As antinomias de Kant aparecem no tratado que foi o ponto de decisivo em sua carreira filosófica, e que inaugurou as preocupações que são características da filosofia moderna, sua obra Crítica da Razão Pura; elas fazem parte de sua "Dialética Transcendental". Existe, ele argumenta, quatro antinomias da razão pura: em cada caso, a antinomia é uma contradição, cujos termos podem ser demonstrados apenas pela razão, ou pela razão pura. Uma vez que podemos provar os dois lados de uma contradição, demonstramos, de fato, que a razão aqui falha: não podemos ir mais longe, já não há mais nada na base da qual a razão possa prosseguir. Suas quatro antinomias são estas:
1. O mundo, o cosmos, tem um começo no tempo e é limitado no espaço? Ou não tem limites em relação ao tempo ou ao espaço, pois é infinito? Kant mostra como é possível demonstrar-se ambos: tanto finito quanto infinito.
2. A matéria é composta de átomos que não podem ser ainda mais divididos, ou a matéria é infinitamente divisível? Mais uma vez, pode-se mostrar que ambas posições são verdadeiras.
3. A causalidade de acordo com as leis da natureza é a única causalidade que existe? Ou é possível que os humanos atuem livremente como causa de ações? Novamente, ambos podem ser demostrados.
4. Existe dentro do cosmos um ser absolutamente necessário, seja como parte dele ou como sua causa, ou não? Mais uma vez, ambas as posições podem ser demonstradas.
Para Kant, isso demonstra que a razão não pode estabelecer nada sólido sobre a natureza do cosmos, a natureza da matéria, a natureza da causalidade ou a existência de Deus. Todos os chamados problemas da metafísica - sobre Deus, a alma e o cosmos - estão além da razão humana. As antinomias constituem para Kant o que se poderia chamar de barreiras para a razão; elas impedem razão de ir mais longe na busca das questões centrais da metafísica. Para Kant, segue-se que não há metafísica especulativa; aquilo que a metafísica especulativa trata é relegado por Kant ao domínio do regulativo, que é derivado de pressuposições morais, mas não é, em nenhum sentido comum, uma questão de conhecimento. Devemos ser seres morais melhores se atuarmos como se Deus existisse, como se a alma fosse imortal, se acreditarmos que o bem será recompensado além dessa vida e o mal castigado. Mas nós não temos nenhuma razão para supor que essas coisas sejam verdadeiras.
Pe. Pavel Florensky vira isso de ponta-cabeça e, fazendo isso, desafia a noção de Kant da natureza da razão, e defende algo muito diferente. Na Divina Liturgia, pouco antes do credo ser cantado, quando confessamos a nossa fé no que a Igreja ensina, o sacerdote diz: "Amemo-nos uns aos outros para que em comunhão de espírito confessemos", e as pessoas respondem: "Pai, Filho e Espírito Santo, Trindade consubstancial e indivisível!" A terceira carta do livro The Pillar and Ground of the Truth, que é sobre Tri-unidade, Triëdinstvo, retoma esta resposta, suas primeiras palavras: "'Trindade consubstancial e indivisível, unidade tri-hipostática e eternamente coexistente' - esse é o único esquema que garante resolver a epoche, se a dúvida do ceticismo é resolvível". Somente a Trindade, a incompreensível Três-em-unidade, pode resolver a suspensão de julgamento, a epoche, dos antigos céticos; apenas o dogma aparentemente incompreensível da Trindade pode atravessar a dúvida que subjaz e debilita todo o pensamento humano.
Isso é explorado na Carta 6, onde é tratado a contradição, e é aqui que Florensky introduz o termo antinomia. Para Florensky, a antinomia é fundamental para o reconhecimento da verdade, pois, sem antinomias, sem contradição, simplesmente seríamos confrontados com provas racionalmente convincentes. Isso significaria que seríamos obrigados a aceitar a verdade, pois não se pode rejeitar arbitrariamente a conclusão de um argumento, se aceita-se suas premissas. Isso teria duas conseqüências, ambas inaceitáveis para Florensky: por um lado, a liberdade seria abolida - a verdade seria imposta, por assim dizer, em vez de ser aceita e abraçada; mas, por outro lado, a verdade seria transparente, óbvia, "clara e distinta", como disse Descartes; mas essa verdade não teria nenhuma relação com o mundo em que vivemos, que é fragmentado pelo pecado e a finitude, e, portanto - longe de ser transparente - é totalmente opaca. A verdade sem antinomia, afirma Florensky, é tirânica e também algo que não faz sentido no mundo em que vivemos.
De fato, Florensky continua, a dependência na racionalidade levaria a contradições irreconciliáveis entre os diferentes sistemas de crenças e, portanto, ao conflito entre aqueles que estão comprometidos com eles. Seríamos abandonados ao isolamento egoísta da racionalidade e sua oposição egoísta. De fato, isso é realmente o que experimentamos; esta é a natureza da humanidade decaída. Argumentos baseados na razão estabelecem os seres humanos uns contra os outros; isso conduz mais profundamente ao mundo decaído que constituem. A articulação da antinomia por Kant é ingênua: o uso da razão em que se baseia não irá parar nos obstáculos constituídos pelas antinomias de Kant; ele conduzirá de volta para onde se iniciou - formas conflitantes de entender o mundo e a humanidade, para um conflito que não se limita necessariamente ao argumento instruído, mas que pode levar diretamente a conflitos entre diferentes pessoas e diferentes sociedades. A herança filosófica de Kant parece-me sofrer disso.
A solução de Florensky é o abraço da antinomia, pois esse abraço nos levará a questionar as reivindicações da razão, suas reivindicações de coagir que aquilo que mantém é a verdade. Como ele expressa na carta 6:
Em outras palavras, a verdade é uma antinomia, e não pode deixar de ser tal. E a verdade não pode ser outra coisa, pois pode-se afirmar de antemão que o conhecimento da verdade exige uma vida espiritual e, portanto, uma ascese. Mas a ascese da racionalidade é a crença, ou seja, a renúncia de si mesmo. O ato de auto-renúncia à racionalidade é uma expressão de antinomia. De fato, apenas uma antinomia pode ser crida. Todo julgamento não antinômico é meramente aceito ou meramente rejeitado pela racionalidade, pois esse julgamento não ultrapassa o limite do isolamento egoísta da racionalidade. Se a verdade fosse não-antinômica, então a racionalidade, sempre girando em sua esfera apropriada, não possuiria um sustentáculo, não veria objetos extra-racionais e, portanto, não seria induzida a iniciar a ascese da crença. Esse sustentáculo é o dogma. Com o dogma começa nossa salvação, pois apenas o dogma, sendo antinômico, não restringe nossa liberdade e permite a crença voluntária ou a incredulidade perversa. Pois é impossível obrigar alguém a crer, assim como é impossível obrigar alguém a não crer. De acordo com Agostinho, "ninguém crê, exceto voluntariamente" (nemo credit nisi volens). (P 109)
Ao passo que, para Kant, as antinomias constituem barreiras para a razão, para Florensky elas fazem a razão tropeçar, por assim dizer, expõem sua deficiência e nos fazem perceber que a verdade não pode ser alcançada por nenhum método como o da racionalidade, mas somente pela vida espiritual, que exige a renúncia de si, a ascese, que explora o mundo aberto pelo dogma, que é o reino da liberdade, a liberdade do espírito que descobre a verdade através do abrir-se para Deus. Essa idéia de que a derrota da razão permite que a razão transcenda a si mesma e alcance o que realmente busca lembra a maneira pela qual Orígenes justifica a alegoria: as contradições na narrativa das Escrituras nos obrigam a olhar para além do significado literal e a alcançar o verdadeiro significado das Escrituras por uma sensibilidade ao símbolo e à alegoria - mas isso significa mover-se para um reino em que as certezas convencionais são abandonadas, e o caminho a seguir prossegue através do arrependimento, da renúncia de si mesmo, do progresso na vida espiritual, que não é uma questão de conquista, mas de entrega de si mesmo ao amor de Deus. Lembra ainda mais de Soloviev que, como vimos, vê o amor como um encontro com o outro que desloca o centro do eu e supera o egoísmo.
Outra maneira de colocar o ponto que Florensky está mostrando seria dizer que a racionalidade prossegue pelo sucesso: os argumentos apenas convencem se eles são bem-sucedidos. Mas tal sucesso não leva à verdade de forma fundamental, embora possa ajudar a obter algumas coisas certas, especialmente em relação ao mundo material. O caminho para a verdade se dá através da vida espiritual; é uma via que prossegue através do arrependimento e da renúncia de si. Pode-se dizer que, em contraste com a via da racionalidade, a via espiritual passa pelo fracasso, a derrota, que desprende o eu, o desloca e torna acessível o domínio da liberdade e do dogma.
A Verdade Antinômica
Várias consequências decorrem dessa compreensão da natureza da verdade e da maneira de abraçá-la. Primeiro, para Pe. Pavel, o perigo com a racionalidade ou racionalismo é que ele coloca o eu que raciocina no centro; implica uma visão egoísta ou egocêntrica do mundo, e isso implica a ilusão de que aqui na terra é possível transcender a fragmentação do mundo, causada pelo pecado e a finitude. Na realidade, isso é impossível: muitos egos produzem muitas visões conflitantes do mundo, que competem umas com as outras e prevalecem através do poder. Na realidade, a verdade e a apreensão exigem a auto-renúncia; há um ascetismo da verdade. Como Florensky exclama: "Contradição! É sempre um mistério da alma, um mistério de oração e amor. Quanto mais próximo se está de Deus, mais distintas são as contradições".
Em segundo lugar, o derrocada suprema da razão - pela razão - é a percepção de que a razão não é suficiente, que a prova não é suficiente. O que é necessário é o compromisso com a vida espiritual, com arrependimento e renúncia de si - experimentar. Como Florensky coloca no final da carta preliminar para o leitor em The Pillar and Ground of the Truth:
O sabor Ortodoxo, o gosto Ortodoxo, é sentido, mas não está sujeito ao cálculo aritmético. A Ortodoxia é mostrada, não provada [uma antecipação de Wittgenstein!]. É por isso que existe apenas uma maneira de entender a Ortodoxia: através da experiência Ortodoxa direta. . . Para tornar-se Ortodoxo, é necessário mergulhar de uma vez na própria raiz da Ortodoxia, para começar a viver de maneira Ortodoxa. Não há outro caminho.
Terceiro lugar, para Florensky a verdade é o dogma – não é algo que fabricamos ou construimos, mas algo a que nos rendemos, e não um breve momento de rendição, mas uma tentativa constante de render-se à verdade que nos abraça. Florensky teria simpatizado com a convicção de T. S. Eliot de que a santidade envolve uma "morte durante toda vida no amor".
O dogma dificilmente é entendido em nosso mundo moderno; suas conotações em uso são quase sempre negativas. Mas é o dogma, a aparente arbitrariedade de uma perspectiva meramente humana, que nos aponta para a verdade consagrada na antinomia como oferecendo a única possibilidade de significado. Deste modo, Florensky diz, na carta sobre Tri-unidade, em uma observação parafraseada por Vladimir Lossky, um teólogo supostamente tão distante da filosofia religiosa de Florensky:
Ou o Deus Triuno cristão ou morrer na insanidade. Tertium non datur. Preste atenção: eu não exagero. É exatamente assim que as coisas são. . . Entre a vida eterna dentro da Trindade e a segunda morte eterna, não há espaço, nem mesmo a largura de cabelo...
Em momentos como este, Florensky lembra Pascal, ou Anselmo. De fato, Florensky menciona a aposta de Pascal nesta carta (P 49) e cita o credo ut intelligam de Anselmo (P 47). Mas Florensky dá um passo além de Anselmo: em vez de um argumento ontológico para a existência de Deus, podemos considerá-lo como um argumento epistemológico para a existência da Trindade.
Andrew Louth, do livro "Modern Orthodox Thinkers: From the Philokalia to the Present"
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