Nota do tradutor: o texto que segue provém de uma transcrição de um áudio (do podcast "Orthodoxy and Heterodoxy"), por isso o texto está em um formato um pouco diferente.
Salvação
Se as diferenças na crença sobre a natureza da Igreja e a identidade de Deus não fossem suficientes para separar o catolicismo romano da ortodoxia, a teologia da própria salvação também é marcadamente diferente. Roma, nos últimos anos, suavizou a posição que ensinou durante séculos que a submissão ao papado era necessária para a salvação. Dito isto, o entendimento essencial de Roma sobre o que é pecado, como ele afeta a humanidade, e de como você é salvo, ainda é diferente da Ortodoxia.
Salvação de Não-Católicos
Assim, uma questão muito provável de ser feita é se os não-católicos podem ser salvos. A resposta é, infelizmente, confusa, pois Roma mudou sua posição em relação a esta questão ao longo dos anos. No século XIV vemos esta linguagem bem forte, isto é de uma Bula Papal chamada Unam sanctam (1302), "Ademais, declaramos, proclamamos, definimos que é absolutamente necessário para a salvação que toda criatura humana esteja sujeita ao Pontífice Romano." Claramente, qualquer pessoa que não se submeta a Roma é condenada. A mesma linguagem é utilizada no século XVI, no 5º Concílio de Latrão em 1516, "É necessário para a salvação que todos fieis cristãos estejam sujeitos ao Pontífice Romano."
Ainda assim, ao criticar a Ortodoxia com fortes termos, os teólogos católicos do início do século 20, consideravam a relação de Roma com o oriente como uma divisão dentro da Cristandade e não só apenas como o oriente deixando Roma. Por exemplo, vemos isso na Enciclopédia Católica (1913):
"Não foram os Latinos, foram eles...[referem-se aos Ortodoxos] que abandonaram a fé dos Pais. Não há humilhação em refazer os próprios passos quando desvia-se por uma estrada errada por causa de disputas pessoais há muito esquecidas. Eles também devem ver quão desastroso para a causa comum é o escândalo da divisão. Eles também devem querer pôr fim a um mal tão gritante. E se eles realmente desejam, o caminho não precisa ser difícil. Pois, de fato, depois de nove séculos de cisma, podemos perceber em ambos os lados que não é apenas o maior mas também o mal mais supérfluo da Cristandade."Quando chegamos ao Concílio Vaticano II, Roma ensina explicitamente que há possibilidade de não-católicos serem salvos:
"Com efeito, aqueles que, ignorando sem culpa o Evangelho de Cristo, e a Sua Igreja, procuram, contudo, a Deus com coração sincero, e se esforçam, sob o influxo da graça, por cumprir a Sua vontade, manifestada pelo ditame da consciência, também eles podem alcançar a salvação eterna." (Lumen Gentium, Concílio Vaticano II, 1965).Portanto, enquanto que Roma, no século XIV, dizia que os Cristão Ortodoxos estavam condenados, agora podem ser encobertos por estarem em "ignorância", na linguagem do Vaticano II. Mesmo ignorando a questão de quais destas declarações devem ser consideradas infalíveis, tal mudança faz com que se questione se Roma mudará sua posição no futuro.
Pecado Original
Seguindo o ensinamento de Santo Agostino de Hipona - que a Ortodoxia o venera como Santo, sem, no entanto, defender algumas de suas doutrinas - o catolicismo romano ensina que o pecado original é transmitido para os descendente de Adão e Eva por meio da reprodução sexual. Aqui um trecho de Santo Agostinho, de sua obra De Bono Coniugali,
"... sempre que se trata do processo real de geração, o próprio envolver-se, que é legal e honorável, não pode ser efetuado sem o ardor da luxúria.. [Essa luxúria] é a filha do pecado, por assim dizer; E sempre que dá assentimento à comissão de ações vergonhosas, torna-se também a mãe de muitos pecados. Agora, a partir dessa concupiscência, aquilo que vir a ser pelo nascimento natural é limitado pelo pecado original."Em outra parte, ao falar do "dever" da relação sexual Agostinho diz que um casal só pode "fazê-lo com arrependimento". (Sermão sobre da concordância dos evangelistas Mateus e Lucas nas Gerações do Senhor.) Agostinho não é a fonte desse ensinamento, mas está seguindo uma tradição anterior que remonta, no mínimo, até Orígenes. Agostinho na verdade dá ao casamento uma visão mais positiva e tem o cuidado de dizer que o próprio sexo não é pecaminoso, mas que o pecado original é transmitido através do ato sexual, porque o pecado está sempre lá com ele via luxúria.
O concílio de Trento também deixou claro que o pecado original é transmitido pela reprodução sexual (1546):
"Se alguém afirmar que esse pecado de Adão – que é um pela origem e transmitido pela propagação e não pela imitação, é transmitido para todos, que está em cada um como algo que lhe é próprio, se apaga ou por forças humanas ou por outro remédio, que não seja pelos méritos de um único mediador nosso Jesus Cristo, que nos reconciliou com Deus por seu sangue, fazendo-se para nós justiça, santificação e redenção ou negar que o mesmo mérito de Jesus Cristo, devidamente conferido pelo sacramento do Batismo na forma da Igreja, é aplicado tanto aos adultos como às crianças – seja excomungado, porque sob o céu nenhum outro nome foi dado aos homens, pelo qual devamos ser salvos."O concílio também escreveu,
"Se alguém negar que pela graça de Nosso Senhor Jesus Cristo, conferida no Batismo, é perdoado a culpa do pecado original. Ou se afirmar que não é tirado tudo o que tem verdadeira e própria razão de pecado, mas disser que este é tão somente cancelado ou não imputado – seja excomungado."
A mesma linguagem é utilizada no catecismo atual,
"Como é que o pecado de Adão se tornou o pecado de todos os seus descendentes? Todo o gênero humano é, em Adão, como um só corpo dum único homem. Em virtude desta «unidade do gênero humano», todos os homens estão implicados no pecado de Adão, do mesmo modo que todos estão implicados na justificação de Cristo. Todavia, a transmissão do pecado original é um mistério que nós não podemos compreender plenamente. Mas sabemos, pela Revelação, que Adão tinha recebido a santidade e a justiça originais, não só para si, mas para toda a natureza humana; consentindo na tentação, Adão e Eva cometeram um pecado pessoal, mas este pecado afeta a natureza humana que eles vão transmitir num estado decaído. É um pecado que vai ser transmitido a toda a humanidade por propagação, para toda a humanidade, quer dizer, pela transmissão duma natureza humana privada da santidade e justiça originais." (Catecismo, seção 404.)A ideia de que todos pecaram em Adão pode ter origem em um erro de tradução de Romanos 5:12: "Portanto, assim como o pecado entrou no mundo através de um homem, e a morte pelo pecado, e assim a morte veio a todos, porque todos pecaram." Na tradução latina a última frase é "in quo omnes peccaverunt", significando "em quem todos pecaram", dizendo que em Adão (o 'único homem’) todos pecaram, fazendo todos culpados do pecado de Adão.
Em grego fica "eph’ hō pantes hēmarton", "porque todos pecaram", que não somente é a palavra que está na escritura, mas a fé da Igreja Ortodoxa. Isto significa que, embora todos sofram com os efeitos do pecado de Adão por sermos humanos, nós não somos culpados de outros pecados exceto os nossos próprios. Nós não pecamos "em" Adão, mas nós pecamos "porque" o pecado de Adão nos fez capazes de pecar. É por isso que alguns escritores Ortodoxos preferem utilizar o termo "pecado ancestral" ao invés de "pecado original". "Pecado original" não é um termo desconhecido nos Pais Gregos, no entanto, alguns se referem ao "primeiro pecado", que é essencialmente sinônimo do latim de onde vem "pecado original".
O ensinamento de Agostinho de que a reprodução sexual é necessariamente maculada (muito embora necessário para a continuidade da raça humana) vai contrário ao claro sentido de Hebreus 13:4 que diz que que diz que o leito conjugal é "sem mácula". É verdade que alguns dos Pais dizem que a presente modalidade física da reprodução sexual é um resultado da Queda (da mesma maneira do estado caótico do mundo natural, por exemplo, terremotos e furações), mas eles não dizem que o sexo em si mesmo é pecaminoso, e que deve ser feito apenas "com arrependimento".
Tendo dito tudo isto, os Ortodoxos e os Católicos não estão necessariamente em lados completamente opostos nesta questão. Por exemplo, o catecismo católico tem isto a dizer sobre a hereditariedade da culpa no pecado original, "E é por isso que o pecado original se chama «pecado» por analogia: é um pecado «contraído» e não «cometido»; um estado, não um ato. Embora próprio de cada um, o pecado original não tem, em qualquer descendente de Adão, caráter de falta pessoal". (seções 404 e 405). Então não devemos estender isso demais. E, interessantemente, na tradução grega dessa passagem do catecismo, utiliza-se a frase "propatorikó amartía", que significa Pecado Ancestral. Em verdade, a culpa herdada é mais característica de certas correntes no protestantismo do que de Roma.
A Imaculada Conceição
A doutrina do pecado original também é a origem do ensino da Imaculada Conceição, que afirma que a Virgem Maria foi preservada de toda mácula do pecado original quando foi concebida (declarado como dogma em 1854, muito embora tenha sido rejeitado por Tomas de Aquino no século XIII). Foi essa purificação de sua concepção que a fez capaz de consentir com a Encarnação quando anunciada pelo Arcanjo Gabriel:
"...declaramos, pronunciamos e definimos: A doutrina que sustenta que a beatíssima Virgem Maria, no primeiro instante da sua Conceição, por singular graça e privilégio de Deus onipotente em vista dos méritos de Jesus Cristo, Salvador do gênero humano, foi preservada imune de toda mancha de pecado original, essa doutrina foi revelada por Deus, e por isto deve ser crida firme e inviolavelmente por todos os fiéis." (Ineffabilis Deus, 1854; este é o documento pelo qual o Papa Pio IX definiu a doutrina)
"Para vir a ser Mãe do Salvador, Maria «foi adornada por Deus com dons dignos de uma tão grande missão» . O anjo Gabriel, no momento da Anunciação, saúda-a como «cheia de graça». Efetivamente, para poder dar o assentimento livre da sua fé ao anúncio da sua vocação, era necessário que Ela fosse totalmente movida pela graça de Deus." (Catecismo, 490).Que a Virgem Maria teve de ser concebida sem a mácula do pecado original, para que pudesse tornar-se a Mãe do Senhor, revela uma perspectiva mais pessimista da Queda do que a posição Ortodoxa. Roma defende que Maria tinha que estar livre dos efeitos do Pecado Original para que pudesse se tornar livre o suficiente para poder dar consentimento à Encarnação. Mas o Ortodoxo crê que toda a humanidade, incluindo a Virgem Maria, é livre para escolher Deus, mesmo que essa liberdade esteja corrompida e tenda ao pecado.
A Ortodoxia afirma uma pré-purificação da Virgem Maria, mas não em sua concepção, mas, em vez disso, na Anunciação. Este ensinamento é expressado nos hinos da Anunciação, por exemplo, "A vinda do Espírito Santo purificou minha alma e santificou meu corpo e o fez um templo capaz de conter Deus, um tabernáculo divinamente adornado, um templo vivo e a pura Mãe da Vida." (ode 7 do cânon da Anunciação). É nosso ensinamento que a santificação que ocorreu na Anunciação foi tanto para tornar seu ventre preparado para suportar Deus como também para que a natureza humana assumida por Cristo fosse prelapsariana (isto é antes da Queda da humanidade). Especular além disso, nos leva a problemas.
Nas homilias de São João de Damasco sobre a Dormição da Virgem Maria, ele escreve que ela está realmente liberta da corrupção, mas que a libertação ocorre na Anunciação (o que contradiz a definição de Roma de 1854). Ela herdou a corrupção de Adão e Eva, mas superou por sua vida pura, que faz parte do que a preparou para se tornar Theotokos. E ele também é claro em sua Exposição Exata da Fé Ortodoxa que esta purificação veio após o seu consentimento: "Então, após o consentimento da Santíssima Virgem, o Espírito Santo desceu sobre ela, segundo a palavra do Senhor que o anjo falou, purificando-a concedendo-lhe o poder para receber a divindade do Verbo, e também poder para concebê-Lo" (Livro 3, cap. 2, segundo parágrafo). A ordem é diferente: o consentimento acontece primeiro e então vem a purificação para a Ortodoxia. Para Roma é exatamente o oposto.
Provavelmente o argumento mais claro contra a Imaculada Conceição, no entanto, é que a Virgem Maria morreu - involuntariamente e por necessidade. Se ela tivesse nascido sem os efeitos do pecado original, então ela teria sido incapaz de morrer.
Cristo, como Sua mãe, sofreu os efeitos da natureza humana caída (como fome, fadiga, etc.), mas não cometeu nenhum pecado pessoal. Ele fez tudo isso de Sua própria vontade, e não por necessidade, porque Sua natureza humana era prelapsária. Sua natureza não era decaída. Cristo e o resto da humanidade possuem a mesma natureza humana, mas o modo de como essa natura se expressa é diferente. Sua humanidade é deificada. Enquanto que a nossa é decaída e, portanto, sujeita à morte por necessidade. A morte de Cristo foi plenamente voluntária. Lembremos do momento em que Ele morreu, é muito importante observar isto na escritura: Ele baixa Sua cabeça, e então que entrega o Espírito. Nesta ordem. Uma morte involuntária ocorre de forma contrária. A cabeça baixa porque o espírito partiu. A morte de Cristo é voluntária. Ele escolhe o momento de Sua morte.
Também há questões soteriológicas desconfortáveis levantadas pela doutrina da Imaculada Conceição: se, na sua concepção, a Virgem Maria é preservada da mancha do pecado original e, portanto, retornou ao estado prelapsariano por "uma singular graça e privilégio concedido pelo Deus onipotente" - mesmo "em vista dos méritos de Jesus Cristo" - qual então seria a necessidade da Encarnação? Por que não é possível salvar toda a humanidade por este mesmo método?
Mérito e Satisfação
Devido ao entendimento do pecado original em termos legais, a morte e o pecado são primariamente entendidos na doutrina católica romana como um débito - ou um crime - contra Deus. Ainda mais, se o fiel é perdoado de seus pecados, ele ainda tem que pagá-los por meio de punições temporárias. É dito que Deus exige ser satisfeito pela culpa do pecado e pelo débito que o fiel deve a Deus, e o fiel tem que merecer sua salvação. Ele também precisa pagar as punições temporais devido seus pecados no purgatório, o sofrimento que pode ser diminuído ganhando indulgências. A enciclopédia católica coloca desta forma (1913):
"O pecado, como uma ofensa contra Deus, exige satisfação no primeiro sentido; o castigo temporal devido ao pecado exige satisfação no segundo sentido.
A fé cristã nos ensina que o Encarnado Filho de Deus pela Sua morte na cruz tem em nosso lugar satisfeito plenamente a ira de Deus em relação aos nossos pecados e assim fez uma reconciliação entre o mundo e seu Criador. É um artigo definido da Fé Católica que o homem antes, no e depois da justificação deriva toda a sua capacidade de merecer e satisfazer, bem como os seus reais méritos e satisfações, unicamente a partir do tesouro infinito dos méritos que Cristo ganhou para nós na Cruz.
O segundo tipo de satisfação, isto é, por meio da qual a punição temporal é removida, consiste nisso, que o penitente, após sua justificação, cancela gradualmente as punições temporais por seus pecados, ou ex opere operato, realizando conscienciosamente a penitência que lhe é imposta por seu confessor, ou ex opere operantis, por penitências auto-impostas (como oração, jejum, esmola, etc.) e suportando pacientemente os sofrimentos e provações enviados por Deus; se ele negligenciar isso, ele terá que dar plena satisfação nas dores do purgatório."
A enciclopédia católica não é uma fonte oficial, mas essencialmente concorda com aquilo que está no catecismo, que define méritos e satisfação desta maneira:
"O termo "mérito" refere-se em geral à recompensa devida por uma comunidade ou uma sociedade pela ação de um de seus membros, experimentado como benéfico ou prejudicial, merecendo recompensa ou punição. O mérito é relativo à virtude da justiça, de acordo com o princípio da igualdade que o governa."
"Uma vez que a iniciativa pertence a Deus na ordem da graça, ninguém pode merecer a graça inicial do perdão e da justificação, no início da conversão. Movidos pelo Espírito Santo e pela caridade, podemos então merecer para nós e para os outros as graças necessárias para a nossa santificação, para o aumento da graça e da caridade e para a realização da vida eterna. Mesmo os bens temporais, como a saúde e a amizade, podem ser merecidos de acordo com a sabedoria de Deus. Essas graças e bens são objeto da oração cristã. A oração atende à graça que precisamos para ações meritórias."
"A absolvição tira o pecado, mas não remedeia todas as desordens causadas pelo pecado. Aliviado do pecado, o pecador deve ainda recuperar a perfeita saúde espiritual. Ele deve, pois, fazer mais alguma coisa para reparar os seus pecados: «satisfazer» de modo apropriado ou «expiar» os seus pecados. A esta satisfação também se chama «penitência»."
"Para compreender esta doutrina e esta prática da Igreja, deve ter-se presente que o pecado tem uma dupla consequência. O pecado grave priva-nos da comunhão com Deus e, portanto, torna-nos incapazes da vida eterna, cuja privação se chama «pena eterna» do pecado. Por outro lado, todo o pecado, mesmo venial, traz consigo um apego desordenado às criaturas, o qual precisa de ser purificado, quer nesta vida quer depois da morte, no estado que se chama Purgatório. Esta purificação liberta do que se chama «pena temporal» do pecado. Estas duas penas não devem ser consideradas como uma espécie de vingança, infligida por Deus, do exterior, mas como algo decorrente da própria natureza do pecado. Uma conversão procedente duma caridade fervorosa pode chegar à total purificação do pecador, de modo que nenhuma pena subsista".
Portanto a salvação trata-se primariamente da questão de satisfazer Deus e evitar a Sua ira contra nós. Uma ênfase na cura e na transformação da pessoa pode facilmente perder-se nesse sistema. A ideia de que o Filho de Deus tornou-se homem para satisfazer a ira do Pai, encontra sua expressão plena na obra de Anselmo de Cantuária "Cur Deus Homo" ("Por que Deus tornou-se Homem?").
As escrituras utilizam a linguagem de "débito" e "crime" ao descrever nossos pecados contra Deus, mas não é algo enfatizado pela Ortodoxia na maneira que é para Roma, nem há qualquer sistema de satisfação, mérito e indulgências. A Ortodoxia não ensina sobre punições temporais pelos pecados que foram perdoados, pois o perdão cancela qualquer tipo de punição. Se Deus perdoa alguém, por que Ele ainda exigiria pagamento pela satisfação? Este modelo nega o poder total e as implicações do perdão na morte e ressurreição de Cristo. Nós concordamos que o perdão dos pecados e a absolvição não corrige toda a desordem que o pecado causou, mas o que é necessário é uma reorientação da pessoa humana de modo que funcione de forma diferente. Não que seja preciso satisfação pelos seus pecados.
Se Deus precisa ser "satisfeito", então Ele é inconstante por ter permitido que nós caíssemos no pecado. Ele teria feito as regras sabendo perfeitamente que nós violaríamos e Ele seria ainda mais monstruoso por exigir que Seu filho único seja sacrificado para satisfazê-Lo.
Além disso, ao focar na linguagem legalista metafórica sobre a salvação utilizada nas escrituras, os católicos romanos podem deixar escapar o entendimento mais central da salvação nas escrituras, que é a cura. A palavra sózein - nas escrituras em grego - que é traduzida por salvar, também significa, literalmente, curar. A salvação é uma cura, por definição. No entanto, com a ênfase legalista de Roma, as transformações pessoais não são enfatizadas: o principal objetivo é, portanto, alcançar um certo estado, o estado de graça.
Embora mérito seja um termo que pode ser entendido em um sentido Ortodoxo (por exemplo, como sinônimo para virtude, ou para referir-se as recompensas concedidas por Deus para os santos), o mérito no modelo legalista de Roma é um conceito estranho a Fé Ortodoxa. Ninguém pode merecer a salvação, nem mesmo os santos. Não é o mérito legal de Cristo que nos salva, mas a nossa participação Nele.
A palavra mérito foi utilizada pelo antigo ocidente, antes do Grande Cisma, mas é o conceito posterior que se assemelha quase a uma moeda de troca, com sistemas de satisfação quantificados, que é um problema para a Ortodoxia. No ocidente, mérito também passou a ter uma idéia de ser "superrogatório" que são gerados pelos santos pois eles vão além do mínimo exigido para a salvação deles. Assim, o mérito extra, pode ser utilizado para ajudar os outros.
Purgatório e Indulgências
Ao desenvolver o que a punição temporal deve significar, Roma apresenta a doutrina do purgatório. O purgatório é um lugar para as punições temporais onde um fiel salvo paga a Deus aquilo que ele deve por meio de sofrimento por alguns anos (e também experimentando uma alegria desconhecida na terra).
Esta é a linguagem utilizada. Para Roma, a doutrina da prática das indulgências está "estreitamente conectada com os efeitos do sacramento da penitência", isto está no catecismo, seção 1471 que, como vimos anteriormente, é entendido de forma sinônima a "satisfação "(seção 1459). As indulgências são tradicionalmente obtidas em termos de certas quantidades de tempo fora do purgatório. Ainda que estes termos rigorosamente temporais tenham sido corrigidos nas reformas do século XX para referir-se ao efeito espiritual de certo tempo gasto em penitência, a quantificação das indulgências ainda prevalece, e a linguagem de "punição temporal" também ainda permanece.
Em alguns séculos atrás podia-se comprar indulgências diretamente. Isto foi uma das principais reclamações da reforma protestante. Foi principalmente pela venda de indulgências que o edifício da Basílica de São Pedro, no Vaticano, foi custeado. Em muitos casos Missas são "compradas" por certas doações para que se possa ajudar algum amigo ou pessoa amada a sair do purgatório.
Apesar de não ser tão conhecido em nossos dias e de ser expresso de forma menos literal, o sistema de indulgências ainda permanece e é expresso em detalhes no catecismo atual:
A indulgência é a remissão, diante de Deus, da pena temporal devida pelos pecados já perdoados quanto à culpa, que o fiel bem-disposto obtém, em condições determinadas, pela intervenção da Igreja que, como dispensadora da redenção, distribui e aplica por sua autoridade o tesouro das satisfações de Cristo e dos santos.
A indulgência é parcial ou plenária, conforme liberar parcial ou totalmente da pena devida pelos pecados. Os fiéis podem adquirir indulgências para si mesmos ou aplicá-las aos defuntos. (Catecismo, seção 1471; veja também 1472)Para compreender esta doutrina e esta prática da Igreja, é preciso admitir que o pecado tem uma dupla conseqüência. O pecado grave priva-nos da comunhão com Deus e, consequentemente, nos toma incapazes da vida eterna; esta privação se chama "pena eterna" do pecado. Por outro lado, todo pecado, mesmo venial, acarreta um apego prejudicial às criaturas que exige purificação, quer aqui na terra, quer depois da morte, no estado chamado "purgatório". Esta purificação liberta da chamada "pena temporal" do pecado. Essas duas penas não devem ser concebidas como uma espécie de vingança infligida por Deus do exterior, mas, antes, como uma conseqüência da própria natureza do pecado. Uma conversão que procede de uma ardente caridade pode chegar à total purificação do pecador, de tal modo que não haja mais nenhuma pena.
As indulgências ainda são compreendidas como provenientes dos méritos, o catecismo diz isso:
"A indulgência obtém-se mediante a Igreja que, em virtude do poder de ligar e desligar que lhe foi concedido por Jesus Cristo, intervém a favor dum cristão e lhe abre o tesouro dos méritos de Cristo e dos santos, para obter do Pai das misericórdias o perdão das penas temporais devidas pelos seus pecados. É assim que a Igreja não quer somente vir em ajuda deste cristão, mas também incitá-lo a obras de piedade, penitência e caridade".
Também é possível obter indulgências para outras pessoas. O catecismo diz, "Por meio das indulgências, os fiéis podem obter para si próprios, e também para as almas do Purgatório." (Seção 1498).
Pelo fato de que as punições temporais podem ser entendidas na categoria legal de "débito", passa a ser possível pagar por tal punição para outra pessoa:
A possibilidade dessa transferência baseia-se no fato de que as punições residuais pelo pecado são da natureza de uma dívida, que pode ser legitimamente paga ao credor e, assim, cancelada não só pelo próprio devedor, mas também por um amigo do devedor. Essa consideração é importante para a compreensão adequada da utilidade dos sufrágios para as almas no purgatório."
Até o Papa João Paulo II, (hoje canonizado como santo católico), que não era conhecido por reforçar o tradicionalismo na Igreja Católica Romana, publicou um documento detalhado de como ganhar indulgências, no ano 2000. Isto é de sua Bula Papal « Incarnationis mysterium » publicada em 1998,
"A indulgência plenária do jubileu" isto é, do ano 2000, poderá ser obtida também por meio de iniciativas que exercitem de modo concreto e generoso o espírito penitencial que é como que a alma do Jubileu. Assim, abster-se pelo menos durante um dia de consumos supérfluos (por exemplo, do tabaco, das bebidas alcoólicas, jejuando ou praticando a abstinência segundo as normas gerais da Igreja e as normas das Conferências de Bispos), entregando uma quantia proporcionada do dinheiro poupado para os pobres; apoiar com uma significativa contribuição obras de carácter religioso ou social (especialmente a favor da infância abandonada, da juventude em dificuldade, dos anciãos necessitados, dos estrangeiros presentes nos diversos países à procura de melhores condições de vida); dedicar uma parte razoável do próprio tempo livre a actividades que sejam úteis para a comunidade, ou outras formas semelhantes de sacrifício pessoal. dedicar uma parte razoável do próprio tempo livre a actividades que sejam úteis para a comunidade, ou outras formas semelhantes de sacrifício pessoal."
Em 2013 o Papa Francisco concedeu indulgências para aqueles que o seguissem na rede social, durante a Jornada Mundial da Juventude no Rio de Janeiro, se acompanhado por oração, confissão e comunhão.
E por que o Papa pode conceder indulgências? Porque ele tem um acesso particular ao tesouro inesgotável de méritos. Proveniente dos bons efeitos da obra de Cristo e dos santos, ele pode declarar atos específicos para acessar esse tesouro. Este poder papal (e anteriormente episcopal), vem da tradição antiga dos bispos que as vezes reduziam as penitências, devido ao arrependimento especial mostrado pelo fiel. Esta é uma prática Ortodoxa ainda hoje, muito embora não seja em termos de méritos e indulgências. A questão é o que contribui melhor para a salvação.
A Ortodoxia concorda que há certa purgação necessária para as almas que se destinam ao céu, mas esta experiência nunca foi codificada num modelo temporal de anos de sofrimento, empregada por Roma na doutrina do purgatório. A purificação da alma na medida em que entra no céu também não é entendida como um pagamento a Deus, e nem como uma punição pelos pecados.
Outro problema com o purgatório, é que divide-se a salvação em duas partes, na entrada no céu e na purgação ou no pagamento do débito do pecado, A ênfase na vida cotidiana espiritual é colocada nas obras externalizadas, para que seja reduzido o tempo no purgatório, ao invés de uma transformação pessoal para unir-se com Deus. A obra salvífica de Cristo só é suficiente para levar os fiéis para o céu, mas eles ainda precisam se esforçar por si mesmos para realmente se livrarem do pecado de certa forma. O perdão completo só pode ser comprado com dinheiro, com boas ações e com sofrimento no purgatório.
Para a Ortodoxia é ainda mais sem sentido sugerir que alguém possa comprar o avanço espiritual de outra pessoa, obtendo indulgências para ela. Podemos afetar a vida dos outros com nossas orações, mas não podemos exercer controle sobre a experiência espiritual deles. As realidades espirituais são tão discretas e exteriores que podemos pagar o débito - a punição - de outro?
O purgatório também supõe um modelo temporal linear para o pós-morte. Não temos indicações nas escrituras ou nos Padres se existe tempo da forma que conhecemos no pós-morte. Talvez o mais problemático é o modelo em que o pecado é satisfeito. Satisfazer um pecado representa uma orientação fundamentalmente diferente da Igreja Ortodoxa, onde a ênfase é sobre a cura ao invés de pagamento de débitos ou satisfação de exigências. Devemos notar que essa é uma diferença principalmente de ênfase, a linguagem de cura e de transformação da salvação também é muito presente no catolicismo romano.
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