como a orientação central na teologia católica. A teologia ocidental, ao aderir a tal orientação, instalou de fato as sementes para a revolução científica e o surgimento do racionalismo que abriu o caminho para o mundo secular moderno como a conhecemos. Esta perspectiva "escolástica", no entanto, estava em desacordo com a do cristianismo oriental, que acreditava que Deus só pode ser conhecido através da prática espiritual e da iluminação mística direta.
O cristianismo finalmente se dividiu formalmente nas igrejas romana e a ortodoxa oriental durante o Grande Cisma de 1054. Desde então, as "duas cristandades" seguiram suas formas radicalmente diferentes e separadas.
O cristianismo ocidental sofreu outras convulsões radicais que levaram ao aumento da secularização. Em meados do século XVI, Martinho Lutero pregou na porta de sua igreja suas "Noventa e cinco teses" que lançaram a revolução contra o Papa. Com o protestantismo, o monaquismo como instituição foi abolido, bem como a prática de honrar os santos, que tradicionalmente tinham servido de faróis espirituais no caminho para Theosis. Nas palavras do padre Maximos, foi como se "o coração tivesse sido retirado do cristianismo".
Além de um repúdio cultural da vida clausurada, o protestantismo redirecionou os crentes para expressar sua fé através de um "ascetismo mundano", uma orientação de ação disciplinada e racional no mundo. Como o grande sociólogo alemão Max Weber mostrou, essa reorientação da cultura ocidental teve como consequência não intencional o desenvolvimento de uma “ética protestante do trabalho” que desempenhou um papel importante revolucionando o mundo, abrindo as portas para o capitalismo moderno e a Revolução Industrial.
Por meio de uma abordagem primordialmente racional e escolástica de Deus e, ao marginalizar o Caminho Triplo, o Cristianismo Ocidental travou uma batalha perdida com a ciência, que eventualmente passou a ser vista por muitos pensadores ocidentais como uma alternativa à religião. A tradição intelectual ocidental, desde a Idade Média, foi, portanto, galvanizada por um implacável espírito adversário contra a religião, que foi identificada e equiparada ao atraso social e à política reacionária.
O cristianismo oriental, por outro lado, permaneceu até recentemente cortado e isolado dessas influências secularizadoras, principalmente por causa da queda de Constantinopla para os turcos em 1453 e a queda da Rússia ortodoxa para os comunistas em 1917. Uma conseqüência talvez dessa hibernação cultural e o isolamento dos desenvolvimentos históricos ocidentais foi a preservação da tradição monástica cristã oriental, que salvaguardou até à hoje o Caminho Triplo e a instituição da "paternidade espiritual", produtos da existência milenar de Bizâncio.
Kyriacos C. Markides, do livro The Mountain of Silence: A Search for Orthodox Spirituality
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