terça-feira, 6 de junho de 2017

Meu êxodo do Catolicismo Romano por Mons. Paulo de Ballester (Parte 1/3)


MEU ÊXODO DO CATOLICISMO ROMANO 

Bispo de Nazianzus Paulo de Ballester


Neste pequeno livro, Paulo de Ballester descreve sua história de sua conversão ao Cristianismo Ortodoxo. Como um monge católico romano designado para reorganizar os catálogos das bibliotecas de seu mosteiro, ele tropeça em documentos medievais católicos que não se conciliam com seus estudos dos Evangelhos e dos primeiros Padres da Igreja. Abandonado por seu Pai Espiritual e persistindo em meio a suspeitas e ameaças da hierarquia da igreja, Paulo investiga profundamente as questões, revelando muitas camadas de inovações católicas as quais deram origem a versão papista do cristianismo, muito diferente do Cristianismo dos primeiros séculos. Sob essas camadas, ele encontra a Igreja Ortodoxa que, mesmo sem saber, sempre esteve presente em seu coração. Posteriormente, já não mais isolado, Paulo é recebido em casa pelos irmãos ortodoxos.

Capítulo 1: As primeiras dúvidas
Capítulo 2: Conselho Espiritual
Capítulo 3: A monarquia do papa
Capítulo 4: "Tu és Pedro..."
Capítulo 5: O início da disputa
Capítulo 6: "Saia dela, povo meu..."
Capítulo 7: Rumo à Luz
Capítulo 8: Meu Encontro com a Verdade





CAPÍTULO 1 
AS PRIMEIRAS DÚVIDAS

A minha longa e árdua jornada de conversão à Ortodoxia começou um dia enquanto estava reorganizando os catálogos das bibliotecas do mosteiro católico ao qual pertencia. Este mosteiro, um dos mais belos do nordeste de Espanha, pertencia à ordem monástica de São Francisco de Assis. Foi construído na costa do Mediterrâneo, poucas milhas de minha cidade natal, Barcelona.

Naquela época, os abades do mosteiro tinham me atribuído a tarefa de atualizar os catálogos de livros, as transcrições e os autores de nossa volumosa biblioteca. Esta tarefa seria crucial para avaliar as perdas incalculáveis da biblioteca sofrida durante a última guerra civil espanhola, quando o mosteiro foi queimado e parcialmente destruído pelos comunistas.

 Numa dessas tardes, imerso no trabalho sem fim, escondido atrás de montanhas de livros antigos e manuscritos queimados, fiz uma descoberta que me intrigou muito. Em um envelope contendo documentos relativos à Santa Inquisição, de cerca de 1647, eu encontrei uma cópia de um decreto escrito em latim, proclamado pelo Papa Inocêncio X. Por este decreto, qualquer cristão que se atrevesse a acreditar, seguir, ou professar a doutrina a respeito da autêntica autoridade apostólica de Paulo (1), seria anátema (condenado eternamente) como um herege.Além disso, este documento paradoxal obrigava todos fiéis, sob ameaça de castigo post-mortem, a aceitar que o Apóstolo Paulo não havia exercido sua obra apostólica livremente ou de forma independente. Em outras palavras, a partir do momento em que ele se converteu ao cristianismo até o momento de sua morte, Paulo estava sob a constante autoridade monárquica do Apóstolo Pedro, o primeiro entre os papas e líderes da Igreja. Ademais, o decreto afirmava que a autoridade absoluta de Pedro era exclusiva e só herdada pelos papas e subsequentes bispos de Roma através da sucessão direta. 

Confesso que se eu tivesse encontrado na biblioteca do mosteiro um livro proibido pelo Index (2), haveria sido menos surpreendente. Naturalmente, não eu era ignorante das práticas exageradas e maquinações relativas às questões dogmáticas, que os tribunais da Santa Inquisição haviam utilizado durante a Idade Média e até mesmo em anos posteriores. Este foi um período em que a hierarquia católica romana iria tão longe a ponto de defender justificativas teológicas para as ambições imperialistas do papado. Para ter sucesso nesta tarefa, Roma tinha dado ordens explícitas aos seus teólogos e pregadores para demonstrar, com todos os meios possíveis, que os papas tinham recebido de Deus a autoridade para governar como Césares em toda a igreja ecumênica, dada a suas posições como herdeiros do primado do Apóstolo Pedro.

De tal forma, foi organizada uma verdadeira cruzada no ocidente para desprestigiar o ensino ortodoxo a respeito da honorável primazia do Apóstolo Pedro. O propósito era duplo. Por um lado, desenvolveria uma base teológica para o cesarismo do papa, e por outro, diminuiria a importância da posição patriarcal do oriente em termos de reivindicação monárquica com respeito aos seus colegas romanos. Uma das táticas principais para atender essa abordagem foi a circulação de um grande número de publicações adulteradas ou má interpretações dos Santos Padres.  

Estas publicações enganosas, apoiadas pela má interpretação de vários versículos da Bíblia (3), tentaram obter o notório Primatus Petri a partir de então como um privilégio especial legado apenas ao Apóstolo Pedro e seus supostos sucessores posteriores, os pontífices romanos. De acordo com este privilégio, os papas de Roma tinham o direito de exercer a autoridade monárquica e autoridade quase absoluta sobre a igreja ecumênica, uma ideia contra a qual a Igreja Ortodoxa se rebelou. Assim, um excesso de antologias e catenae (4) de versos patrísticos relativos a primazia papal, a maioria absolutamente falsas e altamente distorcidas com base mínima de conteúdo autêntico, foram publicadas pelas impressoras das principais ordens monásticas do Ocidente e foram distribuídas em grandes quantidades em toda Europa Mediterrânea (5).


No entanto, se os fiéis compreendessem que nem o Apóstolo Paulo nem os outros apóstolos estavam sob a autoridade absoluta do chamado primer papa, Simão Pedro, o edifício inteiro do ensinamento, em grande medida distorcido, do papismo, entraria em colapso sobre si. Para evitar isso, os bispos de Roma nunca deixaram de aterrorizar, condenar e anatemizar com castigos pós mortem todos aqueles que se atreviam a expressar a menor dúvida sobre este assunto. Sua causa foi auxiliada pelos tribunais da Santa Inquisição que, sob o lema "o fim justifica os meios" (6), foi justificado a utilização da força bruta, incluindo a tortura pelo fogo, imersão em óleo fervente, e o esfolamento vivo dos torturados a fim de subjugar os cristãos mais persistentes e impenitentes, em nome da Santíssima Trindade e para o bem geral da Igreja. 


Entretanto, eu nunca esperaria que minha igreja pudesse atingir tal nível de fanatismo, ousar proibir e condenar o ensinamento das Sagradas Escrituras que haviam sido compiladas com clareza absoluta e ensinadas pelos próprios apóstolos, com um documento como aquele que tinha em mãos. Aquele documento havia transgredido todos os limites, especialmente a convicção dos fiéis que seguiram o ensinamento do Apóstolo Paulo, ascendendo à condenação absurda do ensino ortodoxo do apóstolo, que declarava, em termos inequívocos, que não é em absoluto inferior aos mais eminentes apóstolos (7). Neste contexto, o decreto do Papa Inocêncio X parecia tão improvável que decidi examinar a possibilidade de um erro de tipográfico ou uma distorção acidental do texto autêntico, algo não tão incomum na época de sua publicação (8). 


Em qualquer caso, se era autêntico, falso ou simplesmente distorcido, eu pensei que este texto era uma posse bastante curiosa na nossa biblioteca, necessitando de uma atenção séria e de maior investigação. Pouco depois, no entanto, o meu interesse inicial se transformou em uma grande confusão. Depois de fazer algumas pesquisas na biblioteca central de Barcelona, ​​eu descobri que não só este era um documento inequivocamente autêntico, mas que seus pontos de vista foram bastante comuns naquela época. Na verdade, duas das decisões da Santa Inquisição, a 1327 (9) e de 1351 (10), e a primeira de 1647, o Papa João XXII e o Papa Clemente VI anatemizaram e condenaram os homens e os ensinamentos de quem se atrevesse a refutar o argumento de que o apóstolo Paulo obedecia às ordens do apóstolo Pedro, o primeiro dos papas. Estes mandatos, que ninguém se atrevia a questionar, presume-se que estavam sob a autoridade absoluta do Apóstolo Pedro. Outro caso era o anátema que o Papa Martinho V lançou a John Huss no Sínodo de Constança. Mais tarde, os Papas Pio IX, no Concílio Vaticano I (12), Pio X em 1907, e Benedito XIV em 1920 repetiram a mesma condenação nos termos mais oficiais e inequívocos. 


Uma vez que a possibilidade de falsificação comprovada era improvável, encontrei-me assombrado por uma profunda crise de consciência. Eu não podia aceitar que o Apóstolo Paulo estava subordinado à autoridade humanaPara mim, o ministério independente e sem oposição de Paulo entre as nações, similar ao ministério do Apóstolo Pedro entre os hebreus, é um fato irrefutável da maior importância (14).


O Apóstolo Paulo, "não dos homens, nem por mediação de homem algum, mas por Cristo, e por Deus Pai" (15), pensou Simão Pedro como segundo depois de São Tiago, entre os que eram considerados pilares na Igreja de Cristo (16). Em seguida, acrescenta que as posições adotadas nestes assuntos o eram lhe indiferentes, uma vez que são simplesmente suas preferências pessoais que Deus não toma a sério (17). Em qualquer caso, o Apóstolo Paulo declarou claramente que, em relação aqueles que foram os apóstolos, ele não eram em nada inferior a qualquer um deles (18).  


Para mim, isso era alto e claroespecialmente tendo em conta as obras exegéticas dos Santos Padres que não deixam espaço para a menor dúvida sobre este assunto. São João Crisóstomo diz o seguinte sobre o Apóstolo Paulo:


"Paulo declara a sua igualdade com o resto dos apóstolos e deseja ser comparado não só com os outros, mas com o primeiro, para mostrar que todos eles tinham a mesma autoridade(19).

Além disso, o Consensum Patrum (o consenso dos Padres) é que "todos os apóstolos eram exatamente iguais a Pedro, ou seja, dotados com a mesma honra e autoridade" (20).



Teria sido impossível que Paulo estivesse sob a tutela de uma autoridade superior de outro apóstolo, já que o poder do apóstolo é "o poder supremo e o ápice de todas as autoridades(21).



São Cipriano partilha esta posição da seguinte forma:


"Eles eram todos igualmente pastores, embora o rebanho era um só. E esse [o rebanho] era guiado pelos apóstolos, já que eles se ajustavam a mesma ideia" (22).



Santo Ambrósio de Milão também acrescenta:



"Se o Apóstolo Pedro tinha alguma preferência aos outros apóstolos, tratava-se de uma preferência de confissão e fé, e não de honra e grau" (23). 

Justificadamente, então, este mesmo santo escreveu mais tarde sobre os papas: "Não podem ter a herança de Pedro, aqueles que não têm a mesma fé com ele" (24). Embora este problema era mais transparente que cristal, o dogma católico romano, sendo diametralmente oposto, representava um dilema terrível para mim: devo conscientemente escolher e cumprir o Evangelho e a tradição dos Padres, ou o ensino arbitrário da Igreja Católica romana? 

Para piorar a situação, de acordo com a soteriologia (25) (doutrina da salvação) Católica Romana, um cristão deve crer que a Igreja é uma monarquia (26) e o rei é o Papa (27). Assim, o sínodo do Vaticano, combinando todas as convicções sobre este assunto, declara oficialmente:


"Se alguém diz ... que Pedro, o primeiro bispo e papa de Roma, não foi coroado como príncipe apóstolos por Cristo e estabelecido como a cabeça visível da igreja militante ... que seja anátema." (28)



Tendo em conta estas duas posições doutrinárias diametralmente opostas, como eu poderia comprometer minha consciência? 


CAPÍTULO 2
CONSELHO ESPIRITUAL

À deriva, e, no meio desta tempestade espiritual incessante, fui ao meu confessor e ingenuamente expliquei meu dilema e as minhas preocupações. Meu confessor, um dos hieromonges mais educados e experientes do mosteiro, percebeu imediatamente que se tratava do mais grave e complexo assunto. Entregou-se ao silêncio por alguns momentos enquanto procurava em vão por uma solução satisfatória para o meu problema. Finalmente, ele falou, mas deu uma guinada à pergunta, o que realmente me surpreendeu.

"A Sagrada Escritura e os Santos Padres te inquietaram", disse de maneira despreocupada. "Coloca os dois de lado e te submeta com estrita adesão ao ensinamento infalível de nossa Igreja, sem entrar em muitas perguntas e exames. Não permita que algumas criaturas de Deus, qualquer que sejam, escandalizem a sua fé em Sua Igreja." 

Esta resposta totalmente inesperada, conseguiu aumentar minha confusão espiritual. Sempre acreditei que a Palavra de Deus era precisamente uma das coisas que não se pode "colocar de lado". Segundo a minha percepção, a Escritura foi o fator determinante da nossa ortodoxia (como católicos romanos) (29) e não o contrário. Mais precisamente, a Escritura diz: "Examinem-se para ver se vocês estão na fé; provem-se a si mesmos." (2 Coríntios 135) (30).

Não necessito ouvir "suas opiniões" ou "minha opinião", diz Santo Agostinho, mas "o que disse o Senhor". Sem lugar para dúvidas estão as Escrituras do Senhor, cuja a autoridade deve-se tanto obedecer quanto submeter-se. Assim, trataremos de encontrar a verdadeira Igreja nas Escrituras e baseamos nossa discussão somente nestas. (31)


Sem me dar a menor oportunidade de responder, meu confessor acrescentou:



Em vez disso, vou dar-lhe uma lista de nossos próprios autores, cujas obras irão recuperar a sua tranquilidade espiritual. Através destes livros, você notará a clareza do ensino da nossa Igreja, sem qualquer dificuldade.



Em seguida, ele me perguntou se eu tinha algo "mais importante" para discutir e terminou a conversa.


Alguns dias mais tarde, meu confessor deixou o mosteiro para pregar em outras igrejas e comunidades monásticas de nossa OrdemQuando me forneceu a lista dos livros que havia mencionado, ele me pediu que prometesse que iria corresponder com ele regularmente para mantê-lo informado durante sua viagem sobre meu "mal-estar espiritual".

Embora seus argumentos e explicações não me convenceram em absoluto, fui adiante e consegui todos os livros que me havia recomendado com a decisão de estudá-los com a maior objetividade e seriedade possível. A maioria destes livros eram textos teológicos e manuais sobre as decisões papais e concílios ecumênicos papistas. Atirei-me a estudar com interesse genuíno e sem necessidade de utilizar medidas de precauções, com exceção da Sagrada Escritura, que mantive aberta diante de mim como " uma luz para os meus passos e uma lâmpada para os meus caminhos” (Salmo 118: 105) ( 32). 

Não estava disposto, de modo algum, em permitir que minha igreja ou meu confessor me convertesse em alguém como os judeus, a quem o Senhor censurou devido a ignorância das Escrituras (33). Ao contrário, estava decidido a permanecer fiel, seguindo o exemplo dos fiéis (de Berea) que, depois que "receberam a palavra com toda prontidão" (Atos 17:11) (34), foram elogiados pelo Apóstolo Paulo porque "examinavam a cada dia as Escrituras para ver se estas coisas eram assim." (Atos 17:11) (35). Ao fazer isso foram salvaguardados da decepção causada pela "filosofia e vãs sutilezas, com base na tradição dos homens sobre os elementos deste mundo e não segundo Cristo" (Colossenses 2: 8) (36). 

Uma vez que continuei lendo e avançando no estudo dos textos recomendados, comecei a suspeitar, apenas para me convencer gradualmente, de que eu era quase inteiramente ignorante sobre a verdadeira natureza e a constituição orgânica de minha Igreja.  

Tendo sido introduzido ao cristianismo e batizado, depois de terminar minha educação secundária, fiz vários cursos de filosofia. Ao mesmo tempo, no entanto, me encontrava no estado inicial de compreensão sobre a teologia católica romana, um campo de estudo quase novo e estranho para mim. Desde então, o cristianismo e a Igreja romana representaram para mim duas ideias que expressavam uma só realidade. Protegido na quietude e serenidade de minha vida monástica, estive somente preocupado pelo aspecto místico do cristianismo. Imerso em meus estudos filosóficos, não tive oportunidade de investigar com profundidade as razões por trás da estrutura orgânica de minha Igreja.  

Lendo os textos oficiais que meu padre confessor havia sutilmente selecionado para meu benefício, eu gradualmente compreendi a verdadeira natureza do paradoxo da monarquia político-religiosa que constitui a Igreja romana contemporânea. Neste ponto, acho que seria oportuno e informativo dar uma olhada nestas características.  


CAPÍTULO 3

  A MONARQUIA DO PAPA



De acordo com a doutrina católica romana, a igreja "não é nada mais do que uma monarquia absoluta" (37), cujo déspota absoluto é o papa, que funciona como tal em todas as suas expressões (38).



Nesta monarquia do bispo de Roma "todo o poder e estabilidade da igreja é ancorado" (39) "e cuja existência, por outro lado, não seria possível" (40). O próprio cristianismo "é ancorado e totalmente baseado na doutrina do papismo(41), e também "a doutrina do papado é o elemento mais significativo do cristianismo" (42); "sua síntese e essência" (43). 

Autoridade monárquica do papa, como líder supremo e chefe da igreja, a pedra angular da Igreja, mestre infalível da fé, representante de Deus na terra, pastor de pastores e hierarca supremo, está absolutamente vinculada, podendo ser executada em qualquer tempo e tem força ecumênica. Esta autoridade se estende por direito divino (44) em todos os cristãos batizados a nível mundial (45), simultaneamente e individualmente. Esta autoridade ditatorial pode ser aplicada diretamente e em qualquer momento em qualquer cristão, seja ele leigo ou clérigo, bispo, arcebispo, cardeal ou patriarca, e até mesmo em qualquer igreja, independentemente da denominação ou língua (46), porque o papa é o bispo supremo de qualquer episcopado do mundo (47).

Aqueles que se recusam a reconhecer esta autoridade ou não obedecer cegamente (48) são "cismáticos, hereges ímpios e sacrílegos; consequentemente, suas almas já estão predestinadas a serem lançadas nas trevas exteriores, porque é uma condição indispensável para a salvação de suas almas crer na doutrina do papismo dada por Deus e se submeter a seus representantes "(49). Neste sentido, o papa parece encarnar aquele imaginário líder pré-cristão cuja iminente vinda foi crida por Cícero e que todos precisam aceitar para ser salvo (50). 

Com base nesta doutrina Católica Romana, o Papa Gregório VII disse, "uma vez que o papa tem o direito de intervir e julgar todas as questões espirituais dos cristãos e cada uma delas independentemente, está mais que autorizado para intervir em assuntos mundanos e terrenos"(51). Por esta razão, embora possa limitar a sua autoridade a imposição de penas espirituais e a negação da salvação para aqueles que se recusam a submeter-se, ele "possui o direito de obrigar os fiéis a acreditar nele" (52). É por esta razão que "a igreja possui duas espadas: uma espiritual simbólica e uma com a autoridade mundana. A primeira espada está nas mãos dos sacerdotes e a outra está nas mãos de reis e soldados. No entanto, incluso a segunda espada está sob o discernimento e vontade dos sacerdotes "(53). 

O papa, afirmando que é o representante e vigário na terra Daquele cujo "reino não é deste mundo" (54), Daquele que proibiu seus apóstolos em exercer até mesmo a menor predominância e hegemonia sobre os fieis (55), entroniza a si mesmo como o rei terreno, continuando, assim, em sua pessoa, a tradição cesar-imperialista de Roma, a cidade eterna e rainha do mundo (56). Ao longo da história, o papa se tornou o mestre de grandes nações e declarou as guerras mais sangrentas contra outros reis cristãos em sua busca de conquistar novas terras ou simplesmente para satisfazer sua insaciável sede de dominação e poder.

Também possuía milhares de escravos e muitas vezes desempenhou um papel central e decisivo nas políticas internacionais. É dever dos soberanos e governantes cristãos submeterem-se ao rei ordenado por Deus, ao seu reino e trono eclesiástico-político, "aquele que foi estabelecido como o esplendor e âncora dos reinos do mundo" (57). Hoje, o reino terreno do papa se limita ao Vaticano, que é um estado autônomo com representação política em todas as nações da terra e com sua própria polícia, militares, armas, prisões, dinheiro e comércio.  

Como concretização desta plena autoridade, o papa tem outro privilégio exorbitante, totalmente único no mundo: afirma ser "infalível" por direito divino de acordo com a definição doutrinária do Concílio Vaticano de 1870 (58). Tal privilégio monstruoso e inimaginável não aconteceu até mesmo nos sonhos e na imaginação dos maiores bárbaros e nas religiões dos idólatras desviados. No entanto, como resultado desta doutrina, "toda a humanidade deve dirigir-se a ele com as mesmas palavras que foram dirigidas uma vez ao Salvador": "Tu tens palavras de vida eterna"(59). 

Assim, a presença do Espírito Santo para conduzir até a "verdade absoluta" (60) é desnecessária, igualmente as Sagradas Escrituras e a santa Tradição, porque agora há um "deus" na terra com poderes para invalidar, ou incluso declarar como enganosos, os ensinamentos de Deus do céu. Com base nesta aclamação de infalibilidade, o papa se torna a regra absoluta da fé (62). Podendo promulgar até mesmo sem o consentimento da Igreja, tantos dogmas quanto desejar, aos quais os fiéis devem aderir de forma estrita e obedecer cegamente, se quiserem evitar os castigos do inferno após a morte (63).

"Depende somente da vontade e do prazer da Sua Santidade," escreveu o cardeal Baronius, "e o que ele deseja deve ser crido como 'santo e sagrado por toda a Igreja' (64), e suas epístolas pastorais devem ser consideradas, cridas e obedecidas como 'escrituras canônicas'" (65).

Uma consequência natural da doutrina da infalibilidade  é que os ensinos papais devem ser observados com uma obediência cega. É precisamente isso o que Cardeal Bellarmine, um santo da Igreja Romana, apresentou de forma muito clara em sua notória Teologia:

"Se um dia o papa cair no erro de impor pecados enquanto proibir virtudes, a Igreja estaria obrigada a crer que os pecados tem boas consequências e, as virtudes, maus resultados. Alternativamente,  este estaria cometendo um pecado contra a sua consciência" (66).

O Cardeal Zabarella é ainda mais absurdo nesta questão:

"Se Deus e o papa se reunissem em um sínodo, o papa poderia fazer (ali) quase tudo o que Deus poderia fazer, [...] e o papa faria qualquer coisa que desejasse, incluindo violações; portanto, ele é algo mais, e maior que Deus" (67). 

Quando completei o estudo desses livros, me vi como um estranho no seio da Igreja. Tornou-se evidente para mim que sua síntese orgânica não tinha qualquer relação com a Igreja fundada por Cristo, que havia sido organizada pelos apóstolos e seus sucessores, e aquela que os Santos Padres haviam descrito e esclarecido. Esta organização papal somente poderia ser identificada com a Igreja de Cristo se esta não estivesse constituída, obviamente, na Rocha que é o próprio Cristo, mas nas areias movediças de alguns supostos privilégios do papa, privilégios que supostamente foram dados a ele como herança de Simão Pedro, que certamente nunca os teve ou sequer os imaginou.

"Nós", diz Santo Agostinho, um dos maiores Padres da Igreja, "que somos cristãos por nossas palavras e ações, não cremos em Pedro, mas nAquele a quem próprio Pedro cria [...] Ele, Cristo, o Mestre de Pedro, que lhe catequizou no caminho que conduz à vida eterna, Ele é nosso único Mestre"(68). 

De fato, como seria possível aceitar a infalibilidade dos papas, que usurparam um título promovendo-se como herdeiros exclusivos do Apóstolo Pedro, aquele que, mais que o resto dos apóstolos, foi apontado pelo Senhor, em várias ocasiões, como aquele que não sabia o que dizia? (69) Onde estava a infalibilidade de Pedro quando ele foi repreendido pelo apóstolo Paulo, por estar claramente em erro (70), já que "não andava na retidão de acordo com a verdade do Evangelho" (71)? São estes que se chamam "sucessores oficiais" do trono papal e do Bispo de Roma, e ao mesmo tempo infalíveis? De fato, eles sabiam muito bem que abrigavam bastantes nomes escandalosos em sua linhagem, como o Papa Marcellus, apóstata notório e idólatra, que, como todos sabem, ofereceu um sacrifício no templo de Afrodite, diante de seu altar (72). Foi o papa Júlio, aquele que foi excomungado como herege pelo Sínodo de Sardica (73), infalível? Foi o papa Libério, aquele que foi seguidor dos delírios de Arius e condenado por Santo Atanásio, o grande campeão da Ortodoxia, infalível (74)? Foi o papa Félix II, que, de acordo com São Atanásio, foi eleito papa por três eunucos e ordenado por três espiões do imperador, infalível? Tal homem teve uma candidatura digna de seu corpo de eleitores, dada suas crenças cismáticas conhecidas, e sua conduta global, que se assemelhava mais a de um anticristo (75). Foi o papa Honório, juntando-se a heresia do monotelismo, infalível (76)? E Gelasios, que ocupava posições cismáticas sobre a doutrina da divina eucaristia?

Foi Sixto V, tendo feito circular uma edição das Sagradas Escrituras que ele mesmo "corrigiu", baseada na autoridade e plenitude de seu poder apostólico, infalível? Esta edição estava tão distorcida por todos tipos de delírios que logo foi descartada pois era muito escandalosa (77). Foi o papa Urbano, que condenou as teorias de Galileu de que a terra girava em torno do sol, infalível (78)? Foi o papa Zarcarias, que proibiu todos a acreditar que a terra girava ameaçando-os com o anátema, infalível (79)? O que pode ser dito sobre o papa Pio II, que teve a incrível sinceridade de enviar um lembrete amigável ao rei Carlos VII da França aconselhando-o a não acreditar nas palavras dos papas, porque na maioria das vezes eles falavam sobre as paixões ou sobre seus próprios interesses (80)? Foi o papa Pio IV, que desafiou em revogar o sétimo cânon do Concílio Ecumênico de Éfeso (81) e que violou o juramento que fez no rito de entronização, infalível (82)?

São Cipriano diz que é a Igreja, e não o bispo de Roma, que constitui a "água pura e vivificante que não pode ser corrompida ou adulterada, porque a primavera de qual flui é, em si mesma, clara, pura e cristalina" (83).

Nosso Senhor Jesus Cristo prometeu sua ajuda permanente até o fim dos tempos a toda Igreja, e não exclusivamente aos papas (84). Para o benefício de toda Igreja e não para Pedro e seus sucessores, Ele prometeu pedir ao Pai o "Espírito da verdade" (85), o verdadeiro Espírito que ensina "toda a verdade" (86) e tudo o que o Senhor ensinou (87). Por esta razão, o Apóstolo Paulo, chama a Igreja, e não a Pedro, "o pilar e o fundamento da verdade" (88). Além disso, São Irineu ensina que devemos buscar a verdade de Cristo na Igreja e em nenhuma outra parte porque "a encontramos pura, completa e não adulterada, com extrema certeza." (89) O Senhor falou não somente a Simão Pedro, mas também para seus apóstolos e discípulos, dizendo: "Aquele que os escuta, a Mim escuta" (9). Ademais, através da história da Igreja antiga, desde sua origem até o grande cisma, não há nenhum outro precedente de grande desacordo ou matéria transcendental de fé que tenha sido resolvido pelo bispo de Roma. Na minha opinião, isso é bastante inexplicável, se se supor que os papas eram verdadeiramente reconhecidos como verdadeiros, absolutos, e sobre tudo, líderes infalíveis da Igreja ecumênica.

É sabido que nenhuma das grandes heresias foram derrotadas por um papa, mas sim por sínodos, ou através dos Padres da Igreja ou algum santo teólogo. Por exemplo, o arianismo foi condenado pelo concílio de Nicéia e não pelo papa, que estava infectado por esta heresia. O concílio de Éfeso condenou o nestorianismo; São Efpifanio, os gnósticos; o bem-aventurado Agostinho refutou o pelagianismo, etc.

Além disso, os bispos de Roma jamais serviram como árbitros em nenhum desses grandes assuntos eclesiásticos; ao contrário, muitas vezes eles foram acusados e perseguidos em matéria de fé por outros bispos, patriarcas e sínodos. Assim, o concílio de Arelat resolveu a disputa entre o bispo de Roma e os bispos da África em relação à questão do re-batismo (91). Da mesma forma, foi a Igreja da África, que escreveu uma grande advertência aos bispos de Roma e Alexandria para que acabassem com a inimizade e buscassem a paz (92). O patriarca de Alexandria, em união com os bispos do oriente, excomungou o papa Júlio no concílio de Sardica (93). O papa Honório foi condenado e anatematizado pelo Sexto Concílio Ecumênico (94), etc.

Tendo adquirido uma convicção sobre a exatidão de toda essa evidência, convicção que nunca me abandonou desde então, escrevi a seguinte carta ao meu padre confessor, no primeiro momento em que pude encontrar em contato com ele depois de nossa separação.

"Eu estudei os livros que bondosamente sua rev. me sugeriu.  No entanto, minha consciência não me permite violar os mandamentos de Deus e colocar minha confiança nos ensinamentos humanos (95) que carecem do mínimo fundamento bíblico. Algo semelhante acontece com o delírio absurdo que surgiu da doutrina irracional da infalibilidade. Reconhecemos a verdadeira igreja quando está baseada em critérios bíblicos, como aqueles indicados pelo bem-aventurado Agostinho de Hipona, e não no verbalismo apotegmático, nem nos sínodos episcopais, nem nas cartas de discórdia, quaisquer que sejam, nem nos sinais enganadores e nem nas maravilhas. Baseamos nosso conhecimento unicamente nas coisas que estão escritas nos profetas, nos salmos, nas próprias palavras do Pastor, nos trabalhos e nos ensinamentos dos evangelistas e, por fim, na autoridade canônica das Sagradas Escrituras (96). Além disso, o mesmo santo padre (bem-aventurado Agostinho) escreve contra os donatistas:

"Não tenho desejo de ouvir sua opinião ou minha opinião, mas aquilo que 'disse o Senhor'. Sem dúvidas, existem Escrituras do Senhor, cuja autoridade estamos todos de acordo, obedecemos e nos submetemos. Tratemos, então, de encontrar a Igreja nestas, e discutamos nossas diferenças com base apenas nestas Escrituras" (97).

E assim, com as seguintes palavras, concluí minha carta ao meu confessor:

"Nunca me distanciei do princípio que fornece a verdadeira regra cristã para a prova de fé e de toda doutrina, que é a autoridade da palavra de Deus e a Tradição de da Igreja (98). Suas doutrinas são incompatíveis com esta regra".

Ele não demorou para responder:

"Não aderiste ao conselho e a orientação que te dei, e permitistes que a Bíblia continuasse a perigosa influência em sua alma. Os livros sagrados são como o fogo, que, quando iluminam, queimam e escurecem... e por esta razão os papas indicaram corretamente que "é um engano escandaloso crer que os cristãos podem ler as Sagradas Escrituras" (99), quando nossos teólogos confirmam que "esta é uma nuvem turva, um muro de proteção que muitas vezes se torna um refúgio mesmo para ateus" (100). De acordo com os nossos líderes infalíveis, "a crença na clareza das Escrituras é um dogma heterodoxo" (101). No que diz respeito a tradição, não deveria ser necessário lembrar que "em matéria de fé somos antes de tudo obrigado a seguir o papa, ainda mais que mil Agostinhos, Jerónimos, Gregorios, Crisóstomos, etc." (102). E, quando temos a interpretação dada por Roma sobre qualquer texto da Bíblia, temos de acreditar que possuímos a verdade da palavra de Deus, independentemente se esta interpretação pode parecer absurda ou contraditória sobre o verdadeiro significado do texto"(103).

No entanto, sua posição reforçou ainda mais minha convicção pessoal. Apesar de todas as suas teorias, apesar de todos os dogmas da Igreja Católica Romana, apesar, até mesmo do próprio papa, nunca deixaria de lado a palavra de Deus, que é absolutamente e indiscutivelmente perfeita e lúcida para aqueles que encontraram o verdadeiro conhecimento (104).  Esta é a palavra de luz (105), que pode tornar-se turva apenas para aqueles que estão no caminho da perdição e cujo espírito está cego pelo deus deste século (106). A Sagrada Escritura é a palavra da vida (107), da graça (108), da verdade (109), e da salvação (110) e eu não quis descartá-la e encontrar-me culpado na hora do julgamento (111).

Estava ciente de que a fé nas Escrituras era a fé mais precisa e a mais absoluta fé católica, uma vez que, de acordo com Santo Atanásio (114), esta era suficiente para a profissão da verdade. Por esta razão, São João Crisóstomo destaca o fato de que "quando temos a Escritura, não faz sentido buscar outros mestres fora dela" (115). "Nela", escreve Santo Isidoro de Pelusium, "está tudo o que precisamos saber" (116) e "tudo o que estamos interessado em saber" (117). São Basílio o Grande ainda acrescenta que "é uma imperfeição de nossa fé e orgulho rejeitar algo que se encontra na Escritura ou aceitar algo que não está escrito lá" (118).

Com base nisso, os Santos Padres chegaram à conclusão óbvia de que "devemos crer somente naquilo que está escrito nos livros sagrados, e não devemos procurar (119), ou até mesmo usar (120), o que não está escrito neles" . Contradizendo e opondo-se as Escrituras, minha igreja perdeu toda a validade em meus olhos, desde que converteu-se e chegou a ser como os hereges que, de acordo com Santo Irineu, "uma vez que foram condenados pela palavra de Deus, voltaram-se contra ela para repreendê-la "(121).

Mais ainda, São João Crisóstomo escreve:

"Aquele que obedece as Escrituras é um verdadeiro cristão. Aquele que as combate se encontra fora das regras da fé. E se este vem a dizer que as Escrituras ensinam naquilo que ele crê, então, diga-me, tem ele algum pensamento em si mesmo ou habilidade para argumentar?" (122)

Este foi o último contato que tive com meu pai espiritual. Considerei uma causa perdida continuar a nossa correspondência, então não mais lhe escrevi. Ele não queria ouvir sobre mim depois disso, preferindo distanciar-se e não se envolver em meu exame desagradável. Ele estava preocupado que isso pudesse afetar as suas grandes oportunidades de promoção ao episcopado "pela graça da Sé Apostólica" (Apostolicae Sedis Gratia), que tinha servido tão fielmente.

Apesar disso, eu não parei ali. Comecei a afastar-me da divergência de minha igreja, seguindo um curso de um novo caminho, sentindo-me incapaz de parar até alcançar uma posição positiva que fosse, ao menos, teoricamente mais sana. O drama que experimentei durante esses dias foi tanto que, embora me sentisse cada vez mais distanciado do papismo, eu não sentia mais nenhuma inclinação para aproximar-me de qualquer outra realidade eclesial.

A Ortodoxia, protestantismo, o anglicanismo eram, na minha opinião, idéias muito vagas, não era o momento, e nem havia oportunidade para pensar que tivessem a menor relação com minhas circunstâncias pessoais. Apesar de tudo, eu amei minha igreja, a igreja que me fez cristão e cuja batina eu vesti. Assim, tornou-se necessário para mim estudar esse tema em uma escala muito mais profunda e mais ampla, antes que pudesse gradualmente chegar à conclusão dolorosa que minha igreja não existia na verdade e que eu não tinha lugar na comunidade papista. E, de fato, dada a autoridade ditatorial do papa, a autoridade da igreja e do corpo episcopal é, para efeitos práticos, inexistente. De acordo com a teologia católica romana:

"A autoridade da Igreja é verdadeira e eficaz apenas quando coincide com a vontade do papa. Caso contrário, não possui nenhum valor "(123).

Consequentemente, o valor do papa é o mesmo com ou sem a Igreja. Em outras palavras, o papa é tudo e a Igreja não é nada. Com boa razão e muita tristeza o bispo Maret escreveu:

"Mudando a constituição da Igreja, nós também mudamos seu dogma. A partir de agora, será mais apropriado (para os católicos romanos) confessar na liturgia, "Eu creio no papa", em vez de dizer, "eu creio na Igreja, santa, católica e apostólica" (124).

O significado e o papel dos bispos está limitado à posição de simples associados, representantes subordinados à autoridade do papa, espalhados pelos quatro cantos do globo. Se submetem a esta autoridade como fazem os simples fiéis. Os papistas tentam justificar isso com base em uma interpretação absurda do versículo do capítulo vinte um do Evangelho de São João (125) condição, segundo o qual (dizem):

"O Senhor legou ao apóstolo Pedro e primeiro papa a comissão pastoral sobre seus cordeiros e ovelhas, a saber, a missão de pastor supremo e absoluto de todos os fiéis, que são simbolizados nos cordeiros, e sobre todo o resto, apóstolos e bispos, que são simbolizados nas ovelhas" (126).

Além disso, os bispos do catolicismo romano não são considerados, de nenhuma maneira, sucessores dos apóstolos (127), por causa da seguinte crença:

"A autoridade dos apóstolos se perdeu com eles e, consequentemente, não passou aos bispos posteriores. Só a autoridade de Pedro, sob a qual todas outras autoridades caem, foi transferida para seus sucessores no papado (128). Consequentemente, "há uma enorme diferença entre a sucessão de Pedro e a sucessão de qualquer outro apóstolo. O pontífice romano sucede Pedro como o pastor oficial de toda a Igreja, e por isso tem toda a autoridade que emana dAquele que legou a Pedro, considerando que os outros bispos não são sucessores dos apóstolos, porque foram meros pastores subjugados (a Pedro), e como tal não tiveram sucessores."(129)

De acordo com o papismo, portanto, aqueles que ocupam o cargo do bispo não herdam nenhuma autoridade apostólica e não possuem qualquer autoridade, exceto a que recebem, não diretamente de Deus, mas do supremo pontífice de Roma:  "A autoridade dos bispos emana diretamente do Papa"(130). Isso eu considerei uma ofensa injustificada contra o ofício episcopal, que foi sacrificado e tornado inútil para promover o fortalecimento e a elevação da autoridade papal.

Não é necessário ter um amplo conhecimento da história da igreja antiga para entender que mesmo desde a era apostólica a ordem dos bispos fundaram sua autoridade na premissa de que "sucediam os apóstolos e governavam a Igreja com mesmo poder (121), e no mesmo ofício que eles tinham" (132). De acordo com Santo Atanásio, foi o próprio Senhor que instituiu o ofício do episcopado através dos apóstolos (133). E, além disso, São Gregório, o Dialogista ensina claramente:

"Hoje, na Igreja, os bispos têm a posição dos apóstolos.(134)

São Inácio de Antioquia afirma que a autoridade apostólica recebida pelos bispos procede de Deus Pai (135) e ainda acrescenta que o bispo não deve submeter-se a ninguém além do próprio nosso Senhor Jesus Cristo (136). Portanto, "a corrente de ouro que une os fiéis com Deus conecta laço a laço e passa dos bispos até os apóstolos, e dos apóstolos até Jesus Cristo e dEle até Deus Pai" (137).

Este ensinamento foi bem incorporado na tradição da Igreja e foi expresso abertamente pelos Santos Padres, dos quais, para mim, não há absolutamente nenhuma dúvida de sua validade. Basta ler os antigos escritos episcopais legados por Santo Irineu, Tertuliano, Eusébio, São Jerônimo, Santo Optato de Milev, e muitos pais e historiadores da igreja, que compilaram e se esforçaram para descrever com o maior cuidado a sucessão de bispos que presidiram à várias igrejas instituídas pelos apóstolos. Depois dos nomes dos apóstolos fundadores, os nomes dos bispos de cada local foram recolhidos sucessivamente ao longo do tempo pelos autores desses escritos. Então, qual é o propósito de tais cuidados, tanto o interesse quanto o esforço em fornecer sucessão apostólica, se, como sustenta o Catolicismo Romano, "a autoridade dos apóstolos foi perdida com os apóstolos e não foi transferida para seus sucessores", portadores do ofício do episcopado? (138)

Muito consistente com os ensinamentos papistas sobre a autoridade e o poder dos bispos, é a posição da Igreja Romana sobre os próprios concílios ecumênicos. Acredita-se que o conselho ecumênico não tem outro valor diferente daquele que o papa confere, então os papistas dizem:

"Os concílios ecumênicos não são e nem podem ser nada mais do que reuniões cristãs convocadas pelo poder do soberano e conduzidas por Ele como presidente" (139)

Uma vez que este soberano não é o Senhor, mas o papa, antes de tudo, um Sínodo Ecumênico não pode existir, a menos que seja chamado pessoalmente pelo Papa como o Presidente (140) ou seus representantes imediatos. (141). Em um ponto, durante o processo de um concílio ecumênico, o papa, e somente ele, pode adiá-lo, mudá-lo ou dissolvê-lo (142). É suficiente que o papa deixe o local e diga "não estou aqui" para que o concílio seja reduzido a uma mera reunião e, no caso em que seus membros persistam, são declarados cismáticos (143). Mesmo os decretos de um concílio são praticamente invalidados se não forem aprovadas pelo papa e publicado com o selo de sua autoridade (144).

Após ler todos esses textos, cheguei a este ponto com total e inconcebível conclusão de que, em essência, todos os bispos católicos romanos - de todas partes do mundo - que se reuniram no concílio Vaticano I, em 1869, consentiram em se desprezar e tornarem-se servidores sem voz do bispo de Roma, aceitando o dogma da infalibilidade papal. O papa serviu-se essencialmente como ditador daquele concílio desde o dia em que começou até sua conclusão, de modo que, qualquer coisa que desejou foi cumprida, enquanto que nada que ele se opôs foi levado adiante. Certamente, isso está bem documentado pelas declarações de um dos membros do concílio, o arcebispo alemão Strossmayer, cuja consciência sóbria ficou escandalizada ao presenciar a ordem do episcopado privado de qualquer poder e liberdade de vontade para enfrentar o todo-poderoso papa:

"No concílio Vaticano não tivemos nenhuma liberdade essencial. Por esta razão, não pode ser considerado um verdadeiro concílio com o direito de emitir decretos com força vinculante sobre a consciência de todo o mundo católico [...] Qualquer coisa que pudesse assegurar a liberdade da palavra e expressão me foi cuidadosamente censurado e reprimido [...] e, como se tudo isso não fosse suficiente, o concílio constituiu-se o maior escândalo de violação pública do antigo axioma da igreja ‘quod semper, quod ubique, quod ab omnibus' (145) Em outras palavras, para alegar a infalibilidade papal, que foi aplicada e imposta na forma mais óbvia e esmagadora antes que a própria infalibilidade fosse declarada como dogma. Além disso, houve outras alegações sobre a legalidade geral do concílio, como o fato de que os bispos de origem italiana, principalmente os altos oficiais, foram a grande maioria, tendo praticamente o poder e o monopólio na votação; ou que o vigário estava sujeito à propaganda mais ultrajante, enquanto que todo o mecanismo da autoridade papal, imposto pelo Papa em Roma, teve êxito intimidando todos e suprimindo a liberdade de expressão. Assim, pode-se deduzir facilmente que tipo de liberdade de discussão (um princípio inviolável em cada concílio) nos foi permitida no Concílio Vaticano". (146)

Durante minha grave crise espiritual abandonei quase por completo todos meus estudos. Aproveitei o tempo livre concedido por minha ordem monástica meditando na solidão de minha cela. Por muitos meses, investiguei as fontes bíblicas, apostólicas e patrísticas relacionadas com a estrutura e organização da Igreja antiga, incrementando meu conhecimento sobre este amplo tema.

Naturalmente, este trabalho minucioso não poderia ser realizado em total sigilo. Tornou-se claro que o minha conduta geral estava fortemente influenciada pelo dilema que tinha me absorvido por completo. Eu não hesitei em procurar orientação fora do mosteiro de pessoas e obras que poderiam fornecer respostas às minhas perguntas.

Passando o tempo, comecei, com muita discrição e cautela, a revelar aspectos de meus exames para vários intelectuais da igreja com quem tinha feito amizade ao longo dos anos. Revelando discretamente e mencionando alguns aspectos de minhas preocupações, recebi deles um apoio valioso, conselho e opiniões sobre este assunto complexo e significativo que tanto preocupava minha existência.

Contudo, logo descobri que a maioria das pessoas as quais eu havia confiado eram muito mais fanáticas do que esperava. Mesmo reconhecendo o absurdo de todo o ensinamento papista, eles permaneceram incompreensivelmente comprometidos com a ideia de "submissão devida ao Papa exige o consentimento cego do espírito" (147) e, segundo Inácio de Loyola, o fundador dos jesuítas:

"Para obter a verdade em tudo e não desviar-se do bom ânimo, devemos sempre respeitar o constante princípio de que se percebemos algo com nossos olhos sendo branco, poderia ser facilmente preto, se é isso que a hierarquia eclesiástica declara" (148)

Influenciado por essa mentalidade fanática que esteriliza qualquer argumento racional, um padre desta ordemamigo por longo tempoconfiou-me o seguinte:

"Tudo que você diz é inequivocamente lógico e bastante óbvio a partir de qualquer ponto de vista, e não tenho nenhuma razão para não aceitá-lo. No entanto, nós, os jesuítas, fora das três promessas habituais, temos de respeitar especialmente uma quarta, mais crucial do aquelas de obediência, pobreza e castidade: também prometemos submissão incondicional ao papa (149). Por isso estou obrigado a escolher ser lançado na condenação eterna com o papa, em vez de ser salvo com todas as tuas verdades imutáveis "



2 comentários:

  1. Excelente querido. Continue com seu trabalho. O catolicismo é um fideísmo. Uma pessoa voltada à filosofia como eu, sabia que não podia compatibilizá-lo com ela. Aliás, acho tanto o catolicismo romano quanto o islamismo, duas posições teocráticas. No lugar do papa, haverá o califa. A própria nomenclatura "católico romano" como já dissemos, é absurda. Ela já mostra uma tentativa de algo particular se universalizar. Já é algo pernicioso.

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