sexta-feira, 3 de março de 2017

O Pecado não é um problema moral (Pe. Stephen Freeman)

Muitos leitores nunca antes ouviram dizer que não existe tal coisa como progresso moral - portanto não estou surpreso por terem pedido que eu escrevesse com mais profundidade sobre o tema. Começarei por focar na questão do pecado em si. Se entendermos corretamente a natureza do pecado e seu verdadeiro caráter, a noção de progresso moral será vista com mais clareza. Começarei por esclarecer a diferença entre a noção de moralidade e a compreensão teológica do pecado. São dois mundos muito diferentes.

Moralidade (na forma que utilizo a palavra) é um termo amplo que geralmente descreve a adesão (ou falta de adesão) a um conjunto de padrões ou normas de comportamento. Nesse entendimento, todo mundo pratica alguma forma de moralidade. Um ateu pode não acreditar em Deus, mas ainda terá um sentido interiorizado de certo ou errado, bem como um conjunto de expectativas para si mesmo e para os outros. Nunca houve um conjunto de padrões morais aceitos universalmente. Pessoas diferentes, culturas diferentes, têm uma variedade de entendimentos morais e formas de discutir o que significa ser "moral".

Tenho observado e escrito que a maioria das pessoas não irão progredir moralmente. Isto quer dizer que geralmente não conseguimos melhorar observando quaisquer normas e práticas que consideramos moralmente corretas. Em geral, estamos tão moralmente corretos como sempre seremos.


Isto difere fundamentalmente do que se chama "pecado" em termos teológicos. A falha em aderir a certos padrões morais pode ter certos aspectos de "pecado" por trás dela, mas as falhas morais não são a mesma coisa que o pecado. Da mesma forma, a correção moral não é de modo algum a mesma coisa que a "retidão". Uma pessoa poderia ter sido moralmente correta durante toda sua vida (teoricamente) e ainda estar enterrada no pecado. Entender o pecado tornará isso claro.

"Pecado" é uma palavra que é usada frequentemente de forma incorreta. Popularmente é utilizada para denotar infrações morais (violação das regras), ou, religiosamente, violação das regras de Deus. Assim, quando alguém pergunta: "É pecado fazer x, y, z?", o que eles querem dizer é: "É contra as regras de Deus fazer x, y, z?", mas isso é incorreto. Propriamente, o pecado é algo completamente distinto da violação das regras - São Paulo fala disso de maneira bem diferente:
Sei que nada de bom habita em mim, isto é, em minha carne. Porque tenho o desejo de fazer o que é bom, mas não consigo realizá-lo. Pois o que faço não é o bem que desejo, mas o mal que não quero fazer esse eu continuo fazendo. Ora, se faço o que não quero, já não sou eu quem o faz, mas o pecado que habita em mim. (Romanos 7:18-20)
"Pecado que habita em mim?" Obviamente "violar as regras" não é um significado que se encaixa neste uso em qualquer maneira possível. O pecado tem um significado completamente diferente. Podemos retomar seu sentido por São Paulo:
Porque, quando éreis servos do pecado, estáveis livres da justiça. E que fruto tínheis então das coisas de que agora vos envergonhais? Porque o fim delas é a morte.Mas agora, libertados do pecado, e feitos servos de Deus, tendes o vosso fruto para santificação, e por fim a vida eterna.Porque o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna, por Cristo Jesus nosso Senhor. (Romanos 6:20-23)
Aqui o pecado é algo em que podemos ser escravos, e cujo fim é a morte. Então o que é pecado?

O pecado é uma palavra que descreve um estado de ser - ou, mais propriamente, um estado ou processo de não-ser. É um movimento para longe da nossa própria existência - do dom de Deus para Sua criação. Somente Deus tem o Verdeiro Ser - Só Ele é auto-existente. Todo o resto que existe é contingente - totalmente dependente em cada momento de Deus, que é a existência. Quando Deus nos criou, segundo os Padres, Ele nos deu existência. À medida que aumentamos nossa comunhão com Ele, avançamos para o ser. Seu dom final para nós, e é para essa união que devemos nos mover adequadamente, é o ser eterno.

Mas há um oposto a esta vida de graça. Trata-se de um movimento em direção à não-existência, um movimento para longe de Deus e uma rejeição do ser. É este movimento que é chamado de "pecado". Podemos ser escravos dele, como uma folha presa em um redemoinho na água. O pecado não é algo em si (pois o não-ser não tem existência). Mas é descrito nas Escrituras por palavras como "morte" e "corrupção". Corrupção ou "putrefação" (φθορά) é uma excelente palavra para descrever o pecado. Pois é a dissolução gradual (um movimento ou processo dinâmico) de uma coisa anteriormente viva - sua decadência gradual ao pó.

Isso difere notoriamente da idéia de pecado como a violação das regras morais. A ruptura de uma regra implica apenas um erro externo, uma infração meramente legal ou forense. Nada de substância é alterado. Mas as Escrituras tratam o pecado muito mais profundamente - é em si uma mudança na substância, uma decadência de nosso próprio ser.

E aqui é onde um re-pensar criativo torna-se necessário. O hábito de nossa cultura é pensar no pecado em termos morais. É simples, requer muito pouco esforço, e coincide com o que todos ao seu redor pensam. Mas é teologicamente incorreto. Isso não quer dizer que você não pode encontrar tais tratamentos moralistas dentro dos escritos da Igreja - particularmente dos escritos ao longo dos últimos séculos. Mas a captura da teologia da Igreja pelo moralismo é um verdadeiro cativeiro e não uma expressão da mente ortodoxa.

Então, como pensamos o certo e errado, o crescimento espiritual, a própria salvação, se o pecado não é um problema moral? Não ignoramos nossas falsas escolhas e paixões desordenadas (hábitos de comportamento). Mas nós os vemos como sintomas, como manifestações de um processo mais profundo em funcionamento. O cheiro de um cadáver não é o verdadeiro problema e tratar o cheiro não é de modo algum a mesma coisa que a ressurreição.

A obra de Cristo é obra da ressurreição. Nossa vida em Cristo não é uma questão de aperfeiçoamento moral. Estamos enterrados em Sua morte - e é uma morte real - completa com tudo o que a morte significa. Mas a Sua morte não foi para corrupção. Ele destruiu a corrupção. Nosso Batismo na morte de Cristo é um Batismo na incorrupção, a cura do rompimento fundamental em nossa comunhão com Deus.

Então, como é essa cura? É errado esperar algum tipo de progresso ocorrer?

Minha experiência de vida (34 anos como sacerdote) e a leitura dos Padres e da Tradição sugerem que tais expectativas são, de fato, enganosas. Eu me perguntei sobre isso por muitos anos. Passei a pensar em nossa salvação como sendo semelhante à realidade dos sacramentos. O que você vê na Eucaristia? O Pão e o Vinho sofrem uma mudança progressiva? Vemos uma transformação diante dos nossos olhos?

O que parece ser verdade é que nossa salvação está em grande parte escondida - às vezes até mesmo de nós. A fé cristã é "apocalíptica" em sua própria natureza - é uma "revelação do que está escondido." As parábolas estão repletas de imagens de surpresa: tesouro descoberto, etc A salvação tem um modo do simplesmente aparecer. Muitas vezes penso no drama litúrgico numa liturgia ortodoxa como se isso acontecesse - por isso as portas e a cortina e o "agora você vê - agora você não vê - agora você realmente vê" fluem do serviço.

Encontrar nossa salvação significa afastar-se da aparência das coisas. Requer uma profunda e fundamental reorientação interior de nossas vidas. Requer a obra interior do arrependimento. A vida moral é vivida na superfície - até mesmo os ateus se comportam de maneira moral. Quando nos voltamos para Cristo em nós, nos movemos abaixo da superfície. Começamos a ver como são efêmeras e confusas nossas ações.

Essas ações são em maior parte a obra de um eu falso, um ego que é débil e vergonhoso, que luta freneticamente "para ser melhor". Mas o coração da vida espiritual cristã não é por este caminho do ego aperfeiçoado, mas através do caminho da "morte a si mesmo", em que perdemos uma existência que não é nosso verdadeiro eu, e aprendemos uma existência que é nossa em Cristo. Mas o que vemos é muitas vezes outra coisa. Pois, enquanto estamos encontrando a verdade, o outro ainda se apega à sua falsa existência - e isto é primariamente o que vemos e o que os outros veem. A obra escondida da salvação permanece invisível.

Não é de todo incomum na vida dos santos que a santidade de um indivíduo permaneça escondida até a sua morte. Este foi o caso de São Nectarios de Egina. Ele foi desprezado por muitos, embora visto verdadeiramente por poucos. Mas na sua morte, milagres começaram a fluir dele e, de repente, as histórias começaram a surgir.

E misteriosamente, parece que esta vida escondida é muitas vezes escondida até mesmo do próprio santo (assim como nossa verdadeira vida está escondida de nós). Eu penso que Deus nos preserva do peso deste conhecimento por causa da nossa salvação.

Pensai nas coisas do alto, não nas que são da terra. Pois vocês estão mortos, e sua vida está escondida com Cristo em Deus. Quando Cristo, que é nossa vida, aparecer, então também vocês aparecerão com Ele em glória. (Col 3: 2-4)

Isto, novamente, é o caráter apocalíptico da vida cristã. Estamos mortos e nossas vidas verdadeiras estão escondidas com Cristo em Deus - e elas aparecerão quando Ele aparecer.

Então, o que vemos nesta vida? A resposta simples é clara: Cristo. Não é a nosso próprio aperfeiçoamento que buscamos, mas Cristo. Nosso próprio aperfeiçoamento passa gradativamente a ser algo desimportante quando encontramos Cristo. E quanto mais O encontramos, mais claramente a falsa natureza do ego parece clara para nós, e podemos dizer: "Eu sou o pior de todos os pecadores".

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