A Sagrada Escritura tem um lugar central na vida da Igreja; a adoração e o ascetismo, a vida e a devoção dos fiéis estão imersos nela. Mas é somente através da experiência da Igreja, ao ser organicamente "cultivado" nessa experiência, que podemos reconhecer as verdades das escrituras.
A Sagrada Escritura, portanto, não é uma "fonte" objetivada da verdade e revelação cristã, como textos "teóricos" que descrevem os princípios impessoais e objetivos de uma ideologia; tampouco há duas fontes de autoridade objetiva, Escritura e Tradição, como o racionalismo Católico Romano compreende. Antes de qualquer formulação escrita, a fé e a verdade cristã é um fato, o fato da encarnação de Deus e a deificação do homem. É a realização e a manifestação ininterrupta deste fato, sua encarnação tangível na história - em outras palavras, a Igreja.
Esta ordem de precedência é uma condição prévia fundamental para se aproximar da ética do Evangelho - e, também, de todo o ensinamento das Escrituras. O Evangelho encontra sua manifestação no fato da Igreja; e se ignorarmos esse fato, não nos resta mais que um ensinamento desencarnado cujo significado pode ser excepcional, mas que é necessariamente relativo. (Como sabemos, a Escritura formou a base para todas as distorções heréticas do evento da salvação, e muitos que rejeitam o cristianismo dedicaram um estudo sério ao texto da Escritura sem abnegar sua rejeição.)
Antes de qualquer formulação escrita, a realidade histórica da Igreja é o "evangelho", a "boa nova" - a notícia da verdade encarnada e da salvação. Por esta razão, não podemos pensar na Bíblia como a "carta fundadora" da Igreja, contendo "estatutos" teóricos para a fé cristã e um código de "mandamentos" da ética cristã. O cristianismo não é constituído por convicções "metafísicas" e diretrizes morais que sempre exigem uma a priori aceitação intelectual. O Evangelho da Igreja é a manifestação de sua vida e de sua experiência: e essa experiência foi estabelecida pelas testemunhas oculares da ressurreição, do início da salvação do homem: "segundo nos transmitiram os mesmos que os presenciaram desde o princípio, e foram ministros da palavra" (Lucas 1:1,2).
Este é um parêntese introdutório um tanto estendido, mas é de vital importância para o assunto em questão. Comprometido com a prioridade da Igreja sobre as Escrituras, a tradição Ortodoxa nunca conheceu a tentação da esquizofrenia teológica. Esta esquizofrenia consiste em fazer uma distinção entre a "objetividade" histórica e a certeza nascida da experiência vivida, entre o "Jesus histórico" e o "kerigma de Cristo da Igreja", entre fé e conhecimento, ou entre a ética e a verdade existencial do homem. A Igreja é um fato unificado da verdade e da vida. Sua verdade é uma experiência da vida, e sua vida é a verdade em prática e manifesta. A verdade e a vida apresentada pela Igreja é a pessoa de Cristo, o modo de existência revelado e inaugurado pela encarnação do Verbo. A Igreja identifica a existência com a hipóstase pessoal, não com a individualidade biológica; e é por isso que Cristo, na experiência da Igreja, é "o mesmo ontem e hoje e sempre" (Hb 13: 8). Antes de ser doutrina, o Evangelho é uma manifestação do fato de que Deus, a quem ninguém pode se aproximar, se tornou "Emmanuel", Deus conosco; Ele tornou-se a Igreja, o início temporal e a realização dentro da natureza humana do modo trinitário de existência.
Cristo é a "cabeça" da Igreja, não porque Ele tenha sido o seu fundador, mas porque Ele mesmo compõe seu corpo: Ele forma seu modo de existência trinitário, o ethos da Igreja que deve ser identificado com a vida verdadeira. O ethos ou a moral proclamado pelas Escrituras é a existência teantrópica [NT: divino-humana] do novo Adão, do "homem novo" que é Cristo. A moralidade do Evangelho relaciona-se com uma transfiguração real e existencial da natureza do homem, e não apenas com uma deontologia mais completa que deixa de lado a natureza humana existencialmente inalterada. [...]
Essa "regeneração" do homem "em Cristo" exige apenas a cooperação da liberdade do homem, seu consentimento com o "amor fervoroso" de Cristo para ele enquanto pessoa. O que Deus pede ao homem, existencialmente alienado e degradado como ele é, é um esforço, por mais pequeno que seja, para rejeitar sua auto-suficiência individual, para resistir seus impulsos e que deseje viver enquanto alguém que ama e é amado. Este é o primeiro passo para a participação no novo modo de existência, o novo ethos inaugurado por Cristo, o novo Adão, o pai da nova raça humana. É a kenosis posta em prática por Cristo como homem: o ato de esvaziar cada elemento de autonomia e auto-suficiência individual, e realizar a vida de amor e comunhão.
A conformidade com este ethos define a piedade prática da Igreja, a prática do ascetismo. O ascetismo é o esforço que confirma a liberdade do homem e sua decisão de rejeitar a rebelião de sua vontade individual, imitando a obediência do segundo Adão. Esta obediência não é apenas no sentido da submissão a uma lei externa, mas no sentido de fidelidade à "imagem" de Deus, que é Cristo, de acordo com o protótipo trinitário de vida que Cristo fez encarnar na natureza humana.
Christos Yannaras em The Freedom of Morality
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