1 Prólogo - Sinais no Caminho
2 Deus como Mistério
3 Deus como Trindade
4 Deus como Criador
5 Deus como Homem
6 Deus como Espírito
7 Deus como Oração
8 Epílogo - Deus como Eternidade
Um dos sábios daquele tempo aproximou-se de Santo Antão no
deserto e disse: "Pai, como você pode tolerar morar aqui, privado de toda a
consolação dos livros?". Santo Antão respondeu: "Meu livro, filósofo,
é a natureza das coisas criadas, e sempre que desejo, possa lê-lo nas obras de
Deus".
Evágrio do Ponto
Compreende que tens dentro de ti mesmo, em pequena escala,
um segundo universo: dentro de ti há um sol, uma lua, e também estrelas.
Orígenes
Olhe para os céus
A atriz Lillah McCarthy descreve como certa vez que
ela foi ao encontro de George Bernard Shaw sofrendo muito, logo
depois de ter sido abandonada por seu marido:
Eu tremia. Shaw permaencia
imóvel. O fogo trouxe-me calor ... Quanto tempo ficamos lá, não sei, mas agora
encontrava-me andando com passos arrastados com Shaw ao meu lado... para um
lado e para outro no Terraço Adelphi. O peso sobre mim ficou um pouco mais leve
e libertou as lágrimas que nunca poderiam ter saído antes... Ele
me deixou chorar. Logo ouvi uma voz em que falavam toda a gentileza e ternura
do mundo. Ela disse: "Olhe, querida, olhe para os céus. Há mais na vida do
que isso. Há muito mais."
Seja qual for a sua própria fé em Deus ou a falta dela,
Shaw aponta aqui algo que é fundamental para o Caminho espiritual. Ele não
ofereceu palavras suaves de consolo a Lillah McCarthy, ou fingiu que sua dor
seria fácil de suportar. O que ele fez foi mais perspicaz. Ele pediu a ela que olhasse
para fora de si mesma por um momento, para fora de sua tragédia pessoal, e que visse o mundo em sua
objetividade, que sentisse sua maravilha e variedade, a sua qualidade "isso
mesmo". E o seu conselho aplica-se a todos nós. Não importa o quão
oprimido eu esteja pela minha angústia ou pela dos outros, não devo esquecer-me
de que há mais no mundo do que isso, muito mais.
São João de Kronstadt diz: "A oração é um estado de
contínua gratidão". Se eu não tiver um sentimento de júbilo pela criação
de Deus, se me esqueço de oferecer o mundo de volta a Deus com gratidão,
avancei muito pouco no Caminho. Ainda não aprendi a ser verdadeiramente
humano. Pois é apenas por meio da ação de graças que posso tornar-me realmente quem sou. A ação de
graças repleta de júbilo., longe de ser escapista ou sentimental, é, pelo
contrário, inteiramente realista - mas com o realismo de quem vê o mundo em
Deus, como a criação divina.
A Ponte do Diamante
‘Tu nos trouxeste à existência a partir do nada’ (Liturgia
de São João Crisóstomo). Como podemos entender a relação de Deus com o mundo
que Ele criou? O que se entende por esta frase "a partir do nada", ex
nihilo? Por que, de fato, Deus criou?
As palavras ‘a partir do nada’ significam, em primeiro
lugar, que Deus criou o universo por um ato de seu livre arbítrio. Nada o
obrigou a criar; Ele escolheu fazê-lo. O mundo não foi criado involuntariamente
ou por necessidade; não é uma emanação automática ou um transbordamento de
Deus, mas a conseqüência duma escolha divina.
Se nada forçou Deus a criar, por que então escolheu
fazê-lo? Na medida em que tal pergunta admite uma resposta, nossa resposta deve
ser: o motivo de Deus na criação é o Seu amor. Ao invés de dizer que Ele
criou o universo do nada, devemos dizer que o criou a partir do Seu próprio
ser, que é o amor. Devemos pensar, não em Deus o Produtor ou Deus o Artesão,
mas sim em Deus o Amante. A criação é um ato tanto de sua livre vontade como de
seu amor livre. Amar significa compartilhar, como a doutrina da Trindade mostrou-nos
claramente: Deus não é apenas um, mas um-em-três, porque ele é uma comunhão de
pessoas que compatilham amor umas com as outras. O círculo do amor divino, no
entanto, não permaneceu fechado. O amor de Deus é, no sentido literal da
palavra, "extático" - um amor que faz com que Deus saia de si mesmo e
crie outras coisas além de si mesmo. Por escolha voluntária, Deus criou o mundo
no amor "extático", para que pudesse haver, além de Si mesmo, outros
seres para participarem da vida e do amor que são Dele.
Deus não estava sob coação para criar; mas isso não
significa que tenha havido algo de fortuito ou inconsequente em seu ato de
criação. Deus é tudo o que faz, e assim Seu ato de criação não é algo separado
de Si mesmo. No coração de Deus e em seu amor, cada um de nós sempre existiu.
Desde toda a eternidade, Deus viu cada um de nós como uma idéia ou pensamento
em Sua mente divina, e para cada um desde toda a eternidade
Ele tem um plano especial e distinto. Nós sempre existimos
para Ele; a criação significa que, em um determinado momento, começamos a
existir também para nós mesmos.
Como fruto da livre vontade de Deus e do amor livre, o
mundo não é necessário, não é auto-suficiente, mas contingente e dependente.
Como seres criados, nunca podemos ser apenas nós mesmos sozinhos; Deus é o
núcleo do nosso ser, ou deixamos de existir. A cada momento, nossa existência
depende da vontade amorosa de Deus. A existência é sempre um presente de Deus -
um presente gratuito de seu amor, um presente que nunca é tomado de volta; mas,
ainda assim, um presente e não algo que possuímos por nosso próprio poder. Somente
Deus possui a causa e a fonte de seu ser em si mesmo; todas as coisas criadas
têm sua causa e fonte não em si mesmas, mas Nele. Apenas Deus tem Sua própria
origem; todas as coisas criadas são originárias de Deus, enraizadas em Deus,
encontrando sua origem e realização Nele. Apenas Deus é substantivo; todas as coisas
criadas são adjetivos.
Ao dizer que Deus é Criador do mundo, não queremos dizer
apenas que Ele colocou as coisas em movimento por um ato "no princípio",
após o qual as coisas continuaram funcionando por si mesmas. Deus não é apenas um
relojoeiro cósmico, que dá corda no mecanismo e depois deixa-o funcionando por
conta própria. Pelo contrário, a criação é contínua. Se quisermos ser precisos
ao falarmos da criação, devemos usar o verbo não no passado, mas no presente
contínuo. Não devemos dizer, "Deus criou o mundo, e eu nele", mas sim
"Deus está criando o mundo e eu, aqui e agora, neste momento e
sempre". A criação não é um evento no passado, mas um relacionamento no
presente. Se Deus não continuasse a exercer sua vontade criativa a cada
momento, o universo passaria imediatamente ao não-ser; nada poderia existir por
um único segundo se Deus não desejasse que fosse. Como afirma o Metropolita Filareto
de Moscou: "Todas as criaturas encontram-se equilibradas sobre a Palavra
criadora de Deus, como se em cima de uma ponte de diamante; acima delas está o
abismo da infinitude divina, abaixo, a infinitude de seu próprio nada."
Isso é verdadeiro mesmo para Satanás e os anjos caídos no inferno: a existência
deles também dependem da vontade de Deus.
O objetivo da doutrina da criação, portanto, não é atribuir
um ponto de partida cronológico ao mundo, mas afirmar que, neste momento
presente, como em todos os momentos, a existência do mundo depende de Deus.
Quando o Gênesis afirma: "No princípio Deus criou o céu e a terra"
(1: 1), a palavra "princípio" não deve ser tomada simplesmente em um
sentido temporal, mas como significando que Deus é a causa constante e
sustentadora de todas as coisas.
Como criador, então, Deus está sempre no coração de cada
coisa, mantendo-a no ser. No plano da investigação científica,
discernimos certos processos ou sequências de causa e efeito. No plano da visão
espiritual, que não contradiz a ciência, mas que a ultrapassa, discernimos em
todos os lugares as energias criativas de Deus, sustentando tudo o que existe,
formando a essência mais profunda de todas as coisas. Mas, embora presente em
todo o mundo, Deus não deve ser identificado com o mundo. Como cristãos,
afirmamos não o panteísmo, mas o "panenteísmo". Deus está em todas as
coisas, mas, ainda assim, para além e acima de todas as coisas. Ele é tanto
"maior que o maior" como "menor que o menor". Nas palavras
de São Gregório Palamas: "Ele está em todos os lugares e em lugar nenhum,
ele é tudo e nada". Como um monge cisterciense da Nova Claraval afirmou,
"Deus está no cerne. Deus é diferente do cerne. Deus está dentro do cerne,
e em todo o cerne, e além do cerne, mais próximo do cerne do que o cerne".
"E Deus viu tudo o que tinha feito, e eis que era
muito bom" (Gn 1:31). A criação em sua totalidade é a obra de Deus; na sua
essência interior, todas as coisas criadas são "muito boas". A
ortodoxia cristã repudia o dualismo nas suas várias formas: o dualismo radical
dos maniqueus, que atribuem a existência do mal a um segundo poder, co-eterno
com o Deus do amor; o dualismo menos radical dos valentinianos gnósticos, que
vêem a ordem material, incluindo o corpo humano, passando a existir em
conseqüência de uma queda pré-cósmica; e o dualismo mais sutil dos platônicos,
que consideram a matéria não como má, mas como irreal.
Contra o dualismo em todas as suas formas, o cristianismo
afirma que existe um summum bonum, um
"bem supremo" - ou seja, Deus mesmo - mas não há e não pode haver summum malum. O mal não é co-eterno com
Deus. No início, havia apenas Deus: todas as coisas que existem são a sua
criação, seja no céu ou na terra, seja espiritual ou física, e, portanto, no
seu "em si" básico, todas elas são boas.
O que, então, devemos dizer sobre o mal? Uma vez que todas
as coisas criadas são intrinsecamente boas, o pecado ou o mal como tal não é
uma "coisa", nem um ser ou substância existente. "Eu não
vi o pecado", diz Julian de Norwich em suas Revelações ,
"pois acredito que não tem nenhum tipo de substância, nem participação no
ser; nem pode ser reconhecido, exceto pela dor por ele causada. "O pecado
é nulo", diz Santo Agostinho.
"Aquilo que é mau em sentido estrito", observa
Evágrio, "não é uma substância, mas a ausência do bem, assim como a
escuridão não é nada mais do que a ausência de luz." E São Gregório de
Nissa afirma, "O pecado não existe na natureza separado do livre arbítrio;
não é uma substância por si só." "Nem mesmo os demônios são maus por
natureza", diz São Máximo, o Confessor, "mas eles se tornam assim
através do mau uso de seus poderes naturais." O mal é sempre parasita. É a
distorção e a apropriação indevida daquilo que é em si mesmo bom. O
mal não reside na própria coisa, mas em nossa atitude em relação à coisa - isto
é, em nossa vontade.
Pode parecer que, ao denotar o mal como "nada",
nós estamos subestimando sua força e dinamismo. Mas, como C. S. Lewis observou,
o Nada é muito forte. Dizer que o mal é a perversão do bem e, portanto, em
última análise, uma ilusão e irrealidade, não é negar sua influência poderosa
sobre nós. Pois não há força maior dentro da criação do que a livre vontade dos
seres dotados de autoconsciência e intelecto espiritual; e assim o mau uso
dessa livre vontade pode ter consequências bastante aterradoras.
Homem como Corpo, Alma e Espírito
E qual é o lugar do homem na criação de Deus?
"Rezo a Deus para que todo seu espírito, alma e corpo
sejam preservados irrepreensíveis até a vinda de nosso Senhor Jesus
Cristo" (1 Tessalonicenses 5:23). Aqui, São Paulo menciona os três
elementos ou aspectos que constituem a pessoa humana. Embora distintos, esses
aspectos são estritamente interdependentes; o homem é uma unidade integral, não
a soma total de partes separáveis.
Primeiro, há o corpo, "pó da terra" (Gênesis 2:
7), o aspecto físico ou material da natureza do homem.
Em segundo lugar, há a alma, a força vital que vivifica e
anima o corpo, fazendo com que não seja apenas um pedaço de matéria, mas algo
que cresce e se move, que sente e percebe. Os animais também possuem uma alma,
e talvez as plantas também. Mas, no caso do homem, a alma é dotada de
consciência; é uma alma racional, possuindo a capacidade para o pensamento
abstrato e a habilidade de avançar por meio do argumento discursivo das
premissas até uma conclusão. Esses poderes estão presentes em animais, se o estiverem, apenas em um
grau muito limitado.
Em terceiro lugar, há o espírito, o "sopro" de
Deus (ver Gênesis 2: 7), que os animais não têm. É importante distinguir o
"Espírito", com letra maiúscula, do "espírito" com "s"
minúsculo. O espírito criado do homem não deve ser identificado com o incriado
ou o Espírito Santo de Deus, a terceira pessoa da Trindade; contudo, os dois
estão intimamente ligados, pois é através do seu espírito que o homem apreende
Deus e entra em comunhão com ele.
Com sua alma (psique), o homem realiza a investigação
científica ou filosófica, analisando os dados de sua experiência sensorial por
meio da razão discursiva. Com seu espírito (pneuma), às vezes chamado de nous
ou intelecto espiritual, ele entende a verdade eterna sobre Deus ou sobre os
logoi ou essências internas das coisas criadas, não através de raciocínio
dedutivo, mas através da apreensão direta ou percepção espiritual - por uma
espécie de intuição que São Isaque, o Sírio, chama de "cognição
simples". O espírito ou o intelecto espiritual é, portanto, distinto dos poderes
de raciocínio do homem bem como das suas emoções estéticas, e superior a ambos.
Porque o homem tem uma alma racional e um intelecto
espiritual, ele possui o poder da autodeterminação e da liberdade moral, isto
é, o sentido do bem e do mal e a capacidade de escolher entre eles. Onde os
animais agem por instinto, o homem é capaz de tomar uma decisão livre e
consciente.
Por vezes, os Padres não adotam um esquema tripartite, mas
um duplo, descrevendo o homem simplesmente como uma unidade de corpo e alma;
nesse caso, tratam o espírito ou o intelecto como o aspecto mais elevado da
alma. Mas o esquema triplo do corpo, da alma e do espírito é mais preciso e
mais iluminador, particularmente em nossa época, quando a alma e o espírito são
muitas vezes confundidos e quando a maioria das pessoas nem sequer percebe que
possuem um intelecto espiritual. A cultura e o sistema educacional do ocidente
contemporâneo baseiam-se quase que exclusivamente na formação do raciocínio
cerebral e, em menor grau, nas emoções estéticas. A maioria de nós esqueceu que
não somos apenas cérebro e vontade, sentimentos e sentimentos; também somos
espírito. O homem moderno perdeu, em sua maior parte, o contato com o aspecto
mais verdadeiro e mais elevado de si mesmo; e o resultado dessa alienação
interior pode ser visto de forma muito clara em sua inquietação, sua falta de
identidade e perda de esperança.
Microcosmo e Mediador
Corpo, alma e espírito, três em um, o homem ocupa uma
posição única na ordem criada.
De acordo com a visão de mundo ortodoxa, Deus formou dois
níveis de coisas criadas: primeiro o nível "noético",
"espiritual" ou "intelectual", e em segundo lugar, o
material ou o corporal. No primeiro nível, Deus formou os anjos, que não possuem
corpo material. No segundo nível, formou o universo físico - galáxias, estrelas
e planetas, com os vários tipos de vida mineral, vegetal e animal. O homem, e
apenas o homem, existe em ambos os níveis ao mesmo tempo. Por meio de de seu
espírito ou intelecto espiritual, ele participa do reino noético e é
companheiro dos anjos; por meio de de seu corpo e sua alma, ele se move, sente
e pensa; ele come e bebe, transmutando alimentos em energia e participando
organicamente no reino material, que passa por dentro dele através de suas percepções
sensoriais.
Nossa natureza humana é, portanto, mais complexa do que a
angélica, e dotada de potencialidades mais ricas. Visto sob perspectiva, o
homem deixa de ser inferior, e passa a ser mais elevado do que os anjos; como o
Talmud da Babilônia afirma: "Os justos são maiores do que os anjos que
ministram" (Sanhedrin 93a). O homem está no coração da criação de Deus.
Participando dos reinos noético e material, ele é uma imagem ou espelho de toda
a criação, imago mundi, um
"pequeno universo" ou microcosmo. Todas as coisas criadas encontram-se
nele. O homem pode dizer de si mesmo, nas palavras de Kathleen Raine:
Porque eu amo
O sol derrama seus raios de ouro vivo
Derrama o seu ouro e prata no mar ...
Porque eu amo
As samambaias crescem verdes, e verde a grama, e verdes
As árvores transparentes iluminadas pelo sol ...
Porque eu amo
Durante toda a noite o rio flui para o meu sono,
Dez mil coisas vivas estão dormindo em meus braços,
E, ao dormirem, despertam; e ao fluirem, estão em repouso.
Sendo um microcosmo, o homem também é mediador. É tarefa
dada ele por Deus conciliar e harmonizar os reinos noéticos e materiais,
levá-los à unidade, espiritualizar o material e manifestar todas as capacidades
latentes da ordem criada. Como o judaísmo hasídico expressa, o homem é
chamado para "avançar de degrau a degrau até que, através dele, tudo
esteja unido". Como microcosmo, então, o homem é aquele em quem o mundo é
resumido; como mediador, ele é aquele por quem o mundo é oferecido de volta a
Deus.
O homem é capaz de exercer esse papel mediador apenas
porque sua natureza humana é essencial e fundamentalmente uma unidade. Se ele
fosse apenas uma alma habitando temporariamente um corpo, como muitos dos
filósofos gregos e indianos imaginaram - se seu corpo não fosse parte de seu
verdadeiro eu, mas fosse apenas um pedaço de roupa que ele acabaria por deixar
de lado, ou uma prisão da qual ele procura escapar - então o homem não poderia
agir propriamente como mediador. O homem espiritualiza a criação antes de tudo
espiritualizando seu próprio corpo e oferecendo-o a Deus. "Ou não sabeis
que o vosso corpo é o templo do Espírito Santo, que habita em vós?",
escreve São Paulo. '... Glorificai, pois, a Deus no vosso corpo ... Rogo-vos,
pois, irmãos, pela compaixão de Deus, que apresenteis os vossos corpos em
sacrifício vivo, santo e agradável a Deus (1 Coríntios 6:19-20; Romanos 12:1).
Mas, na "espiritualização" do corpo, o homem não o desmaterializa:
pelo contrário, é a vocação humana manifestar o espiritual no material e através do material. Os cristãos são, nesse sentido, os únicos verdadeiros
materialistas.
O corpo, então, é parte integrante da personalidade humana.
A separação do corpo e da alma na morte não é natural, é algo contrário ao
plano original de Deus, que ocorreu em conseqüência da queda. Além disso, a
separação é apenas temporária: esperamos, para além da morte, a ressurreição
final no Último Dia, quando o corpo e a alma se reunirem mais uma vez.
Imagem e semelhança
"A glória de Deus é o homem", afirma o Talmud
(Derech Eretz Zutta 10,5); e Santo Irineu afirma o mesmo: "A glória de
Deus é o homem vivo". A pessoa humana forma o centro e a coroa da criação
de Deus. A posição única do homem no cosmos é indicada sobretudo pelo fato de
que ele é feito "à imagem e semelhança" de Deus (Gênesis 1:26). O
homem é uma expressão finita da auto-expressão infinita de Deus.
Por vezes, os Padres Gregos associam a imagem divina ou
"ikon" no homem com a totalidade de sua natureza, considerada como
uma "tríplice unidade" de espírito, alma e corpo. Outras vezes, eles ligam
essa imagem mais especificamente ao aspecto mais elevado do homem, ao seu
espírito ou intelecto espiritual, através do qual alcança o conhecimento de
Deus e a união com Ele. Fundamentalmente, a imagem de Deus no homem denota tudo
o que o distingue o dos animais, que o torna, no sentido pleno e verdadeiro,
uma pessoa - um agente moral capaz do certo e do errado, um sujeito espiritual
dotado de liberdade interior.
O aspecto da livre escolha é particularmente importante
para a compreensão do homem como criado à imagem de Deus. Assim como Deus é
livre, também o homem é livre. E, sendo livre, cada ser humano percebe a imagem
divina dentro de si mesmo de maneira distinta. Os seres humanos não são fichas
que podem ser trocadas umas pelas outras ou peças substituíveis de uma máquina.
Cada um, sendo livre, é irrepetível; e cada um, sendo irrepetível, é
infinitamente precioso. As pessoas não devem ser medidas quantitativamente: não
temos o direito de presumir que uma pessoa em particular é mais valiosa do que
qualquer outra, ou que dez pessoas devem necessariamente ter mais valor do que
uma. Tais cálculos são uma ofensa à verdadeira personalidade. Cada um é
insubstituível e, portanto, cada um deve ser tratado como um fim em si mesmo, e
nunca como um meio para algum fim adicional. Cada um deve ser considerado não
como objeto, mas como sujeito. Se as pessoas nos parecem chatas e tediosamente
previsíveis, é porque não atingimos o nível da verdadeira personalidade, nos outros e
em nós mesmos, onde não há estereótipos e cada um é único.
Muitos dos Padres Gregos, embora não todos, fazem uma
distinção entre a "imagem" de Deus e a "semelhança" de Deus.
A imagem, para aqueles que distinguem os dois termos, denota a potencialidade
do homem para a vida em Deus, a semelhança, a realização dessa potência. A imagem é aquilo
que o homem possui desde o início e que o habilita desde o princípio a
lançar-se no Caminho espiritual; a semelhança é aquilo que ele espera alcançar
no final de sua jornada. Nas palavras de Orígenes, "O homem recebeu a
honra da imagem em sua primeira criação, mas a plena perfeição da semelhança de
Deus só lhe será conferida na consumação de todas as coisas". Todos os
homens são feitos à imagem de Deus e, por mais corrompidas que sejam suas
vidas, a imagem divina dentro deles é meramente obscurecida e encoberta, mas nunca
completamente perdida. A semelhança, no entanto, é plenamente alcançada apenas
pelos bem-aventurados no reino celestial da Era vindoura.
De acordo com Santo Irineu, o homem em sua primeira criação
era "como uma criancinha", e precisava "crescer" em sua
perfeição. Em outras palavras, o homem em sua primeira criação era inocente e
capaz de se desenvolver espiritualmente (a "imagem"), mas esse
desenvolvimento não era inevitável nem automático. O homem foi chamado a
cooperar com a graça de Deus e, por meio do uso correto de seu livre arbítrio,
lentamente e passo a passo, ele se tornaria perfeito em Deus (a
"semelhança"). Isso mostra como a noção do homem criado à imagem de
Deus pode ser interpretada em um sentido dinâmico e não estático. Não é
necessário entendê-la como afirmando que o homem possuísse desde o início uma
perfeição totalmente realizada, a mais alta santidade e conhecimento possíveis,
mas simplesmente que lhe foi dado a oportunidade de crescer em plena comunhão
com Deus. A distinção entre semelhança de imagem não implica, evidentemente, a
aceitação de qualquer "teoria da evolução"; mas ela não é
incompatível com essa teoria.
A imagem e a semelhança significam orientação, relação.
Como observa Philip Sherrard : "O próprio conceito de homem implica uma
relação, uma conexão com Deus. Onde se afirma homem, também se afirma
Deus." Acreditar que o homem é feito à imagem de Deus é acreditar que ele
é criado para a comunhão e a união com Deus, e que, se rejeitar essa comunhão,
ele deixa de ser propriamente o homem. Não há um "homem natural",
existindo separado de Deus: o homem cortado de Deus encontra-se em um estado
altamente antinatural. A doutrina da imagem significa, portanto, que o homem
tem Deus como o centro mais íntimo de seu ser. O divino é o elemento
determinante da nossa humanidade; ao perdermos o sentido do divino, perdemos
também o nosso sentido do humano.
Isso confirmado de forma marcante pelo que aconteceu no Ocidente
desde o Renascimento, e mais notavelmente desde a revolução industrial. Um
secularismo crescente foi acompanhado de uma crescente desumanização da
sociedade. O exemplo mais claro disso pode ser visto na versão
leninista-estalinista do comunismo, tal como se encontra na União Soviética.
Aqui, a negação de Deus andou de mãos dadas com uma cruel repressão da
liberdade pessoal do homem. E isso não é nem um pouco surpreendente. A única
base segura para uma doutrina da liberdade e da dignidade humana é a crença de
que cada homem é criado à imagem de Deus.
O homem é criado não apenas à imagem de Deus, mas, mais especificamente,
à imagem da Trindade Divina. Tudo o que foi dito anteriormente sobre
"viver a Trindade" adquire força adicional quando explicado em termos
da doutrina da imagem. Como a imagem de Deus no homem é uma imagem trinitária,
segue-se que o homem, como Deus, realiza sua verdadeira natureza por meio da
vida mútua. A imagem significa relacionamento não só com Deus, mas com outros
homens. Assim como as três pessoas divinas vivem umas nas outras e umas para as outras, da mesma maneira o o homem — criado à imagem trinitária —
torna-se uma pessoa real ao ver o mundo através dos olhos dos outros, fazendo as alegrias e as dores dos outros sua. Cada ser humano é único, mas cada um em sua singularidade
é criado para a comunhão com os outros.
"Nós, que pertencemos à fé, devemos ver todos os fiéis
como uma única pessoa ... e estarmos prontos para oferecer nossas vidas pela do
próximo" (São Simeão, o Novo Teólogo). "Não há outra maneira de ser
salvo, exceto pelo nosso próximo ... Esta é a pureza do coração: ao ver o
pecador ou o doente, sentir compaixão por eles e ser compassivo com eles"
(As Homilias de São Macário). "Os anciões costumavam dizer que
devemos olhar para as experiências do próximo como se fossem nossas. Devemos
sofrer com o próximo em tudo e chorar com ele, e devemos nos comportar como se
estivéssemos dentro de seu corpo; e se algum problema lhe acontecer, devemos
sentir aflição como se fossemos nós mesmos" (Os Ditos dos Padres do
Deserto). Tudo isso é verdade, precisamente porque o homem é feito à imagem de
Deus, a Trindade.
Sacerdote
e Rei
Feito à imagem divina, microcosmo e mediador, o homem é
sacerdote e rei da criação. De maneira consciente e deliberada, ele pode fazer
duas coisas que os animais só pode fazer de maneira inconsciente e
instintivamente. Primeiro, o homem é capaz de abençoar e louvar a Deus pelo
mundo. O homem é melhor definido não como um animal "lógico", mas
como um animal "eucarístico". Ele não vive simplesmente no mundo,
pensa nele e faz uso dele, mas é capaz de enxergar o mundo como um dom de Deus,
como um sacramento da presença de Deus e como meio de comunhão com Ele. Assim,
ele é capaz de oferecer o mundo de volta a Deus em ação de graças: "O que é teu, recebendo-o de Ti, nós te oferecemos em tudo e por tudo." (Liturgia
de São João Crisóstomo).
Segundo, além de abençoar e louvar a Deus pelo mundo, o
homem também pode remodelar e alterar o mundo; dotando-o assim de um novo
significado. Nas palavras do Pe. Dumitru Staniloae, "O homem coloca o selo
de sua compreensão e de seu trabalho inteligente na criação. O mundo não é
apenas uma dádiva, mas uma tarefa para o homem." Cooperar com Deus é o
nosso chamado; nós somos, na frase de São Paulo, "cooperadores de
Deus" (1 Cor. 3: 9). O homem não é apenas um animal lógico e eucarístico,
mas também um animal criativo: o fato do homem ser feito à imagem de Deus
significa que o homem é um criador segundo a imagem de Deus, o Criador. Este
papel criativo ele cumpre, não pela força bruta, mas pela clareza de sua visão
espiritual; sua vocação não é dominar e explorar a natureza, mas transfigurá-la
e santificá-la.
De várias maneiras — por meio do cultivo da terra, por meio
do artesanato, por meio da escrita de livros e da pintura de ícones — o homem
dá uma voz às coisas materiais e articula a criação em louvor a Deus. É
significativo que a primeira tarefa de Adão recém-criado tenha sido dar nomes
aos animais (Gn 2: 19-20). O ato de dar nomes é, por si só, um ato criativo:
até encontrarmos um nome para algum objeto ou experiência, uma "palavra
inevitável" para indicar seu verdadeiro caráter, não podemos começar a
entendê-los e usá-los. É igualmente significativo que, quando, na Eucaristia,
oferecemos de volta a Deus as primícias da terra, não as oferecemos na sua
forma original, mas remodeladas pelas mãos do homem: nós trazemos ao altar, não
feixes de trigo, mas pães, não uvas, mas vinho.
Assim, o homem é sacerdote da criação por meio do seu poder
de dar graças e oferecer a criação de volta a Deus; e ele é o rei da criação por
meio do seu poder de moldar e adaptar, para se conectar e diversificar. Esta
função hierática e real é muito bem descrita por São Leôncio de Chipre:
Pelo o céu, pela
da terra e pelo mar, pela madeira e a
pedra, por toda a criação visível e invisível, ofereço veneração ao Criador e
Mestre e Fazedor de todas as coisas. Pois a criação não venera o Criador
diretamente e por si só, mas é através de mim que os céus declaram a glória de
Deus, através de mim a lua adora a Deus, através de mim as estrelas o
glorificam, através de mim as águas e a chuva, o orvalho e toda a criação, venera Deus
e dá-lhe a glória.
Ideias semelhantes são expressas pelo mestre hasídico
Abraham Yaakov de Sadagora:
Todas as
criaturas, plantas e animais trazem e se oferecem ao homem, mas através do
homem são todas trazidas e oferecidas a Deus. Quando o homem purifica e se santifica
em todos os seus membros como uma oferta a Deus, ele purifica e santifica todas
as criaturas.
O Reino Interior
"Bem-aventurados os puros de coração, pois verão a
Deus" (Mateus 5: 8). Feito à imagem de Deus, o homem é um espelho do
divino. Ele conhece Deus ao se conhecer: entrando dentro de si mesmo, ele vê
Deus refletido na pureza de seu próprio coração. A doutrina da criação do homem
segundo a imagem significa que dentro de cada pessoa - dentro de seu eu mais
verdadeiro e interior, muitas vezes chamado de "coração profundo" ou "fundo
da alma" - há um ponto de encontro direto e
união com o Incriado. ‘O reino de Deus está dentro de vós’ (Lucas 17:21).
Essa busca pelo reino interior é um dos principais temas
dos escritos dos Padres. "A maior de todas as lições", diz São
Clemente de Alexandria, "é conhecer a si mesmo; pois se alguém conhece a
si, ele conhece a Deus; e se ele conhece a Deus, ele se tornará como
Deus". São Basílio, o Grande, escreve: "Quando o intelecto não está
mais dissipado entre coisas externas ou disperso em todo o mundo através dos
sentidos, ele retorna a si mesmo; e por meio de si ascende ao pensamento de
Deus." "Aquele que conhece a si mesmo conhece tudo’, diz São Isaac, o
Sírio; e em outro lugar ele escreve:
Esteja em paz com
sua própria alma; então o céu e a terra estarão em paz com você. Entre com
entusiasmo na casa do tesouro que está dentro de você, e assim você verá as
coisas que estão no céu; pois há apenas uma entrada para ambas. A escada que
leva ao reino está escondida dentro de sua alma. Fuja do pecado, mergulhe em si
mesmo, e em sua alma você descobrirá as escadas para ascender.
A essas
passagens, podemos adicionar o depoimento de uma testemunha ocidental
em nossos dias, Thomas Merton:
No centro de nosso
ser há um ponto de nada, intocado pelo pecado e pela ilusão, um ponto de pura
verdade, um ponto ou uma centelha que pertence inteiramente a Deus, que nunca
está à nossa disposição, por meio do qual Deus dispõe de nossas vidas, que é
inacessível às fantasias de nossa própria mente ou às brutalidades de nossa
própria vontade. Este pequeno ponto de nada e de pobreza absoluta é a pura
glória de Deus em nós. É, por assim dizer, seu nome escrito em nós, como nossa
pobreza, como nossa indigência, como nossa dependência, como nossa filiação. É
como um diamante puro, ardendo com a luz invisível do céu. Está em todos, e se
pudéssemos vê-lo, veríamos esses bilhões de pontos de luz se reunirem na face e no fulgor de
um sol que faria desaparecer completamente a escuridão e a crueldade da vida
... A porta do céu está em toda parte.
Fuja do pecado, insiste São Isaque; e estas três palavras
devem ser particularmente observadas. Se quisermos ver o rosto de Deus refletido
dentro de nós, o espelho precisa ser limpo. Sem arrependimento, não pode haver
autoconhecimento e nem descoberta do reino interior. Quando me dizem:
"Retorne para dentro de si: conheça a si mesmo", é necessário
indagar: qual "eu" devo descobrir? Qual é o meu verdadeiro eu? A
psicanálise revela-nos um tipo de "eu"; muitas vezes, no entanto, ela
nos guia, não para a "escada que leva ao reino", mas para escada que
leva ao porão, frio e úmido, infestado de cobras. "Conheça a si
mesmo" significa "conheça a si mesmo como vindo de Deus,
enraizado em Deus; conheça a si mesmo em Deus." Do ponto de vista da
tradição espiritual ortodoxa, deve-se enfatizar que não devemos descobrir isso, nosso verdadeiro eu "de segundo a imagem",
exceto através de uma morte para o nosso eu falso e caído. "Aquele que
perder a sua vida por amor de mim, achá-la-á." (Mateus 16:25): somente
aquele que vê o seu falso eu pelo que ele é e o rejeita, poderá discernir o seu
verdadeiro eu, o eu que Deus vê. Sublinhando essa distinção entre o falso eu e
o verdadeiro, São Varsanuphius ordena: "Esquece-te a ti mesmo e conhece-te
a ti mesmo."
Mal, Sofrimento e a Queda do Homem
No maior romance de Dostoiévski, Os Irmãos Karamazov, Ivan desafia seu irmão: "Imagina que os
destinos da humanidade estejam entre tuas mãos e que, para tornar as pessoas
definitivamente felizes, proporcionar-lhes afinal a paz e o repouso, seja
indispensável torturar um único bebê.... e basear sobre as suas lágrimas a
felicidade futura. Consentirias tu, nestas condições, em edificar semelhante
felicidade?" "Não, eu não
consentiria", responde
Alyosha. E se nós não concordaríamos com isso, por que então, aparentemente,
Deus o faz?
Somerset Maugham nos diz que, depois de ver uma pequena criança
morrer lentamente por meningite, ele não podia mais acreditar em um Deus de amor. Outros
tiveram que assistir a um marido ou esposa, um filho ou pai, cair em depressão
total: em todo o reino de sofrimento talvez nada seja tão terrível quanto contemplar
um ser humano com melancolia crónica. Qual é a nossa resposta? Como reconciliar
a fé em um Deus
amoroso, que criou todas as coisas e viu que elas eram "muito boas",
com a existência da dor, do pecado e do mal?
De imediato, deve-se admitir que não é possível uma
resposta fácil ou uma reconciliação óbvia. A dor e o mal enfrentam-nos como algo
irracional. O sofrimento, o nosso e o dos outros, é uma experiência que temos
de atravessar, não um problema teórico que podemos explicar. Se houver
uma explicação, ela está em um nível mais profundo do que as palavras. O
sofrimento não pode ser "justificado"; mas pode ser usado, aceito -
e, por meio dessa aceitação, transfigurado. "O paradoxo do sofrimento e do
mal", diz Nicolas Berdyaev, "é resolvido na experiência da compaixão
e do amor".
Mas, embora possamos desconfiar de qualquer resolução fácil
do "problema do mal", podemos encontrar no relato da queda do homem,
no terceiro capítulo do Gênesis - quer seja interpretado literalmente ou
simbolicamente - duas indicações vitais, a serem lidas com cuidado.
Primeiro, o relato do Gênesis começa falando da
"serpente" (3:1), isto é, o diabo - o primeiro entre aqueles anjos
que se afastaram de Deus para o inferno da vontade própria. Houve uma queda dupla: primeiro dos
anjos, depois do homem. Para a ortodoxia, a queda dos anjos não é um conto de
fadas pitoresco, mas uma verdade espiritual. Antes da criação do homem, já
havia ocorrido uma separação dos caminhos dentro do domínio noético: alguns dos
anjos permaneceram firmes em obediência a Deus, outros o rejeitaram. No que diz
respeito a esta "guerra no céu" (Apocalipse 12: 7), temos apenas
referências crípticas na Escritura; não nos é dito em detalhes o que aconteceu,
e menos ainda sabemos quais são os planos de Deus para uma possível
reconciliação dentro do reino noético, ou como o diabo poderá (se é que poderá),
ser finalmente redimido. Talvez, como o primeiro capítulo do Livro de Jó
sugere, Satanás não seja tão negro como é normalmente pintado. Para nós, neste
estágio atual de nossa existência terrena, Satanás é o inimigo; mas Satanás
também tem uma relação direta com Deus, da qual não conhecemos nada e sobre a qual
não é sábio especular. Cuidemos de nossos próprios problemas.
Três pontos, porém, devem ser levados em conta e que dizem
respeito aos nossos esforços para enfrentarmos o problema da dor. Em primeiro
lugar, além do mal pelo qual nós humanos somos pessoalmente responsáveis,
existem no universo forças de potência imensa, cuja vontade é voltada para o
mal. Essas forças, embora não humanas, são, no entanto, pessoais. A existência
de tais poderes demoníacos não é uma hipótese ou lenda, mas - para muitos de
nós, infelizmente! - uma questão de experiência direta. Segundo, a existência
de poderes espirituais caídos nos ajuda a entender por que, em certo momento no
tempo, aparentemente antes da criação do homem, puderam ser encontrados na
natureza a desordem, a perda e a crueldade. Terceiro, a rebelião dos anjos
torna bem claro que o mal não se origina de baixo, mas de cima, não da matéria,
mas do espírito. O mal, como já foi enfatizado, é um "nada"; não é um ser ou substância existente, mas uma atitude
incorreta em relação ao que em si é bom. A fonte do mal está, portanto, na
livre vontade dos seres espirituais dotados de escolha moral, que usam esse
poder de escolha incorretamente.
Isso é o bastante com relação ao nosso primeiro ponto, a
alusão à "serpente". Mas (e isso pode servir como segundo ponto), o
relato do Gênesis deixa claro que, embora o homem venha a existir em um mundo
já maculado pela queda dos anjos, ao mesmo tempo, nada obrigou-o a pecar. Eva
foi tentada pela ‘serpente’, mas ela estava livre para rejeitar suas sugestões.
O seu "pecado original", juntamente com o de Adão, consistiu em um
ato consciente de desobediência, uma rejeição deliberada do amor de Deus, um afastamento livremente escolhido de Deus em direção a si mesma (Gênesis 3: 2,3,11).
Na posse e no exercício do livre arbítrio pelo homem, não
encontramos uma explicação completa, mas ao menos o começo de uma resposta ao
nosso problema. Por que Deus permitiu que os anjos e os homens pecassem? Por
que Deus permite o mal e o sofrimento? Nós respondemos: porque ele é um Deus de
amor. O amor implica compartilhar, e o amor também implica liberdade. Como uma
Trindade de amor, Deus desejou compartilhar sua vida com pessoas criadas feitas
à sua imagem, que seriam capazes de responder a ele livremente e
voluntariamente em uma relação de amor. Onde não há liberdade, não pode
haver amor. A compulsão exclui o amor; como Paul Evdokimov costumava dizer,
Deus pode fazer tudo, exceto obrigar-nos a amá-lo. Deus, portanto - desejando
compartilhar seu amor - criou, não robôs que o obedeceriam mecanicamente, mas
anjos e seres humanos dotados de livre arbítrio. E, assim, colocando a questão
de forma antropomórfica, Deus correu um risco: pois com este dom de liberdade
também havia a possibilidade do pecado. Mas aquele que não assume riscos não
ama.
Sem liberdade, não haveria pecado. Mas sem liberdade, o
homem não seria feito à imagem de Deus; sem liberdade, o homem não seria capaz
de entrar em comunhão com Deus em uma relação de amor.
Consequências da Queda
Criado para a comunhão com a Santíssima Trindade, chamado
para avançar no amor, da imagem à semelhança divina, o homem preferiu um
caminho que não conduz para cima, mas para baixo. Ele repudiou o relacionamento
de Deus que é a sua verdadeira essência. Em lugar de atuar como mediador e
centro unificador, ele produziu divisão: divisão interior, divisão entre si
mesmo e outros homens, divisão entre si e o mundo da natureza. Agraciado por
Deus com o dom da liberdade, ele sistematicamente negou a liberdade aos seus
semelhantes. Abençoado com o poder de mudar o mundo e dotá-lo de um novo sentido,
ele malgastou esse poder, a fim de criar instrumentos de feiura e destruição.
As conseqüências desse mau uso, mais particularmente desde a revolução
industrial, tornaram-se horrivelmente evidentes na poluição do meio-ambiente.
O "pecado original" do homem, a passagem de estar
centrado em Deus para estar centrado em si mesmo — o egoísmo — , significou,
antes de tudo, que ele não mais enxergava o mundo e outros seres humanos de
forma eucarística, como um sacramento de comunhão com Deus. Ele deixou de
considerá-los como um dom, para ser oferecido de volta em ação de graças ao
Doador, e começou a tratá-los como sua própria posse, para serem tomados, explorados e
devorados. Assim ele não mais enxergava as outras pessoas e coisas como elas
são em si mesmas e em Deus, enxergando-as apenas em termos de prazer e
satisfação que poderiam retirar delas. E o resultado disso foi a queda no círculo vicioso de sua própria
concupiscência, que cresceu à medida em que era cada vez mais gratificada. O mundo deixou de ser
transparente — uma janela através da qual o homem olhava para Deus — e tornou-se
opaco; deixou de ser vivificante e tornou-se sujeito a corrupção e mortalidade.
‘Pois tu és pó, e ao pó retornarás’ (Gn 3:19). Isso é verdade para o homem
caído e para todas as coisas criadas tão logo são cortadas da única fonte da
vida, o próprio Deus.
Os efeitos da queda do homem foram físicos e morais. No
nível físico, os seres humanos ficaram sujeitos a dor e doenças, à debilidade e
à desintegração corporal da velhice. A alegria da mulher em trazer ao mundo uma
nova vida misturou-se às dores do parto (Gênesis 3:16). Nada disso fazia parte
do plano inicial de Deus para a humanidade. Em consequência da queda, homens e mulheres
também ficaram sujeitos à separação entre alma e corpo na morte física. No
entanto, a morte física deve ser vista primariamente não como uma punição, mas
como um meio de libertação oferecido por um Deus amoroso. Em sua misericórdia,
Deus não queria que os homens vivessem indefinidamente em um mundo caído, presos
para sempre no círculo vicioso por eles urdido; e assim, Ele forneceu uma
maneira de escapar. Pois a morte não é o fim da vida, mas o início da sua
renovação. Observamos, para além da morte física, a futura reunião do corpo e
da alma na ressurreição geral no Último Dia. Ao separar nosso corpo e alma na
morte, portanto, Deus age como o oleiro: quando o vaso em cima de sua roda se
torna defeituoso e retorcido, ele quebra a argila em pedaços de modo a moldá-la
de novo (compare com Jeremias 18:16) . Isso é enfatizado no serviço funerário
ortodoxo:
Há muito, Tu me criaste do nada,
E me honraste com a tua imagem divina;
Mas quando desobedeci o teu mandamento,
Tu me retornaste à terra de onde vim.
Guia-me de volta para a tua semelhança,
Remodelando minha antiga beleza.
No plano moral, em consequência da queda, os seres humanos
ficaram sujeitos à frustração, ao tédio e à depressão. O trabalho, destinado a
ser uma fonte de alegria para o homem e um meio de comunhão com Deus, passou a
ser realizado quase sempre de má vontade, "com o suor do rosto"
(Gênesis 3:19). E isso não foi tudo. O homem tornou-se sujeito à alienação
interior: enfraquecido em sua vontade, dividido contra si mesmo, tornou-se seu
próprio inimigo e carrasco. Como diz São Paulo: "Porque eu sei que em mim,
isto é, na minha carne, não habita bem algum; e com efeito o querer está em
mim, mas não consigo realizar o bem. Porque não faço o bem que quero, mas o mal
que não quero esse faço ... Miserável homem que eu sou! quem me livrará do
corpo desta morte?" (Romanos 7: 18,19,24). Aqui, São Paulo não está apenas
dizendo que existe um conflito dentro de nós entre o bem e o mal. Ele está afirmando
que, muitas vezes, nos encontramos moralmente paralisados: desejamos
sinceramente escolher o bem, mas nos encontramos presos em uma situação em que
todas as nossas escolhas resultam em maldade. E cada um de nós sabe, por experiência própria,
exatamente o que São Paulo quer dizer.
São Paulo, no entanto, tem o cuidado de acrescentar:
"eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem algum".
Nossa guerra ascética é contra a carne, não contra o corpo como tal. ‘Carne’
não é o mesmo que ‘corpo’. O termo carne, tal como usado na passagem citada,
significa aquilo dentro de nós que seja pecaminoso e contrário a Deus; assim,
não foi apenas o corpo, mas a alma do homem caído que se tornou carnal. Devemos odiar a
carne, mas não o corpo, que é obra de Deus e Templo do Espírito Santo. A auto-negação
ascética é, portanto, uma luta contra a carne, mas não é uma luta contra o corpo,
e sim a favor dele. Como o padre Sergei Bulgakov costumava dizer: "Mate a
carne, a fim de adquirir um corpo". O ascetismo não é a servidão de si,
mas o caminho para a liberdade. O homem é um emaranhado de auto-contradições:
somente por meio do ascetismo ele pode ganhar espontaneidade.
O ascetismo, entendido nesse sentido como uma luta contra a
carne, contra o aspecto pecaminoso e caído do eu, é algo claramente é exigido
de todos os cristãos, e não apenas daqueles sob votos monásticos. A vocação
monástica e a vocação do casamento — o caminho da negação e o caminho da
afirmação — devem ser vistas como paralelas e complementares. O monge (ou a
freira) não é um dualista, mas, na mesma medida que o cristão casado, procura
proclamar a bondade intrínseca da criação material e do corpo humano; e, da
mesma forma, o cristão casado é chamado ao ascetismo. A diferença reside exclusivamente
nas condições externas em que a guerra ascética é realizada. Ambos são ascetas,
ambos são materialistas (usando a palavra em seu verdadeiro sentido cristão).
Ambos negam o pecado e afirmam o mundo.
A tradição ortodoxa, sem minimizar os efeitos da queda, não
acredita que ela resultou em uma "depravação total", como afirmam os
calvinistas em seus momentos mais pessimistas. A imagem divina no homem foi
obscurecida, mas não obliterada. Sua livre-arbítrio teve seu exercício
restringido, mas não destruída. Mesmo em um mundo caído, o homem ainda é capaz
de um sacrifício generoso e de uma compaixão amorosa. Mesmo em um mundo caído,
o homem ainda conserva algum conhecimento de Deus e pode entrar, pela graça, em
comunhão com ele. Há muitos santos nas páginas do Antigo Testamento, homens e
mulheres, como Abraão e Sara, José e Moisés, Elias e Jeremias; e fora do povo
escolhido de Israel, há figuras como Sócrates que não só ensinou a verdade, mas
a viveu. No entanto, continua a ser verdade que o pecado humano — o pecado
original de Adão, agravado pelos pecados pessoais de cada geração subseqüente —
estabeleceu tal fosso entre Deus e o homem, que o homem só, seus próprios
esforços, não é capaz de transpor.
Ninguém
cai sozinho
Para a tradição ortodoxa, então, o pecado original de Adão
afeta a raça humana na sua totalidade, e tem conseqüências físicas e morais: ele
resulta não apenas na doença e na morte física, mas na fraqueza moral e
paralisia. Mas isso implica também uma culpa herdada? Aqui ortodoxia é mais
cautelosa. O pecado original não deve ser interpretado em termos jurídicos ou
quase biológicos, como se fosse uma "mancha" física de culpa, transmitida
através de relações sexuais. Esta imagem, que normalmente ocorre na perspectiva
agostiniana, é inaceitável para a ortodoxia. A doutrina do pecado original
significa, antes, que nascemos em um ambiente onde é fácil fazer o mal e
difícil fazer o bem; fácil de magoar os outros, e difícil de curar suas
feridas; fácil despertar as suspeitas dos homens e difícil ganhar sua
confiança. Isso quer dizer que somos, cada um de nós, condicionado pela
solidariedade da raça humana em seus erros acumulados, em seus maus pensamentos
acumulados, e, portanto, em sua "má-existência" acumulada. E a esse
acumulo de erros, nós mesmo acrescentamos outros tantos por nossos atos
pecaminosos deliberados. O abismo cresce mais e mais.
É aqui, na solidariedade da raça humana, que encontramos
uma explicação para a aparente injustiça da doutrina do pecado original. Por
que, perguntamos, toda a raça humana deve sofrer por causa da queda de Adão?
Por que todos deveriam ser punidos por causa do pecado de um homem? A resposta
é que os seres humanos, feitos à imagem do Deus Trinitário, são
interdependentes e inerentes uns aos outros. Nós somos "membros uns
dos outros" (Efésios 4:25), e, portanto, qualquer ação realizada por um
membro da raça humana inevitavelmente afeta todos os demais. Embora não
sejamos, em sentido estrito, culpados pelos pecados dos outros, ainda assim
estamos sempre envolvidos.
"Quando alguém cai", afirma Aleksei Khomiakov,
"ele cai sozinho; mas ninguém é salvo sozinho." Não deveria ter dito
também que ninguém cai sozinho? O Starets Zosima de Dostoiévski em Os Irmãos Karamazov
aproxima-se da verdade quando diz que somos, cada um de nós, "responsáveis
por todos e tudo":
"Há apenas um
caminho para a salvação, que é tornar-se responsável por todos os pecados dos
homens. Assim que você se responsabilizar com toda sinceridade por tudo e por
todos, você verá de imediato que isso é verdadeiro, e que, de fato, você é
culpado por todos e por todas as coisas."
Um Deus que sofre?
Nosso pecado causa tristeza ao coração de Deus? Ele sofre
quando sofremos? Temos o direito de dizer ao homem ou mulher que está sofrendo:
"Deus mesmo, neste exato momento, está sofrendo o que você sofre e está
superando"?
Desejando preservar a transcendência divina, os primeiros
Padres, gregos e latinos, insistiram na "impassibilidade" de Deus.
Interpretado rigorosamente, isso significa que, enquanto Deus-feito-homem é
capaz de sofrer e sofre, Deus em si mesmo não. Sem negar o ensinamento
patrístico, não deveríamos também dizer algo mais do que isso? No Antigo
Testamento, muito antes da Encarnação de Cristo, encontramos a afirmação de Deus:
"Sua alma se entristeceu pela miséria de Israel" (Juízes 10:16). Em
outras partes do Antigo Testamento, palavras como estas são colocadas na boca
de Deus: "Ephraim, meu querido filho? Ele é meu filho amado? Porque depois
que falo contra ele, ainda me lembro dele solicitamente; por isso se comove por
ele meu coração" (Jeremias 31:20). "Como posso desistir de você,
Efraim? Como posso entregar você nas mãos de outros, Israel? O meu coração está
enternecido." (Oséias 11:8)
Se essas passagens significam alguma coisa, devem
significar que, mesmo antes da Encarnação, Deus está diretamente envolvido nos
sofrimentos de sua criação. Nossa miséria causa tristeza a Deus; as lágrimas de
Deus estão unidas às do homem. O respeito devido à abordagem apofática irá,
naturalmente, nos deixar desconfiados de atribuir sentimentos humanos a Deus de
forma crua ou desqualificada. Mas temos ao menos o direito de afirmar. "O
amor torna os sofrimento dos outros o seu próprio", afirma o "Livro
dos Pobres em Espírito." Se isso é verdade para o amor humano, muito mais o
é para o amor divino. Como Deus é amor e criou o mundo em um ato de amor — e
como Deus é pessoal, e personalidade implica compartilhar — Deus não permanece
indiferente às tristezas desse mundo caído. Se eu, como ser humano, permaneço impassível
perante angústia de outro, em que sentido eu verdadeiramente o amo? Certamente,
então, Deus se identifica com sua criação em sua angústia.
Foi verdadeiramente dito que havia uma cruz no coração de
Deus antes que uma fosse plantada fora de Jerusalem; e embora a cruz de madeira
tenha sido retirada, a cruz no coração de Deus ainda permanece. É a cruz de dor
e triunfo - os dois juntos. E aqueles que podem acreditar nisso descobrirão que
a alegria se mistura com a taça de amargura. Eles vão partilhar num nível
humano da experiência divina do sofrimento vitorioso.
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