sexta-feira, 13 de outubro de 2017

Ortodoxia e Heterodoxia - Catolicismo Romano (Pe. Andrew Stephen Damick) [Parte 2/4]

Nota do tradutor: o texto que segue provém de uma transcrição de um áudio (do podcast "Orthodoxy and Heterodoxy"),  por isso o texto está em um formato um pouco diferente. 


    Outro problema prático dessa estrutura que tem implicações teológicas é que a catolicidade é definida como submissão a Roma, cuja universalidade é a definição de eclesiologia verdadeira. Mas katholikos (a palavra grega de onde o termo católico vem) não significa propriamente "universal", mas, literalmente, "de acordo com o todo". Para a Ortodoxia, esta totalidade reside em cada diocese com seu bispo como presidente na Eucaristia, cercado pelo seu clero e fiéis. As paróquias Ortodoxas e as dioceses não são meramente partes da Igreja Católica, mas manifestam a catolicidade dentro de si plena e localmente.

     A revindicação pela supremacia papal é problemática até mesmo dentro do Catolicismo que tem recorrido - e continua a recorrer -, embora de forma limitada, à soluções conciliares. Um exemplo central foi a série de eventos conhecida no ocidente por o grande cisma, começando em 1378 e terminando em 1417. Estes diferem dos eventos do Grande Cisma entre o ocidente e o oriente. Ocorreu séculos depois. Durante esta época, houve múltiplas reivindicações rivais pelo Papado, chegando até 3 papas. Esse problema foi resolvido não por um apelo ao poder papal, afinal de contas, quem é o verdadeiro papa? Mas, em vez disso, foi resolvido pelo Concílio de Constança que se reuniu entre 1414 e 1418.

        Constança não só resolveu o problema (removendo dois dos requerentes, transferindo um para outra sé episcopal, e depois elegendo um homem novo como papa), mas também explicitamente ensinou uma doutrina conciliar, declarando que os concílios ecumênicos eram superiores aos papas: "Legitimamente reunidos no Espírito Santo, constituindo um Concílio geral e representando a Igreja Católica Militante, temos o poder dado imediatamente por Cristo e qualquer um, de qualquer estado ou dignidade, até mesmo papal, está obrigado a obedecer, nas questões referentes à Fé a erradicação do cisma em questão e a reforma geral da referida igreja de Deus na cabeça e membros".

      Ironicamente, esse concílio foi considerado o XV Concílio Ecumênico por Roma mas não pode ser considerado ecumênico devido a validade da autoridade papal,  uma vez que foi convocado por João XXIII, um anti-papa, um homem o qual teve seu papado rejeitado por Roma. Roma aceita a solução do cisma dada pelo Concílio mas rejeita como inválida a seção que expõe o decreto do conciliarismo. Roma, portanto, distorce a constituição do Concílio, a fim de preservar sua doutrina da supremacia papal. 

        E se um papado divinamente instituído é necessário para a existência da Igreja, o que ocorre na Igreja no período entre a morte de um Papa e a eleição do próximo (o que Roma chama de Sede Vacante)? O que significa 'Trono Vazio'? Os canonistas de Roma dizem que o poder episcopal é transferido para a Catedral com a morte do Bispo o que, portanto, coloca o poder papal nas mãos de um Colégio de Cardeais e, ironicamente, utiliza-se uma solução conciliar para tal problema. 

Infalibilidade Papal

        Consideram que o Papa é infalível em questões de morais e fé quando fala Ex Cathedra, que significa 'desde o Trono', um poder mantido pelo papado desde São Pedro. Este dogma só foi definido no primeiro Concílio do Vaticano em 1870, onde está escrito:

        "Esta cátedra de S. Pedro sempre permaneceu imune de todo o erro, segundo a promessa de Nosso Senhor Jesus Cristo feita ao príncipe dos Apóstolos. este Dom da verdade e da fé, que nunca falece, concedido divinamente a Pedro e aos seus sucessores nesta cátedra, a fim de que cumprissem seu sublime encargo para a salvação de todos. ensinamos e definimos como dogma divinamente revelado que, quando o Romano Pontífice fala ex cathedra, isto é, quando, no desempenho do ministério de pastor e doutor de todos os cristãos em virtude de sua suprema autoridade apostólica define uma doutrina referente à fé e à moral para toda a Igreja, ele possui, em virtude da assistência divina prometida a ele na pessoa de São Pedro, goza daquela infalibilidade com a qual o Divino Redentor quis munir a sua Igreja quando define alguma questão referente à Fé e a moral; e que, portanto, tais declarações do Romano Pontífice são por si mesmas, e não apenas em virtude do consenso da Igreja, irreformáveis. portanto, se alguém ousar contrariar esta nossa definição, o que Deus não permita, que seja excomungado".  (Documento Pastor Aeternus)

        Considera-se, portanto, que o Papa, em seu ofício, possui um dom do Espírito Santo que o protege de ensinar heresias. Não significa que o Papa seja uma pessoa sem pecado, ou perfeito em qualquer coisa que diga, o dom especial tem caráter puramente doutrinal. Seus pronunciamentos não estão sujeitos a nenhuma revisão ou consentimento pela Igreja. Esta questão de consentimento foi mais tarde qualificada no Vaticano II em 1964 significando que é a infalibilidade da Igreja que é expressa pelo papa em seus pronunciamentos extraordinários  magisteriais. O Espírito Santo iria, em qualquer caso, observar se tais definições também tiveram o consentimento dos bispos ou dos fiéis. Isto está no documento Lumen Gentium. Como tal, nunca precisam ser revistos ou consentidos, presumivelmente porque ninguém jamais tentaria se opor. 

        As vezes é dito que esta limitação da circunscrição da infalibilidade papal no Vaticano I representa uma derrota do ultramontanismo. Os ultramontanistas da época queriam que todas as falas do papa fossem consideradas infalíveis e não foi isso que o Vaticano I decidiu, no entanto (apesar dos equívocos populares sobre a infalibilidade papal que existem em nossos tempos). Na verdade, é bem difícil para o Papa fazer um pronunciamento infalível.

      No entanto, não há uma lista católica romana única e acordada de declarações infalíveis feitas pelo papa, tornando assim esse dogma problemático na prática. Enquanto o papa e o Magistério (o termo utilizado para todo o episcopado em seu escritório de ensino) são bastante claros e inconfundíveis na maioria dos assuntos, não existe uma fórmula oficial que todos os católicos romanos concordem que indica uma afirmação infalível e ex cathedra. Diferentemente a Igreja Ortodoxa coloca a infalibilidade no Corpo inteiro da Igreja, não nas mãos de um homem, não importando quão elevada seja sua posição. Em sua base, a infalibilidade papal, pode significar uma necessidade de uma certeza epistemológica (uma certeza absoluta mental é uma outra expressão do legalismo da teologia católico-romana). A instituição do papado apela a um desejo psicológico ocidental por uma segurança absoluta, bem como aos católicos romanos que querem uma resposta final de apenas uma pessoa. As coisas aparentam ser sólidas e seguras desde que o papa esteja lá no Vaticano.

      A infalibilidade papal também sofre de problemas históricos tanto em relação à escritura e à história cristã subsequente. Primeiro, como foi anteriormente, a suposta infalibilidade de São Pedro nunca foi aclamada durante a controvérsia do judaísmo, na verdade, ele mesmo ficou no lado errado até que São Paulo o corrigiu. Esta infalibilidade também não é mencionada em lugar algum na escritura. 

        No século VI, o Papa Honório, foi excomungado (anatemizado) como herege monotelita pelo Quinto Concílio Ecumênico. Honório apoiou o monotelismo numa carta que ele escreveu para o Patriarca Sérgio de Constantinopla este anátema foi repetido por papas depois do Concílio, levantando a questão: quem é infalível, o Papa Honório ou os Papas posteriores que lhe denunciaram? De forma semelhante, o Papa João VIII, no século IX, condenou a adição do filioque no Credo Niceno, mas ele foi rejeitado pelos seus sucessores no século XI quais papas eram infalíveis? Outros papas conhecidamente submergiram em heresias, como Libério, Zosimus e Vigílio. Em qual opiniões eles foram infalíveis?

     Um papa infalível também faz com que concílios para decidir questões doutrinais se tornem desnecessários, mas, ainda assim a história da Igreja está repleta de concílios. Ao invés de ter que gastar com o transporte de centenas de bispos e, as vezes, utilizar meses ou até anos de seu tempo, por que eles apenas não escrevem para pedir que o Papa decida a questão? Todos esses concílios que enchem a história do catolicismo romano frequentemente nos mostra de forma clara que eles são apenas assessores para o Papa.

         Uma das perguntas deixadas sem resposta pela doutrina católica da infalibilidade papal é o que se deve fazer se um papa é de fato um herege, algo que Roma admite é possível. (A condenação de Honorius foi incluída nas lições dos breviários Católicos até o século XVIII). Você pode destituir um Papa herege? Se sim, quem tem autoridade para tal? Essas questões não possuem respostas. No entanto, os Ortodoxos não tem problema quanto a destituir seus Bispos quando necessário, mesmo Patriarcas. O próprio Patriarca Ecumênico já foi destituído em algumas ocasiões, mesmo depois que se tornou o prelado sênior na Igreja Ortodoxa. 

Um Deus diferente?

        Os cristãos ortodoxos que examinam seriamente os dogmas católico romano podem questionar se acreditamos no mesmo Deus. Tal sugestão não é feita de forma leve.  Há três dogmas católicos que separam a visão do vaticano de Deus daquela da Ortodoxia. O Filioque, a simplicidade absoluta divina e a graça criada. Devemos notar aqui que para todas essas três, existem teólogos ortodoxos que acreditam que podem ser compreendidas de maneira Ortodoxa como falaremos mais adiante.

O Filioque

        O Filioque, do Latim "e do Filho" é uma adição ao Credo Niceno-Constantinopolitano que define a Processão Eterna, a origem do Espírito Santo, como sendo não somente do Pai como está no Credo original - como o Senhor diz em João 15:26 - mas também "do Filho". 

        O "procedit", procede, na tradução para Latim do Credo, pode ser interpretado de forma mais geral ou de forma mais estrita e técnica no original. O termo grego ekporevetai levou a alguns teólogos a redefinir esta doutrina para que se refira não em relação a origem eterna do Espírito, mas apenas em relação à Sua missão temporal, ou seja, Sua missão salvífica no tempo. Esta definição é consistente com a Ortodoxia e foi ensinada por alguns Pais do ocidente latino, mesmo usando a palavra Filioque. Assim como também os Pais do oriente grego, embora não utilizando ekporevetai, mas proienai

        Tal interpretação é, em todo caso, inconsistente com as declarações doutrinais de Roma que deixam claro que se referem a origem eterna do Espírito:

"Nós professamos fielmente e devotadamente que o Espírito Santo procede eternamente do Pai e do Filho, não a partir de dois princípios, mas a partir de um princípio; não por duas espirações, mas por uma única espiração. Isto a Santa Igreja Romana, mãe e senhora de todos os fiéis, tem até agora professado, pregado e ensinado; esta é a crença imutável e verdadeira dos pais e doutores ortodoxos, tanto latinos como gregos". (Concílio de Lyon, 1274)

E este tipo de linguagem é, da mesma forma, utilizado catecismo atual da Igreja Católica:

"O Espírito Santo é eternamente do Pai e do Filho; Ele tem sua natureza e subsistência de uma vez do Pai e do Filho. Ele procede eternamente de ambos como de um princípio e de uma espiração E como o Pai, por meio da geração, concedeu ao Filho unigênito, tudo o que pertence ao Pai, exceto ser Pai, o Filho tem também eternamente do Pai, de quem nasceu eternamente, que o Espírito Santo procede do Filho." (Catecismo, seção 246, citação do Concílio de Florença em 1439)
        O Filioque tem sido considerado o maior problema e estritamente teológico - isto é, no sentido da verdadeira teologia, dogma, quem é Deus - entre a Ortodoxia e Roma, naquilo que diz respeito ao próprio coração da teologia cristã: as Pessoas da Santíssima Trindade. Várias obras teológicas tem sido realizadas sobre esse ponto, no entanto, e algumas grandes correntes da teologia católica, tem tentado conduzir Roma na direção de interpretar o Filioque como Missão Temporal, ao invés de Origem Eterna, apesar das declarações oficiais que dizem o contrário. Alguns teólogos, católicos e ortodoxos, consideram hoje a questão essencialmente resolvida. 

        Os Ortodoxos podem concordar com a interpretação do Filioque como Missão Temporal do Espírito Santo, embora rejeitamos a forma em que foi introduzida no Credo. Há também uma linguagem em São Cirilo de Alexandria e também São Máximo Confessor, que o Espírito repousa no Filho. Tal linguagem tem sido base para alguns diálogos e acordos entre as Igrejas. Nossas críticas, portanto, dizem respeito ao sentido do Filioque como Origem Eterna do Espírito. 

        A maior das acusações contra a doutrina é que ela altera as palavras do próprio Cristo, que disse: "Mas, quando vier o Consolador, que eu vos enviarei da parte do Pai, o Espírito da verdade, que procede do Pai, Ele dará testemunho de mim." (João 15:26) Jesus não diz que procede do Pai e do Filho, mas apenas "que procede do Pai." 

        O filioque também viola o equilíbrio perfeito da teologia trinitária: em vez de qualquer atributo particular pertencente à Natureza divina ou à Pessoa, o filioque atribui um atributo a duas Pessoas, mas não a outra. Por exemplo, não-gerado pertence somente ao Pai, gerado pertence ao Filho e processão pertence ao Espírito. De igual modo, todas características divinas, por exemplo, imortalidade, perfeição, etc pertencem as três Pessoas. Mas se, a origem eterna da espiração do Espírito, pertencem tanto ao Pai como o Filho, isso subordina o Espírito, pois Ele não possui algo que as outras duas pessoas possuem. 

A adição do Filioque ao Credo, além de ser herética, foi não-canônica e um pecado contra a unidade da Igreja. O Credo em sua forma atual foi professado e ecumenicamente retificado no 2º Concílio Ecumênico em 381. A inviolabilidade do Credo, foi confirmada por diversos Papas, anatematizando qualquer alteração, especialmente João VIII; seus legados foram enviados a Constantinopla 879 e 880, especificamente para restituir o Patriarca deposto São Fócio o Grande e rejeitar o Filioque. 

O Concílio que participaram em Constantinopla propuseram um anátema contra qualquer alteração no Credo. Anteriormente, quando o Filioque veio a ser utilizado em Roma, Papa Leão III proibiu sua utilização e ficou conhecido por ter o Credo original, sem adições, tanto em latim como em grego, escritos em placas de prata no túmulo de São Pedro. 

Algumas implicações práticas talvez tenham sugerido, devido a teologia herdada pelo Filioque, pois o Espírito Santo está subordinado por esta teologia, Suas ações são "extintas" utilizando a linguagem 1 Tessalonicenses 5:18. As ações são substituídas em certas formas práticas na vida de oração dos fiéis e na administração da vida da Igreja. A Ortodoxia ensina, por exemplo, que a unidade da Igreja e a infalibilidade são ambos frutos da ação do Espírito. Mas Roma coloca esses dois nas mãos do Papado. De igual modo a vida espiritual dinâmica é substituída pelo legalismo (2 Coríntios 3:6 diz "...a letra da lei mata, mas o Espírito vivifica.") E a falta de equilíbrio dá lugar a uma espiritualidade carnal e materialista. Será difícil tirar daí uma relação causal entre a doutrina e esse fenômeno, no entanto. 

Para uma refutação extremamente detalhada do motivo pelo qual o Filioque é uma heresia, vejam o livro de São Fócio o Grande, Sobre a Mistagogia do Espírito Santo, que inclui um estudo detalhado de como a doutrina não é apenas herética, mas absurda. Por exemplo, São Fócio escreve: "... se a espiração do Espírito Santo pertence a Divindade e não a Pessoa do Pai, isso significaria que o Espírito Santo espiraria até Ele mesmo." Isso não faz sentido, assim Ele seria a sua própria origem! 

Absoluta Simplicidade Divina 

Além da distorção das Pessoas da Divindade no Filioque, Roma também distorceu a natureza de Deus com o ensinamento da absoluta simplicidade divina. A fé Ortodoxa ensina que Deus é incompreensível em Sua essência e compreensível em Suas energias, uma linguagem que vem desde, no mínimo, o século IV. O catolicismo romano, embora não rejeitando explicitamente a distinção essência-energias, enfatiza a doutrina da absoluta simplicidade divina, uma exigência de categorias filosóficas, definindo Deus como uma "substância". Essa perspectiva não se trata de outra maneira de falar que Deus é Um, mas, ao contrário, insiste que a unicidade é uma singularidade indiferenciada, sem faces, aspectos ou distinções. 

A linguagem de Roma afirmando a absoluta simplicidade divina pode ser encontrada em diversas fontes por exemplo, no Quarto Concílio de Latrão em 1215,
"Firmemente cremos e simplesmente confessamos que apenas um é o Deus Eterno, Verdadeiro, Imenso, Imutável, Incompreensível, Onipotente e Inefável; Pai, Filho e Espírito Santo; três pessoas certamente, mas uma só essência, substância ou natureza absolutamente simples. O Pai não vem de ninguém, O Filho apenas do Pai, e o Espírito Santo de Um e de Outro, sem começo, sempre, e sem fim” 
E na constituição dogmática do Concílio Vaticano I em 1817,

"A Santa Igreja Católica Apostólica Romana crê e confessa que há um [só] Deus verdadeiro e vivo, Criador e Senhor do céu e da terra, onipotente, eterno, imenso, incompreensível, infinito em intelecto, vontade e toda a perfeição; o qual, sendo uma substância espiritual una e singular, inteiramente simples e incomunicável, deve ser declarado real e essencialmente distinto do mundo, sumamente feliz em si e por si mesmo, e está inefavelmente acima de tudo o que existe ou fora dele se possa conceber" 
Nesta doutrina, a essência de Deus, que é Ele mesmo, é idêntica aos atributos de Deus (aquilo que pode ser dito sobre Ele). No Cristianismo isso foi, pela primeira vez, exposto por Santo Agostinho, que recebe do neoplatonista, Plotino. A simplicidade divina absoluta também é exposta em detalhes nos escritos de Tomas de Aquino, o grande sintetizador do catolicismo e de Aristóteles. Mas, tanto São Dionísio o Aeropagita quanto São João de Damasco diz que a essência do Pai está além até mesmo da categoria do Ser, e, portanto, está além de qualquer afirmação lógica, até mesmo uma como "simplicidade". 

Os Ortodoxos concordam em certo sentido na simplicidade divina, que Deus não possui "partes", mas, com nossa ênfase na salvação como Theosis e Deus como Pessoas (ao invés de uma "substância"), faz mais sentido ensinar em termos de sua essência incompreensível e suas energias compreensíveis do que lidar com uma categoria filosófica como "simplicidade". 

Alguns católicos romanos apontam a formulação explícita da distinção essência-energias, nos escritos de São Gregório Palamas (século XIV), como evidência de que os Ortodoxos acreditam no Desenvolvimento da Doutrina. (São Gregório foi até mesmo denunciado como herege por alguns Católicos). Mas, estudantes cuidadosos dos Padres verão esta linguagem, utilizando os mesmos termos com os mesmos sentidos, nas obras de São Basílio o Grande, que escreveu quase mil anos antes de Gregório, em sua carta 234 "As energias são várias, e a essência simples, mas dizemos que conhecemos o nosso Deus através de Suas energias, mas não nos comprometemos a nos aproximar da Sua essência. Suas energias descem até nós, mas Sua essência permanece fora de nosso alcance." 

Esta distinção também está na Escritura, embora em outros termos. Pensar no conhecimento de Deus como em Suas energias, e não na Sua essência, ajuda a conciliar passagens como "Ninguém jamais viu a Deus" (João 1:18; 1 João 4:12) com a insistência de São Pedro de que podemos nos tornar "participantes da natureza divina" (2 Pedro 1: 4), que pela pureza de coração pode-se "ver Deus" (Mateus 5: 8).

A absoluta simplicidade divina também é também a base para a doutrina católica romana da visão beatífica, na qual o homem pode "contemplar" Deus no céu. Neste modelo a imagem tem uma certa distância entre o cristão e Deus. A teologia católica inclui a ideia de participação em Cristo, muito embora comumente não faça de forma explícita como a Theosis. A Theosis não está completamente ausente na teologia católico-romana, Aquino a inclui em suas obras, ainda assim, a Theosis não define a salvação para Roma na maneira como é para a Ortodoxia. 

O que está por trás dessa doutrina é um grande interesse em definir a natureza de Deus, ao invés de experienciar Deus como três Pessoas. A nossa experiência de Deus é enquanto Pessoas e não como uma natureza existente independente. A absoluta simplicidade divina pode prejudicar a teologia da pessoa, às vezes até confundir pessoa com natureza, o que sugere um Deus unitário e não trinitário. Deus não se revelou como uma natureza, mas como Pai, Filho e Espírito Santo

Devemos ter cuidado aqui, no entanto. Pois se trata de uma questão de ênfase e não de contradição absoluta. Se incluída como parte de um contexto completamente ortodoxo, a absoluta simplicidade divina pode ser compreendida de forma Ortodoxa mas, a Ortodoxia foca mais em Deus como Três Pessoas, - o Pai, o Filho e o Espírito Santo - ao invés da "substância", definida de qualquer maneira, porque foi assim que o próprio Deus Se revelou. A questão, para a Ortodoxia, não se trata de "o que é Deus?", mas "quem é Deus?". 

Graça Criada

Sem a tradição de Deus tanto como essência como energias, problemas surgem: como se referir sobre a presença de Deus no fiel e os efeitos causados por conta dessa presença? Esse problema é expresso na forma como a teologia católica fala sobre a graça como sendo tanto criada como incriada. É importante notar que embora existam dificuldades causadas por essa linguagem, este não é um ensino dogmático defendido por Roma, sendo assim pode ser trabalhado de forma mais fácil nas relações com os Ortodoxos. 

A teologia católica ensina que existe tanto a graça incriada, isto é, Deus, o próprio Deus, e a graça criada, muito embora esse termo não seja normalmente utilizado. A graça criada pode ser plural, "graças", e significam os efeitos criados por Deus. A graça criada reside na pessoa humana e se torna uma qualidade de sua natureza. Ela é "concedida" ou "conferida". Essa graça pode dar "mérito" ou uma "disposição" para o fiel. A graça incriada, portanto, pode ser pensada como uma causa ao passo que a graça criada é um efeito.

No sentido clássico dado pelos escolásticos, a graça criada é utilizada em um sentido "analógico" ao invés de um sentido absoluto. Isso significa que esses "méritos" dado ao homem são entendidos como graça somente de forma análoga em relação à ação de Deus. Portanto, de certa forma, a graça criada não é exatamente uma graça no sentido clássico, mas apenas uma forma abreviada teológica em relação ao estado subjetivo do fiel sob influência da graça de Deus. O ortodoxo não tem fortes objeções quanto a isso, porém nos aconselharíamos utilizar uma outra palavra ao invés de graça para o efeito analógico. A linguagem de graça criada é utilizada por certos Padres Ortodoxos. Na prática, no entanto, essa formulação teológica mais equilibrada é rapidamente arruinada devido a insistência do catolicismo no mérito, especialmente desde o Concílio de Trento (que reuniu-se de 1545 até 1563) até o século 20. De qualquer forma, a linguagem da graça criada ainda se encontra no catecismo atual:

"A graça santificante é um dom habitual, uma disposição estável e sobrenatural, que aperfeiçoa a alma, mesmo para a tornar capaz de viver com Deus e de agir por seu amor. Devemos distinguir a graça habitual, disposição permanente para viver e agir segundo o apelo divino, e as graças actuais, que designam as intervenções divinas, quer na origem da conversão, quer no decurso da obra de santificação." (Catecismo, 2000)
"A graça santificante é o dom gratuito que Deus nos faz da sua vida, infundida pelo Espírito Santo na alma para a curar do pecado e a santificar. A graça santificante torna-nos «agradáveis a Deus». Os carismas, graças especiais do Espírito Santo, estão ordenados à graça santificante e têm por finalidade o bem comum da Igreja. Deus também actua por meio de múltiplas graças actuais, distintas da graça habitual, permanente em nós." (Catecismo, 2023-24)

Esta abordagem difere da principal ênfase da doutrina Ortodoxa, onde a graça divina é quase sempre descrita como incriada e, portanto, representa a presença do próprio Deus no fiel - as energias de Deus. O que santifica o fiel, através da sinergia (Deus e o homem trabalhando juntos) são as energias de Deus. Não há nada na pessoa do fiel que santifica a si mesmo. Da mesma forma, se a graça que o crente experimenta é simplesmente um "efeito", "qualidade" ou "disposição", ele permanece separado de Deus. É por isso que seria melhor não se referir a atributos criados como "graça".

Embora a doutrina da graça criada tem o potencial de ser problemática, ela nunca foi dogmatizada por Roma nem foi conciliarmente condenada pela Ortodoxia. E nem todos católicos romanos aceitam a doutrina. Os franciscanos nunca aceitaram, e muitos jesuítas afirmam que Tomás de Aquino também não o ensinou. Na era moderna, Henri Cardinal de Lubac (um dos teólogos do Ressourcement, católicos do século XX que insistiam em um retorno às fontes patrísticas) diz que a graça criada e a forte ênfase que acompanha a divisão entre graça e a natureza conduzem ao secularismo. Por isso, trata-se de um assunto em debate, até mesmo para Roma.

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