sábado, 16 de maio de 2020

Um sermão sobre a Leitura de Obras Espirituais (Arcebispo Platon de Kostroma)

Este é o mandamento dado pelo santo Apóstolo [Paulo] ao seu amado discípulo, bispo Timóteo. A leitura de escritos sagrados proveitosos para a alma é um dos principais meios de êxito na vida espiritual. Seguindo o Apóstolo, os Santos Padres também nos mandam ler continuamente os escritos sagrados, pois este é um meio importante para a perfeição espiritual. Tal leitura é absolutamente necessária, especialmente na época atual, quando a educação e os hábitos mundanos ameaçam sufocar o gosto por tudo o que é espiritual, e os falsos ensinamentos e idéias estão se espalhando rapidamente.

Irmãos, sem dúvida vocês lêem muitos livros, mas com que frequência lêem livros sobre assuntos espirituais? Essa leitura é uma ocupação respeitada, benéfica e gratificante.

Primeiro, a leitura de livros espirituais é louvável. Pois que leitura pode se comparar com ela? Qual é a honra em ler história, as obras de filosofia e de escritores famosos do passado pagão? Se a verdadeira honra e glória consiste em nos sentirmos próximos a Deus e Seus santos, então é através da leitura espiritual que alcançamos esta honra e glória, pois através dela Deus fala conosco; através dela os grandes santos conversam conosco, e através dela entramos em comunhão com todo o Reino Celestial. Que honra para um ser humano mortal e mera criatura!

Deus fala conosco quando lemos a Sagrada Escritura, pois o que ela contém, se não a própria Palavra de Deus? Nela está a Sua verdade, os Seus ensinamentos, os Seus mandamentos. Mas será que ouvimos quando Ele fala, ou quando lemos? Independentemente de quando essas palavras foram escritas, o mesmo Deus fala conosco. "Se lermos as Sagradas Escrituras com fé", diz São Basílio o Grande, "sentiremos que vemos e ouvimos o próprio Cristo. Do que precisamos, de uma voz real ou Daquele que nos fala através das Escrituras? É tudo o mesmo. Na Sagrada Escritura, Deus fala conosco tão verdadeiramente como quando falamos com Ele através da oração". Por esta razão, a oração e a leitura de livros sagrados devem ser a nossa ocupação contínua. Ore ou leia continuamente se quiser estar com Deus em todos os momentos.

Por que não queremos usar para leitura e oração o tempo que despendemos fora da igreja? Por que não queremos nos encontrar com Cristo, falar com Cristo, ouvir Cristo? Nós falamos com Ele quando oramos; nós O ouvimos quando lemos a palavra divina. Por que negligenciamos a Palavra de Deus e lemos livros que só alimentam nossa curiosidade e às vezes são perniciosos e prejudiciais? Pois um dos males da época atual é a leitura não seletiva.

Os santos falam conosco quando lemos os seus escritos. Através de seus escritos, eles nos guiam e falam conosco e nós, por assim dizer, ressuscitamos através de seus escritos após a morte deles a fim de falarmos com eles. Assim, não temos motivos para invejar os contemporâneos de Crisóstomo, Basílio o Grande, Gregório o Teólogo, Atanásio o Grande, Ambrósio e outros. Das santas fileiras dos Padres podemos escolher com quem é melhor para conversarmos. Não há maneira melhor, mais alegre e mais benéfica de passarmos o tempo que temos do que lendo os escritos dos Santos Padres.

Por fim, ao ler livros que são proveitosos para a alma, entramos em comunhão com todos os habitantes do Paraíso. "Quando leio livros sobre Deus", diz o hieromártir Timóteo, "então os anjos de Deus rodeiam-me". Os escritos sagrados falam da glória dos santos, de sua bem-aventurança, de suas virtudes e de seus esforços ascéticos, através dos quais eles foram reconhecidos como herdeiros do Reino de Deus. Nós mesmos, por assim dizer, nos tornamos cidadãos de um mundo diferente e habitantes do Céu. Ouvimos apenas o que diz respeito ao Paraíso, para que possamos dizer: "A nossa cidade está nos céus" (Fil. 3:20), "Vós não sois mais estranhos ou estrangeiros, mas concidadãos dos santos e da família de Deus". Não é uma grande honra entrar em comunhão e conversar com os embaixadores do Rei Celestial? O que pode nos dar mais honra do que conversar, através da leitura de livros espirituais, com os santos anjos, com as almas dos bem-aventurados, e com o próprio Deus?

Em segundo lugar, o exercício da leitura de livros proveitosos para a alma não é apenas um estudo louvável, mas também um benéfico. Que tipo de benefício pode trazer a leitura de outros livros? Eles trazem a mera satisfação da nossa curiosidade, a mera aquisição de conhecimento. Mas muitos livros, especialmente aqueles que contrariam os ensinamentos da Igreja Ortodoxa, só podem trazer males. O Senhor Jesus Cristo, nossa Luz e nosso Rei, diz que "por seus frutos os conhecereis" (Mt. 7:16). Quais são os frutos bons dos livros que contrariam a fé e a moral? Eles nos afastam da Lei do Senhor, ou mais ainda, de Deus, o próprio Legislador. Eles são a morada dos demônios e do seu príncipe, o diabo. Eles não levam aqueles que os lêem à luz, mas apenas à escuridão. Não despertam o temor de Deus, mas apenas mais êxito na pecaminosidade. Estes são os joio que o inimigo semeou no campo do proprietário da casa. Estas são as ervas daninhas que cresceram na terra, amaldiçoadas por Deus, o Mestre. Eles são mentira, escuridão e engano. Fuja deles, especialmente você que é jovem, para que o ensinamento deles não se enraíze em seu coração. Fuja dos livros que despertam as paixões, para que você não afaste de ti os Anjos de Deus e do Espírito Santo. Fuja dos livros nocivos, pois secam lágrimas de compunção, obscurecem o coração, e destruíram, destroem e destruirão muitas pessoas.

 "Mas, quando leio livros sagrados", diz São Gregório Teólogo sobre os livros de São Basílio o Grande, "então o espírito e o corpo são iluminados e eu me torno o templo de Deus e a harpa do Espírito Santo, tocada por poderes divinos e por meio deles sou corrigido e através deles recebo uma espécie de mudança divina e sou transformado numa pessoa diferente". O grande Hierarca Gregório diz isso sobre a leitura de escritos sagrados com base em sua própria experiência. Eles transfiguram completamente uma pessoa, transformando-a em um santo e deificando-o.

Você se lembra como foi alcançada a conversão de Bem-aventurado Agostinho? Durante muito tempo a graça de Deus já havia tocado seu coração. Ele não podia suportar o tormento da alma causado por sua vida pecaminosa e, ao mesmo tempo, não conseguia abandoná-la. Ele tanto a queria quanto não a queria. Mas assim que ouviu as palavras: "Tome, leia", e leu várias palavras, ele resolveu imediatamente abandonar sua vida pecaminosa. O que causou tal mudança? O conselho que se ouve com frequência, mas que raramente recebe a atenção que merece: "Toma e lê."

Portanto, dedique-se à leitura dos escritos espirituais. Isso o levará a essa maravilhosa mudança que ocorreu em tantos santos. Através dessas obras recebemos uma grande e santa iluminação. Através delas aprendemos sobre o caminho da salvação, aprendemos que tipo de tentações nos esperam nesse caminho, e sobre os meios pelos quais podemos ser libertados delas. Quem não lê livros espirituais se separa de Deus, pois cai em pecados cometidos anteriormente, por ignorância das Escrituras. Esta é a fonte da heresia e da negligência da verdadeira vida espiritual. Aqueles que não lêem os escritos sagrados caminham na escuridão profunda e são como os cegos que não têm ninguém que os guie, que se precipitam e caem em uma vala. Que nossos olhos sejam iluminados pela luz da palavra de Deus, pois a Sagrada Escritura ilumina mais brilhantemente do que o sol aqueles que lêem com amor e que guardam os mandamentos de Deus.

Em terceiro lugar, que deleite, alegria e conforto há de se obter através da leitura de obras que beneficiam a alma. Não há nada mais agradável do que esta ocupação. O salmista diz: "Quão doces são as Tuas palavras, ó Senhor" (Sl. 118:103), "São mais doces que o mel à minha boca." (Sl. 108). Este alimento agrada a todo paladar. Este é o verdadeiro maná, o alimento celestial, o pão angélico que foi preparado pelo Céu sem trabalho de nossa parte, e que tem nele todo tipo de doçura e todo tipo de fragrância, satisfazendo todas as necessidades do homem. O que pode ser mais agradável do que isso? Se você não sabe isso por experiência própria, então acredite na experiência dos inúmeros santos que encontraram na leitura da palavra de Deus toda a sua alegria e o maior conforto. Por quantas vezes e com quanta força consolou os santos Macabeus em meio às suas grandes tristezas. Não foi na leitura dos livros sagrados que eles encontraram sua alegria? O santo apóstolo Paulo aconselha os romanos a buscar consolo nas Sagradas Escrituras (Rm. 15:4). Com o que São Paulo se consolou na prisão? Ele pede ao seu amado discípulo Timóteo que envie os livros que deixou para trás, a fim de usá-los durante seu confinamento na prisão (2 Tim. 4).


Será que nós, como os santos, encontramos nossa alegria na leitura de livros sobre a salvação da alma? Lamentavelmente encontramos nosso conforto, nossa glória e nossa comida em coisas vãs. Nós lemos livros que só alimentam a curiosidade e que muitas vezes são muito prejudiciais. O dia parece curto demais para adquirir conhecimento e passamos noites inteiras lendo livros,  quando nada pode nos distrair. O que dizer daqueles que passam dia e noite na leitura de livros nocivos e tentadores, que asfixiam a fé e que despertam e alimentam as paixões? "Abandone-os rapidamente, meu irmão", diz um grande asceta, "para que tu não cerques o teu próprio coração com o fogo diabólico, para que no lugar do grão não sejam semeados esses joio no teu campo e no lugar da vida tu recebas a morte, e... (por que desperdiço palavras?) para que no lugar de Cristo tu não aceites em ti o diabo. Não te atrases nisto, mas salva-te como o fez Ló em Sodoma" (São Barsanúfio, p. 607).

Não sejam indolentes, ó cristãos! Leia as obras espirituais para que sua alma não morra faminta de ouvir a palavra de Deus, com a qual Deus nos avisa através dos profetas. Lembrem-se que a nobre Rainha Candace, sentada em uma carruagem no caminho, leu as Sagradas Escrituras e por isso foi concedida a ser chamada ao Reino de Jesus Cristo. Leiamos continuamente as Sagradas Escrituras, os escritos dos Santos Padres da Igreja, e outras obras benéficas para a alma. Mas quando nos aproximamos da leitura desses livros, devemos primeiro orar com todo o nosso coração ao Senhor Deus para que Ele possa abrir os olhos do nosso coração e para que não apenas compreendamos o que está escrito, mas o façamos. Pois aquele que lê e não faz o que está escrito, despreza as Escrituras Divinas.

Retirado de Orthodox Life, Vol. 34, No. 3 (Maio-Junho de 1984), pp. 30-34.
http://orthodoxinfo.com/praxis/onreading.aspx

quarta-feira, 13 de maio de 2020

Entrevista: Um Padre Ortodoxo Inglês sobre o Reino Unido, o Anglicanismo e a Ortodoxia

"Não podemos re-cristianizar a Europa somente por meio de resoluções conjuntas" 

Um Padre Ortodoxo Inglês sobre o Reino Unido, o Anglicanismo e a Ortodoxia

A julgar pela minha experiência de comunicação com o clero Ortodoxo no Reino Unido durante vários anos de minha vida neste país, suas atitudes em relação ao trabalho missionário Ortodoxo nas Ilhas Britânicas variam. Alguns padres acreditam que os Católicos Romanos e Anglicanos são "nossos irmãos e irmãs em Cristo" e não precisam realmente compreender a Verdade da fé Ortodoxa. Alguns representantes do clero estão focados na missão entre os emigrantes de suas próprias nacionalidades (russos, gregos, romenos, etc.) apenas. Por fim, há sacerdotes orientados à missões que vêem a Grã-Bretanha como uma vinha com uma colheita abundante que necessita de colhedores - competentes, ativos e amorosos. 

Como regra, os sacerdotes que fazem trabalho missionário entre os moradores locais são eles próprios convertidos à Ortodoxia vindos de outras denominações cristãs. Para eles, as diferenças entre Ortodoxia e heterodoxia (Catolicismo e Protestantismo) são muito sérias. Eles tendem a ser céticos quanto ao ecumenismo e não concordam que "todas as religiões levam a Deus", pois sua conversão à Ortodoxia foi uma decisão altamente motivada e bem pensada, alcançada através de muito sofrimento. 

Uma decisão de princípio ajudou-os a abandonar suas denominações (mesmo que fossem Católicos de berço ou Protestantes de berço), a fim de superar todos os obstáculos e se unir à Igreja Ortodoxa.

Ao longo dos anos que passei em Manchester, conheci muito bem um desses padres - Pe. Gregory Hallam, reitor da Igreja de Santo Edano de Lindisfarne, naquela cidade. O Pe. Gregory anteriormente tinha servido como padre anglicano, mas em 1992 ele se decepcionou com o Anglicanismo e abraçou a Ortodoxia. Três anos depois foi ordenado e desde então tem servido numa paróquia do Patriarcado Ortodoxo de Antioquia em Manchester - uma das maiores cidades inglesas - por mais de vinte anos. 

 "A ordenação das mulheres não é o único motivo"
 
Aqueles que conhecem pelo menos uns poucos fatos sobre a história religiosa moderna da Grã-Bretanha lembram-se que no início dos anos 90 alguns padres e leigos Anglicanos deixaram a Igreja da Inglaterra. O principal motivo foi a decisão do Sínodo Geral da Igreja da Inglaterra de permitir a ordenação das mulheres. A maioria dos dissidentes então se refugiou na Igreja Católica Romana, enquanto alguns deles optaram por ingressar na Igreja Ortodoxa. No entanto, como me explicou o Padre Gregory, para ele a admissão de mulheres no ministério da Igreja da Inglaterra não foi o único motivo (e nem mesmo um motivo principal) pelo qual ele deixou o Anglicanismo. A escolha a favor da Ortodoxia e não do Catolicismo tinha um sólido fundamento teológico. Ele me falou sobre isso durante nossa conversa na Igreja de Santo Edano em Manchester.

-Pe. Gregory, por que você se converteu à Ortodoxia? 

 -Há vários motivos pelos quais escolhi a Ortodoxia e não o Catolicismo Romano. Primeiro de tudo, não pude aceitar a total obediência ao Papa. Em segundo lugar, tinha cada vez mais dúvidas sobre a verdade da teologia latina ocidental, sobretudo sobre o seu conceito de salvação e a Paixão de Cristo. Mais do que isso, vi que o Catolicismo era uma fé desligada dos Padres da Igreja e da nossa tradição inglesa.

 -Mas o que o senhor quer dizer com o termo "tradição inglesa" neste contexto?

-Deixe-me explicar. Antes da Conquista Normanda de 1066, milhares e milhares de santos que, como creio, pertencem ao mundo Ortodoxo, viviam nestas Ilhas. É claro que esta pergunta requer algum exame adicional, mas o que eu sei é que a Igreja Russa incluiu os nomes de alguns santos britânicos em seu calendário. Entretanto, entre 1066 (acho que esta data é mais importante para a Inglaterra do que 1054) e a época da Reforma, apenas treze indivíduos que viviam neste país foram canonizados [1]. Mas é verdade que durante esse período a Grã-Bretanha quase não produziu ascetas que dedicaram suas vidas ao serviço de Deus?... Infelizmente, nessa época o procedimento de canonização tornou-se extremamente caro e complicado por razões políticas e pela centralização administrativa em Roma, de modo que nosso povo foi privado de homens santos. Foi um verdadeiro problema para a Igreja inglesa no período medieval.

- Permita-nos agora voltar à discussão sobre as práticas liberais no Anglicanismo...

- Não é apenas uma questão de prática, é também uma questão de teoria...

- Mesmo assim, nos anos 90, a Igreja da Inglaterra não era tão liberal quanto é hoje. Mas hoje a Igreja da Inglaterra está considerando ordenações gays e reconhecendo "uniões homossexuais". As primeiras bispas femininas apareceram recentemente no Reino Unido, embora no início dos anos noventa apenas a ordenação de mulheres para o sacerdócio estava na agenda. 

 - Deixe-nos primeiro falar sobre a ordenação das mulheres. Sou de opinião que o ministério sacerdotal poderia ser conferido às mulheres apenas pela plenitude da Igreja e a nível conciliar. Acho totalmente inaceitável que uma estrutura de Igreja cismática que outrora se separou da estrutura da Igreja Católica cismática tenha a coragem de declarar que é possível mudar os aspectos fundamentais do ministério da Igreja antes de sua aprovação em qualquer Concílio Pan-Eclesial.  Aliás, eu estava presente na reunião do Sínodo da Igreja da Inglaterra antes da votação da ordenação feminina e escutei um discurso do Patriarca Ecumênico de Constantinopla. Ele foi convidado para o Sínodo e disse que a decisão de ordenar mulheres teria um efeito consideravelmente negativo sobre o diálogo entre Anglicanos e Ortodoxos. Entretanto, a declaração do patriarca não foi comentada, e a Igreja da Inglaterra decidiu admitir mulheres para o ministério. 

A Igreja Ortodoxa de Santo Edano em Manchester.

Essa notória decisão também é controversa, pois causou uma divisão dentro da Igreja da Inglaterra e uma situação em que alguns cânones e a estrutura interna da Igreja Anglicana se tornaram conflitantes e ilógicos por natureza. A Igreja da Inglaterra tem seu próprio sistema de direito canônico; segundo o cânon A4, uma pessoa ordenada por um bispo Anglicano canônico deve ser reconhecida em seu ofício por todas as paróquias anglicanas. Em outras palavras, você não tem o direito de dizer que um ou outro sacerdote ordenado (ou uma mulher sacerdote) não é sacerdote e que você não aceita seu ministério ordenado (só porque você não gosta dele ou dela). Ao mesmo tempo, há alguns "bispos voadores" [título formal: visitante episcopal provincial - Trad.] na Igreja da Inglaterra que ministram às comunidades que se opõem aos sacerdotes mulheres.  Surgiu o seguinte paradoxo: Por um lado, de acordo com o cânon A4, a plenitude da Igreja deve aceitar mulheres sacerdotes que foram ordenadas por bispos anglicanos canônicos, e, por outro lado, a Igreja tem permitido que alguns clérigos e leigos discordem do ministério ordenado de mulheres, algo que entra em conflito com o cânon A4.

Eu estava pessoalmente presente em uma assembleia do clero que desaprovou a ordenação das mulheres. Então eu disse de forma muito direta que essas decisões - no contexto dos "bispos voadores" e das disposições do cânon A4 - eram um insulto às mulheres a quem diz respeito; um afastamento da eclesiologia católica (no sentido: "universal", "ortodoxa"); a criação de uma Igreja dentro da Igreja; e um desrespeito ao direito canônico. Se a Igreja da Inglaterra tivesse tido realmente certeza de que a ordenação das mulheres era a vontade de Deus ou a vontade da Igreja, teria sido melhor que tivesse agido de forma diferente, ou seja, começar com a ordenação das mulheres como bispas e não como sacerdotes. Afinal, um sacerdote recebe seu ofício e autoridade de um bispo.  Mas no Protestantismo liberal o mecanismo de decisão é diferente: primeiro você promove os direitos das mulheres e as pessoas se acostumam; depois você começa a louvar uma ou outra mulher sacerdote e faz isso até as pessoas dizerem: "Oh sim! A Reverenda Sarah é maravilhosa! Ela é uma candidata brilhante para o episcopado"! Mas é uma abordagem completamente errada!

 - Pe. Gregory, o senhor mencionou que havia outros motivos (além da ordenação de mulheres) para deixar a Igreja da Inglaterra. 

 -Sim, é isso mesmo. E embora a ordenação das mulheres tenha sido "a última gota que transbordou o copo", este "copo" foi sendo preenchido gradualmente com vários problemas. Os motivos fundamentais para deixar o Anglicanismo foram diferentes. A questão não é que os sacramentos e ordenações administrados por mulheres bispas e sacerdotes sejam "não naturais" (ou seja, um desvio em relação à Escritura, como afirmam os Protestantes conservadoras do Ocidente), mas que a relação entre a Escritura e a Tradição esteja sendo destruída. 

Na verdade, a ordenação das mulheres decorre naturalmente do problema fundamental do Anglicanismo - a falta de compreensão da autoridade necessária da Igreja com poderes para tomar decisões importantes. Como podemos saber o que é certo e o que é errado na Igreja? Aqueles com a mentalidade liberal Protestante são incapazes de responder a essa pergunta. Mas para mim o seguinte ponto foi ainda mais crucial: o conceito geral de salvação no cristianismo ocidental. Com o passar dos anos, estou cada vez mais convencido de que o conceito de salvação na Ortodoxia Oriental difere drasticamente do conceito do Cristianismo Ocidental do Catolicismo Romano e do Protestantismo. Em essência, o Catolicismo e o Protestantismo são "dois lados da mesma moeda", e sua única diferença séria está na compreensão dos sacramentos na Igreja.

- Rev. Gregory, neste contexto gostaria de mencionar a obra do Arcebispo Sergius (Stragorodsky) A Doutrina Ortodoxa da Salvação. O hierarca (futuro Patriarca de Moscou e Toda a Rússia) explicou em detalhes as diferenças marcantes entre a soteriologia Ortodoxa e a Soteriologia Latina. A diferença entre o Cristianismo Ocidental (Catolicismo e Protestantismo) e o Cristianismo Ortodoxo não é pequena e superficial, mas fundamental. Ela está na compreensão e explicação do modo como o homem percorre o caminho da salvação e alcança o Reino dos Céus. E a salvação é a coisa mais essencial para cada cristão, por isso aqui não pode haver concessões. 

Os problemas da Igreja da Inglaterra e a missão Ortodoxa

Arcipreste Gregory Hallam.
Tendo discutido as diferenças fundamentais entre a Igreja Ortodoxa e as denominações cristãs ocidentais, Pe. Gregory e eu, aos poucos, entramos num assunto delicado - a situação atual da Igreja da Inglaterra. E não é uma questão de desacordo entre os sociólogos e teólogos modernos sobre a linha de desenvolvimento da Igreja da Inglaterra hoje. Quanto ao Pe. Gregory, ele tem uma opinião clara sobre este ponto, completa com uma visão do papel missionário da Ortodoxia.

- Realmente, a Igreja da Inglaterra está passando por problemas sérios. As paróquias estão sendo fechadas, ao passo que os fiéis estão diminuindo. Mas o que devemos nós, cristãos Ortodoxos, fazer nesta situação? Observaremos com indiferença a extinção do cristianismo em nosso país de origem até que ele seja substituído por outra religião, como o islamismo? No fundo, é uma questão de salvação das almas. Talvez nós, clero e leigos Ortodoxos, devêssemos nos orientar mais para missões e abandonar essa "mentalidade da diáspora"? A meu ver, a única Igreja Ortodoxa (entre as Igrejas cujas jurisdições abrangem aqueles que vivem no Reino Unido) a ter tal capacidade para o trabalho missionário é a Igreja Russa! E agora não posso evitar de lembrar São Nicolau (Kasatkin) que fundou a Igreja Ortodoxa no Japão junto com os missionários que pregaram o Evangelho na Sibéria e no Alasca. Estes pregadores tinham uma boa idéia de como levar as Boas Novas de Cristo a pessoas de nacionalidades e tradições culturais absolutamente diferentes.

Claro, eu entendo bem porque o Patriarcado de Moscou está se esforçando para cooperar com cristãos heterodoxos em uma série de questões e assuntos morais. Mas acho que não podemos re-cristianizar a Europa somente por meio de resoluções conjuntas sobre "casamentos entre pessoas do mesmo sexo" ou eutanásia. Realizamos assembleias e conferências regulares, adotamos várias resoluções, mas só o retorno ao cristianismo Ortodoxo pode salvar a Europa. Entretanto, isso pode acontecer desde que apareçam missionários na Europa - isto é, padres e bispos Ortodoxos que se preocuparão não só com a diáspora russa, mas também com os residentes nativos dos países europeus.
Interior da Igreja de Santo Edano.
 - Concordo com a sua opinião. Mas eu gostaria de prestar atenção a uma questão prática. Eu apoio de todo coração as missões Ortodoxas entre os não Ortodoxos - Católicos e Protestantes - e entre aqueles que não conhecem nada da fé de Cristo. Entretanto, em muitos lugares da Europa Ocidental a Igreja Russa é dependente de Católicos e Protestantes. Eles frequentemente alugam suas igrejas, capelas e salas de oração para as comunidades Ortodoxas para adoração. Talvez este fato explique a hesitação do Patriarcado de Moscou em seu trabalho missionário no Ocidente? Por exemplo, eles temem perder suas instalações alugadas (que eles não encontraram facilmente). 

 Ao ouvir estas palavras o Pe. Gregory olhou-me com uma certa ironia em seus olhos.

- Com o devido respeito, Sergei. Você sabe o que um inglês entende por estas palavras? Elas significam "bobagem". Assim, eu quis dizer que seus argumentos são "pura bobagem".

-Mas por quê? 

 - Porque se Moscou tivesse tal desejo, poderia investir na construção de igrejas no Ocidente. A realidade é tal que a maioria das comunidades Ortodoxas no Ocidente - russas, gregas, romenas e assim por diante - são financeiramente auto-suficientes. Por exemplo, nós adquirimos o prédio da igreja que usamos para a adoração - ele pertence a nós e não é alugado. No entanto, no início não tínhamos dinheiro e nossa comunidade consistia de apenas vinte pessoas. Um ano depois adquirimos nosso próprio prédio e mais de vinte anos a congregação cresceu de vinte para 200 pessoas. Além disso, recebo uma remuneração como padre. E não temos fontes externas de financiamento.

- Entretanto, sabe-se que a Igreja da Proteção da Mãe de Deus do Patriarcado de Moscou, em Manchester, foi construída com a ajuda de um famoso oligarca russo...

-No nosso caso, conseguimos fazer tudo sem fundos de fora. Mas a Rússia não é um país pobre. Acho que ela poderia custear a construção de seis grandes igrejas nas principais cidades da Grã-Bretanha e o envio de padres missionários para lá, que serviriam tanto em inglês como no eslavo eclesiástico. Este projeto é realizável desde que haja uma vontade.

- Então, em sua opinião, por que eles ainda estão indispostos para fazer isso?

- Creio que as razões por trás da relutância deles não têm nada a ver com a apreensão ou a indisposição em ofender os Protestantes cujos edifícios e instalações eles alugaram. Isto não é uma resposta satisfatória a esta pergunta. Posso perguntar-lhe sobre sua opinião em retorno?

- A meu ver, o problema está em certas mentalidades teológicas de alguns hierarcas e clero do Patriarcado Russo que não vêem nenhuma diferença fundamental entre os Ortodoxos e os heterodoxos. Se um Católico permanece Católico e um Protestante permanece Protestante, eles não vêem nada de errado nisso. Estes representantes da Igreja acreditam que o mais importante é ser cristão, independentemente da sua denominação.
- Mas será que eles estão cientes de que apenas uma pequena minoria de cidadãos modernos de países ocidentais vai à igreja?

- Eu acho que sim.
- Então como os europeus podem conhecer a Verdade se não há trabalhadores para colher a colheita abundante da vinha?

- Talvez alguns hierarcas Ortodoxos achem que isso é uma tarefa dos padres Católicos e dos pastores Protestantes no Ocidente.

 - Mas os cristãos Ortodoxos não querem que os europeus cheguem ao conhecimento da Verdade em Cristo e encontrem o caminho da salvação? Nós não precisamos criar uma cultura Ortodoxa no Ocidente? Podemos realmente alcançar bons resultados, baseando-nos em nossa situação invejável dentro do espaço Católico e Protestante que vem declinando continuamente? Suponho que no Juízo Final os hierarcas Ortodoxos serão questionados não apenas como cuidaram de seu rebanho, mas também se eles buscaram "a ovelha perdida". Qualquer bom pastor, segundo o Evangelho, cuida não só das noventa e nove ovelhas que estão seguras no rebanho, mas também daquelas que se perderam. Infelizmente, ainda não vejo que essa ovelha perdida esteja sendo procurada.

Eu compreendo que as Igrejas Russa, Romena, Búlgara e outras Igrejas estão comprometidas com o cuidado de seu rebanho - russos, romenos, búlgaros, etc. É o dever e a obrigação delas - ninguém nega isso. Mas além dessa obrigação eles devem ter um anseio por um trabalho missionário entre o povo nativo - entre os quais vivem os emigrantes russos, romenos e búlgaros. É verdade que a Grã-Bretanha tem paróquias onde os cultos são celebrados quase exclusivamente no eslavo eclesiástico ou romeno, ao mesmo tempo em que há paróquias com grande número de convertidos britânicos onde os cultos são celebrados principalmente em inglês. No entanto, estas duas tendências existem, por assim dizer, em dois mundos paralelos. Precisamos desesperadamente de cooperação, uma espécie de meio de ouro [NT: uma posição moderada ideal entre dois extremos]. Gostaria de salientar mais uma vez que devemos livrar-nos desta "mentalidade da diáspora", da ideia de que as paróquias Ortodoxas no Ocidente são apenas uma continuação da Igreja Mãe. Ousaria dizer que isso leva à heresia do etno-filetismo.

Porém, as linguagens litúrgicas não são o único problema. Há outra dificuldade: o clero de várias jurisdições Ortodoxas nem sempre está inclinado ao contato e à cooperação.

Penso que em cada grande cidade com várias comunidades Ortodoxas, o clero deve se reunir regularmente para orar juntos, discutir a vida na Igreja e compartilhar suas refeições. Então os leigos certamente se juntarão a eles também. Devemos caminhar em direção à "Ortodoxia aberta". As Vésperas Pan-Ortodoxas anuais do Primeiro Domingo da Grande Quaresma são boas, não contesto isso; mas e todos os outros cinquenta e um domingos do ano? É importante que a Igreja Ortodoxa atue como uma só e evite a separação em grupos étnicos. Se queremos que a cooperação a nível local se torne uma realidade, precisamos de diretrizes especiais dos bispos regentes que estão encarregados das diversas jurisdições nas Ilhas Britânicas. A Assembléia Episcopal Pan-Ortodoxa da Grã-Bretanha e Irlanda não tem qualquer utilidade sem qualquer cooperação "a nível de base". Este tipo de cooperação é de vital importância.

Ortodoxia e o estado britânico

Como se sabe, algumas leis no Reino Unido estão em conflito com a ética e a moral cristã: por exemplo, a legalização dos chamados "casamentos entre pessoas do mesmo sexo" com o intuito de que os casais homossexuais possam ter os mesmos direitos das famílias tradicionais. Isto tem causado desconforto às comunidades cristãs que se esforçam para defender firmemente os valores baseados na Bíblia; estas estão muitas vezes sob pressão das autoridades (por exemplo, as agências Católicas de adoção no Reino Unido foram aconselhadas a não se recusarem a ajudar os casais gays a adotar crianças!)

 -Sr. Gregory, as paróquias Ortodoxas sofrem a pressão das autoridades centrais ou locais?- Não há pressão. Mas é essencial entender que nós, cristãos Ortodoxos, não desempenhamos nenhum papel na vida da sociedade britânica. Somos como uma flor exótica em um jardim - é admirada e cuidada, e nada mais. Não estamos incomodando nosso Governo porque não temos influência e temos relutância em tomar parte em qualquer coisa. Embora algumas mudanças tenham ocorrido não há muito tempo, quando a Câmara dos Lordes debateu a Lei do Suicídio Assistido.

 - A voz dos cristãos Ortodoxos foi ouvida pelos poderes em exercício?- A situação era a seguinte: o Parlamento questionou os cristãos da Grã-Bretanha sobre sua opinião sobre este projeto de lei, mas as cartas foram enviadas apenas para a Igreja da Inglaterra e para a Igreja Católica Romana. Então os cristãos Ortodoxos enviaram uma carta ao gabinete do Arcebispo de Cantuária perguntando por que ninguém havia pedido aos Ortodoxos que expressassem sua opinião - afinal de contas, somos a segunda maior comunhão cristã do mundo, totalizando 300.000 só no Reino Unido. Na carta de resposta foi-nos dito que nossas comunidades consistiam de emigrantes que não tinham sequer direito a voto. Depois disso, o Arcebispo Gregorios de Thyateira e Grã-Bretanha (do Patriarcado Ecumênico) enviou-lhes uma excelente carta em retorno afirmando que os cristãos Ortodoxos vivem na Grã-Bretanha há centenas de anos, que cerca de 95% dos nossos paroquianos têm direito de voto e assim por diante. Sim, nós recebemos desculpas oficiais do gabinete do Arcebispo de Cantuária. Mas isso mudou alguma coisa? 


Arcipreste Gregory Hallam.

 - Tenho ouvido dizer muitas vezes que em geral os Anglicanos são acolhedores e simpáticos para com os Ortodoxos.- Nós somos exóticos para eles. Belos serviços e ícones, belo raciocínio teológico... Do ponto de vista Anglicano somos "interessantes e valiosos" porque somos... "Católicos", mas não Católicos Romanos! A única razão pela qual eles nos amam é que nós lhes damos algum "status", algum senso de auto-estima diante dos Católicos Romanos. Houve um tempo em que os Anglicanos tinham a esperança de que a Igreja Ortodoxa reconheceria suas ordenações como válidas juntamente com sua sucessão apostólica, mas isso nunca aconteceu. Enquanto isso, a Igreja da Inglaterra cede espaço à pressão do Governo em relação à moralidade, aceitando coisas que antes eram inaceitáveis. Acho que acabará por aprovar os "casamentos entre pessoas do mesmo sexo".

 -Cedendo à pressão do Governo?- As especulações populares na imprensa de que "o Governo vai impor uniões entre pessoas do mesmo sexo à Igreja" são sem sentido. Neste caso teria de impor [a aceitação da] sodomia aos padres Católicos e aos imãs muçulmanos. Mas isso não vai acontecer. Eu deliberadamente não menciono os Ortodoxos - e não porque eu acho que a posição dos nossos padres sobre as relações familiares é diferente da dos nossos correspondentes Católicos (nossas opiniões quase sempre coincidem), mas porque ninguém está interessado em nossas posições. Então por que o Governo deveria se dar ao trabalho de perguntar aos Ortodoxos sobre qualquer coisa e nos impor qualquer coisa?

Dizendo adeus ao Padre Gregory, pensei que o problema dos colhedores e da vinha está se tornando cada vez mais relevante para o Reino Unido, já que as tendências seculares e até mesmo as tendências anti-cristãs estão crescendo. A propósito, o novo hierarca regente da Diocese de Sourozh (uma diocese do Patriarcado de Moscou que cobre o território do Reino Unido e da República Irlandesa), Bispo Matthew (Andreev), outrora chefiou o Departamento Missionário Diocesano e residia em Manchester, embora os objetos da missão fossem principalmente emigrantes de países tradicionalmente Ortodoxos. É verdade que existem muitos emigrantes no Reino Unido e suas necessidades espirituais devem necessariamente ser atendidas. Mas, ao mesmo tempo, como bem disse o Padre Gregory, não devemos esquecer "a ovelha perdida": afinal, qualquer bom pastor está disposto a (temporariamente) deixar as noventa e nove ovelhas restantes em seu rebanho para encontrar e resgatar aquela que se perdeu. "Digo-vos que assim haverá alegria no céu por um pecador que se arrepende, mais do que por noventa e nove justos que não necessitam de arrependimento." (Lc. 15:7). Entretanto, sem uma missão ativa nas Ilhas Britânicas, seus habitantes nativos dificilmente poderão se arrepender e retornar a Cristo.



Sergei Mudrov
conversa com o Arcipreste Gregory Hallam
Pravoslavie.ru
31/1/2018

[1] Na realidade, houve cerca de quarenta a cinquenta santos que viveram entre a Conquista Normanda e a Reforma no que hoje é o Reino Unido e a República Irlandesa e que foram oficialmente venerados pela Igreja Católica. Mas mesmo assim, eles constituem menos de um por cento de todos os santos que brilharam nestas terras durante o período pré-normando! Eles poderiam ser divididos em vários grupos: Administradores da Igreja e outras figuras canonizadas por razões políticas; místicos (no sentido Católico desta palavra); mártires; ascetas devotos; santos que conservaram muito do espírito da tradição Ortodoxa original de Lindisfarne e outros grandes mosteiros. É digno de nota que a veneração dos santos da era Católica que em espírito estavam mais próximos da Ortodoxia era menos intensa na Igreja Católica e alguns deles nunca foram formalmente canonizados, embora fossem amados pelos fiéis comuns. Destes santos, mencionemos os Santos Magno e Rögnvald de Orkney; Godric de Finchale, Bartolomeu de Farne e Henrique de Coquet (bisnetos espirituais do grande São Cuthbert de Lindisfarne); William de Perth; Waltheof, Earl de Northampton e Huntingdon; Eskil, um missionário em Södermanland na Suécia; Wulfric de Haselbury; Christina de Markyate; e vários outros. Notavelmente, todos eles viveram relativamente pouco depois da Conquista Normanda, quando as tradições da antiga piedade ainda estavam muito vivas. - Trad [Dmitry Lapa].

Fonte: http://orthochristian.com/110300.html

quinta-feira, 7 de maio de 2020

Uma Teoria Ortodoxa do Conhecimento: Os Métodos Epistemológicos e Apologéticos dos Padres da Igreja (Diácono Dr. Ananias Sorem)

O cristianismo não começou nos braços da filosofia. Cristo não andou pela Palestina pregando a lei natural. A Igreja primitiva não era um seminário filosófico. Os Apóstolos não adotaram o vínculo fides et ratio, fé e razão. O cristianismo da primeira metade do milênio marginalizou a fé filosófica grega pagã na razão. Esse cristianismo voltava-se para Jerusalém, não para Atenas. Embora esta Igreja tivesse termos e distinções dos filósofos gregos pagãos, ela não fundamentou sua teologia na filosofia deles. [1]

I. Teologia Natural e o Ocidente 

Como veremos, com a adoção do projeto filosófico helenístico pelo Ocidente começamos a ver [2] o surgimento da chamada Teologia Natural, onde o Cristianismo é colocado sob uma nova luz, [3] assumindo uma identidade própria estranha à Fé Una, Santa, Católica e Apostólica [4]. Para o Ocidente, o projeto da Teologia Natural (que se distingue da revelação natural) desenvolveu-se e, sem dúvida, chegou ao seu clímax com Tomás de Aquino. A Teologia Natural é tipicamente definida como sendo o que a mente humana, pela "luz da razão natural apenas", pode conhecer sobre Deus independentemente da revelação. Para Aquino, como para a maioria dos teólogos que afirmam a teologia natural, existe a crença implícita de que certas verdades sobre Deus (por exemplo, que Deus existe, que existe apenas um Deus, que Ele é Bom, etc.) podem ser conhecidas e demonstradas pela razão sem primeiro pressupor a fé na revelação divina. Como veremos, o projeto de teologia natural do Ocidente faz uma distinção essencial entre a natureza da fé e da razão, distinção essa que depende de certos pressupostos epistemológicos relativos à natureza do conhecimento em geral. Ao traçar as diferenças entre a natureza da fé e da razão, Aquino argumenta que a existência de Deus não é um artigo de fé, mas um preambula (um preâmbulo) para os artigos de fé. [5] Consequentemente, o conhecimento natural é entendido como sendo pressuposto pela fé, assim como ele acredita que a natureza é pressuposto pela graça.

Estas conclusões são o resultado da epistemologia de Aquino derivada de uma concepção fundacionista clássica encontrada em Aristóteles. Discutiremos em detalhes as teorias fundacionistas clássicas do conhecimento, mas por enquanto basta observar que a teologia natural se compromete com uma concepção particular onde os fundamentos epistêmicos para a justificação do conhecimento podem existir e funcionar independentemente (epistemologia autônoma) dos pressupostos epistemológicos fornecidos pela revelação divina como a justificação única da razão humana (epistemologia teonômica). Embora Aquino reconheça que a capacidade humana de raciocinar e obter a verdade depende de Deus como causa, as pré-condições para a inteligibilidade não precisam estar localizadas em nosso pressuposto de que Deus é a condição justificadora necessária para a possibilidade do conhecimento. Esta conclusão deriva de uma distinção epistemológica/ontológica [6] feita em Aristóteles entre "o que é melhor conhecido por nós" versus "o que é melhor conhecido por natureza". [7] A idéia aqui é que a ordem natural de nossa investigação/conhecimento é começar a partir das coisas que são mais conhecidas e claras para nós (por exemplo, percepção sensorial) e proceder em direção àquelas que são mais claras e mais conhecidas por natureza (por exemplo, ser, Deus, etc.). [8] Em outras palavras, temporalmente falando os efeitos são conhecidos primeiro e depois a causa, embora na ordem real de existência a causa (o que é mais conhecido por natureza) seja sempre anterior ao efeito (o que é mais conhecido por nós). Portanto, segundo a Teologia Natural, os primeiros princípios dos fundamentos epistêmicos que são pressupostos não estão localizados na causa mas nos efeitos, ou seja, na percepção dos sentidos e naquilo que é declarado como sendo princípios auto-evidentes (não-demonstráveis). Entretanto, como veremos, mesmo que essa distinção na ordem de nosso conhecer (procedendo do que é melhor conhecido por nós à causa, isto é, o que é melhor conhecido por natureza) se revele verdadeira, afirmar isso se tornará problemático, pois a verdade dessa afirmação depende de já termos estabelecido que podemos saber que essa afirmação é verdadeira. Isso leva-nos a um raciocínio-circular e um bootstrapping-epistêmico. Em outras palavras, o método de descobrir a verdade da distinção estabelecida por Aristóteles entre "o que é melhor conhecido por nós" versus "o que é melhor conhecido por natureza" é suspeito, e apelar para esse princípio epistêmico será falacioso, pois suscita a questão [assume a conclusão]. Se nossa razão e seus processos estão em questão, não podemos usar nossa razão (o que está em questão) para demonstrar como nós conhecemos. Portanto, a Teologia Natural concede uma pretensa autonomia epistêmica àqueles que não pressupõem seu fundamento epistêmico na revelação divina, o que pressupõe uma neutralidade epistêmica na qual se pode, em teoria, raciocinar a partir da experiência sensorial e de princípios "auto-evidentes" até certas conclusões e verdades. No entanto, como já foi dito acima e no que será discutido nas seções seguintes, uma pretensa autonomia epistêmica pela qual alguém fundamenta seus pontos de partida/primeiros princípios epistêmicos no homem ou no mundo, à parte dos pressupostos de uma epistemologia teonômica fundamentada na revelação divina, suscitará a questão e fracassará em estabelecer uma base legítima para o conhecimento.

A teologia natural, que é o modus operandi do Ocidente, é um projeto distinto e difere significativamente do entendimento Ortodoxo Oriental da "revelação natural" e da ordo theologiae Ortodoxa. Novamente, no Ocidente, uma pretensa autonomia epistêmica é concedida ao que é chamado de "razão natural", que se pressupõe funcionar apropriadamente pela luz do intelecto apenas. Isto é explicitado na carta encíclica de João Paulo II, Fides et Ratio, quando ele declara que a razão natural "depende da percepção sensorial e da experiência e que avança pela luz do intelecto apenas...". [9] A Igreja Ortodoxa não apenas não concede uma pretensa autonomia epistêmica à razão natural, como também não faz separação entre revelação natural e sobrenatural. Pois, como afirma Dumitru Staniloae: "A revelação natural é conhecida e compreendida plenamente à luz da revelação sobrenatural, ou podemos dizer que a revelação natural é dada e mantida por Deus continuamente através de seu próprio ato divino que está acima da natureza. É por isso que São Máximo, o Confessor, não faz uma distinção essencial entre revelação natural e sobrenatural ou bíblica. Segundo ele, esta última é apenas a incorporação da primeira em pessoas e ações históricas". [10]

Uma vez que a Teologia Natural é o estudo do que pode ser conhecido sobre Deus a partir da razão humana apenas e independentemente da revelação, ela frequentemente tenta mostrar que certas verdades sobre Deus são demonstráveis pela razão através de argumentos cosmológicos a posteriori. Isso resulta em uma teologia empírica que tem sido historicamente compromissada com um programa filosófico e metafísico helenístico (uma fé filosófica grega pagã na razão), cujas conclusões chegam não ao Deus cristão, mas ao Deus grego dos filósofos. Isto é claramente afirmado em Aquino, que acredita que aquelas coisas sobre Deus que a filosofia grega pagã alcançou estão de certa forma contidas também nas Escrituras, na medida em que as Escrituras falam de muitas coisas que ele acredita que poderiam ser descobertas pela razão humana natural apenas, sem que Deus as revele, ou sem que a revelação natural esteja fundamentada na revelação sobrenatural. Pois no que diz respeito à Escritura, Aquino afirma: "Ela trata Dele não só enquanto Ele pode ser conhecido através das criaturas como os filósofos O conheceram - 'O  que  se  pode  conhecer  de Deus  lhes  é  manifesto' (Rom. I. 19) - mas também enquanto Ele é conhecido somente por Ele mesmo e revelado aos outros." [11]

Ao abraçar a filosofia helenística, o Ocidente e a Teologia Natural como um todo, concebe Deus mais como um conceito filosófico [12] - Deus como substância (ousia) - do que como pessoa (hipóstase), [13] e, portanto, difere substancialmente da Igreja Ortodoxa em sua ordo teologiae.[14] É por isso que muitos escritores têm representado "o pensamento grego antigo como essencialmente 'não-pessoal'"[15]. Entretanto, diferentemente dos seguidores da Teologia Natural que invertem a ordo theologiae, o método patrístico e Ortodoxo é abordar questões teológicas começando com as pessoas Pai, Filho e Espírito Santo. Portanto, os mesmos erros do helenismo que os Padres[16] combateram tão fervorosamente, a saber, a ontologia grega antiga que considera que a unidade e a ontologia de Deus consiste na substância de Deus, acabam sendo os mesmos erros teológicos fundamentais no Ocidente. A filosofia helenística trouxe o Ocidente "de volta à ontologia grega antiga: Deus é primeiramente Deus (Sua substância ou natureza, Seu ser), e então existe como Trindade, ou seja, como pessoas "[17].

Além disso, tendo rejeitado a doutrina Ortodoxa da [distinção] essência/energia, o Ocidente não tem meios teológicos para mediar Deus e o homem, a não ser as idéias filosóficas do homem sobre Deus. Em última análise, essa adesão às idéias em detrimento da pessoalidade é o que privou o Ocidente cristão, pelo menos teologicamente, da comunhão experiencial com as pessoas (hipóstases) de Deus que é mediada de forma única através de Suas energias divinas. Isso significou a adoração de sua idéia de Deus e não das pessoas do próprio Deus que existe primariamente como hipóstases do Pai, do Filho e do Espírito Santo, reveladas nas energias divinas mediadoras incriadas. Assim, a Teologia Natural, invertendo o método patrístico da ordo theologiae correta, juntamente com a adoção dos paradigmas da metafísica e da filosofia gregas, inevitavelmente conduz a uma teologia escolástica e racionalista que resulta na adoração de uma idéia genérica de Deus, ao invés das pessoas reais (hipóstase) da Santíssima Trindade através de Suas energias divinas. Pois é a adesão do Ocidente à doutrina da Simplicidade Divina Absoluta, uma conclusão derivada da Teologia Natural, considerar Deus como "uma substância puramente intelectual acessível à razão, possuindo todas as perfeições em um grau eminente, contendo todas as idéias de todas as coisas, princípio de toda ordem e toda realidade..." [18] Entretanto, sem uma ordo theologiae correta, pela qual os princípios epistêmicos são assumidos dentro da revelação divina da Santíssima Trindade que nos revela a doutrina Ortodoxa da distinção essência/energia, se cai no erro de afastar Deus do mundo. Pois a idéia da simplicidade divina absoluta conclui que Deus não está diretamente presente no mundo através de Suas atividades imanentes incriadas (isto é, energias), o que deixa o homem sem nada além de um mundo materialista de causas mecanicistas presidido por um Deus desconhecido e causalmente inerte - um deus genérico deísta que é concebido como uma idéia, "uma substância puramente intelectual acessível à razão" e não imanente no mundo e encontrado através da experiência.[19]

Além disso, se o conhecimento - como articulado por Aristóteles e Aquino - é sempre derivado da experiência sensorial, incluindo o nosso conhecimento de Deus, então resulta que nenhum desses efeitos criados constitui um conhecimento real do próprio Deus, uma vez que, na visão tomista, a essência de Deus nunca é acessada ou experimentada. [20] Nesse paradigma teológico, apenas se conhece uma série de causas criadas. E se tudo o que podemos conhecer de Deus são Suas causas criadas nesta vida, então deveria se esperar que o Iluminismo concluísse que não faz sentido acreditar em Deus, especialmente quando seu ponto de partida para a teologia é empírico (ou seja, a Teologia Natural) e fundamentado em uma epistemologia autônoma. É claro que os tomistas argumentarão que conhecemos a existência de Deus através da analogia entis, mas isso só complica ainda mais o problema. Pois como a experiência sensorial empírica a posteriori poderia fornecer evidências para um ser que não possui nenhuma relação real com o mundo do ser criado? Segundo Aquino, Deus é uma essência divina absolutamente simples não causada, o que significa que Ele em nada - como diz São João de Damasco - é como o ser criado. Em outras palavras, não pode haver similaridade entre o "ser" condicionado de um mundo criado e temporal e um "Ser" eterno incriado e incondicionado. Portanto, não faz sentido usar a frase analogia entis para chamar Deus de uma primeira causa dentro do contexto da teologia de Aquino. A analogia entis tomista nada tem a dizer sobre aquilo que é totalmente outro e, portanto, ela nunca faz a ponte entre a simplicidade divina absoluta e o ser criado. Agora passemos a considerar a conexão da Teologia Natural com a epistemologia fundacionista clássica.

II. A Epistemologia do Fundacionismo Clássico

A epistemologia fundacionista clássica tem suas raízes em Aristóteles. Foi Aristóteles que argumentou que "nem todo conhecimento é demonstrativo" e que algum conhecimento deve ser "independente de demonstração". Os teólogos que afirmam a teologia natural (e.g., Aquinas, et. al.) concordam com a clássica epistemologia fundacional de Aristóteles, mantendo que todo o conhecimento deve repousar sobre "primeiros princípios" ou "verdades autoevidentes". [21] A Teologia Natural ao se vincular a um modelo fundacionista clássico no que diz respeito à epistemologia, assume dois requisitos em relação ao conhecimento: (1) Nossos estados cognitivos são básicos, ou seja, possuem algum "status epistêmico positivo independentemente de suas relações epistêmicas com quaisquer outros estados cognitivos". E, (2) "Todo estado cognitivo não-básico só pode possuir status epistêmico positivo devido às relações epistêmicas que possui, direta ou indiretamente, com estados cognitivos básicos" [22].

Além dos problemas com o projeto de Teologia Natural do Ocidente, encontrados na adoção do projeto filosófico pagão helenístico com respeito à epistemologia, um projeto que herda uma fé filosófica grega pagã na razão, existem problemas com o compromisso da Teologia Natural com o fundacionismo clássico.  A epistemologia do fundacionismo clássico parece ser filosoficamente problemática, pois assume que existem "dados" não-conceituais que servem como alicerces epistêmicos auto-evidentes/pontos de partida para o conhecimento empírico. Muitas vezes o fundacionista clássico defenderá a justificação epistêmica das crenças reduzindo-as ao que se chama crenças básicas. Por exemplo, para os fundacionistas clássicos do tipo cartesiano (por exemplo, racionalistas em oposição aos empiristas), os fundamentos epistêmicos auto-evidentes (crenças/dados básicos) não se baseiam em dados sensoriais empíricos, mas em outras crenças experimentadas dentro da mente. No entanto, este tipo de fundacionista clássico terá dificuldades em estabelecer como é possível justificar crenças relativas ao mundo externo (o mundo material) com base em crenças relativas aos estados experimentados da mente. Pois, para Descartes, o conhecimento empírico está restrito aos estados subjetivos da mente. Portanto, o desafio e o problema gira em torno das crenças fundacionais e de como justificar que os fundamentos são, de fato, justificações apropriadas. Como os racionalistas farão das crenças a priori inatas e auto-evidentes seus fundamentos para a justificação epistêmica em relação a outras crenças, a justificação dos princípios fundacionistas ou dos dados epistêmicos será, em última instância, circular, pois assumirá que tais crenças básicas epistêmicas justificam seus argumentos de que elas são fundacionais e epistemicamente básicas. Semelhantemente no caso dos empiristas, eles farão as impressões sensoriais seus fundamentos epistêmicos básicos. No entanto, como aponta Sellars, "as sensações não são mais epistêmicas em caráter do que árvores ou mesas, e não são mais inefáveis. Elas são privadas no sentido de que apenas uma pessoa pode percebê-las; mas são públicas no sentido de que você pode relatar, e pode afirmar os mesmos fatos sobre suas sensações que eu posso relatar sobre as minhas próprias sensações". [24] Além disso, o fundacionismo do tipo empirista terá os mesmos problemas e acusações de circularidade que os Racionalistas apresentam na tentativa deles para fornecer justificação para os critérios de justificação (por exemplo, ter os primeiros princípios localizados na sensação como epistemicamente dado ou básico) antes de estabelecer que eles são justificados em fazer tais argumentos. Sellars qualifica o que se entende por um "dado" epistêmico quando ele afirma: "O objetivo da categoria epistemológica do dado é, presumivelmente, explicar a idéia de que o conhecimento empírico repousa sobre um 'fundamento' de conhecimento não-inferencial da matéria de fato". [25] Além disso, o conteúdo não-conceitual da experiência sensorial, parece ser incapaz de justificar crenças proposicionais ou conceituais. Donald Davidson afirma:
A relação entre a sensação e uma crença não pode ser lógica, pois as sensações não são crenças ou outras atitudes proposicionais [ou seja, não são formuladas em termos conceituais]. Qual é então a relação? A resposta é, eu acho óbvia: a relação é causal. As sensações causam algumas crenças e, nesse sentido, são a base ou o fundamento dessas crenças. [26]
No entanto, a causalidade não pode fornecer justificativa adequada para as crenças. As explicações causais não explicam como ou porque uma crença é justificada. [27] Por exemplo, certamente pode ser o caso que "x" me faz acreditar "y" no tempo "t" e sucede que "y" é verdade, mas será que eu tenho conhecimento de que "y" é verdade no tempo "t"? Suponha que um neurocirurgião perverso "x" induz artificialmente uma crença "y" em mim, que é falsa. Então eu teria "x" me fazendo acreditar em "y" no tempo "t" quando "y" é falso. Como o neurocirurgião poderia igualmente me fazer acreditar em algo verdadeiro, surge imediatamente a questão, como eu saberia que "y" é verdadeiro no momento "t" se o meu conhecimento é causado por "x"? A resposta parece óbvia: eu não saberia. Portanto, as explicações causais não podem nos fornecer uma explicação do conhecimento.

III. Coerentismo: O Mundo Carregado-de-Teoria e o Mito do Dado 

O coerentismo [28] é proposto como uma solução para os problemas do fundacionismo. O coerentismo concebe a estrutura do nosso conhecimento e a natureza da justificação em termos de um quadro epistemológico holístico. Em vez de ter "crenças básicas ou fundacionais e não-básicas ou derivadas "[29] , o coerentismo trata todas as nossas crenças igualmente dentro da nossa "rede de crenças "[30]. Em "Dois Dogmas do Empirismo", Quine nos dá uma idéia clara desta concepção epistemológica e explica a idéia de uma "rede de crenças". Ele afirma que "a totalidade dos nossos chamados conhecimentos ou crenças... é um tecido feito pelo homem, que afeta a experiência apenas ao longo das margens". [31] Este "tecido" ou "rede" de crenças, segundo Quine, esta em constante revisão, a fim de manter a margem do nosso esquema conceitual "ajustado à experiência". [32] O que temos nas teorias coerentistas do conhecimento é uma rejeição explícita do que se chama o "dogma do reducionismo" encontrado nas epistemologias fundacionistas clássicas. Quine, por exemplo, torna essa rejeição explícita em seu Dois Dogmas do Empirismo e se refere ao "dogma do reducionismo" como a idéia de que com cada afirmação pode haver "uma faixa única de possíveis eventos sensoriais associada, de tal forma que a ocorrência de qualquer um deles contribuiria para a maior probabilidade de verdade da afirmação". [33] Quine rejeita tal interpretação conceitual e a substitui pela idéia "de que nossas afirmações sobre o mundo externo enfrentam o tribunal da experiência dos sentidos não individualmente e sim apenas como um órgão corporativo". [34] Em outras palavras, as afirmações só têm sentido dentro do grande "tecido" ou "rede" de crenças e estruturas linguísticas. Isto revela outro problema adicional da Teologia Natural, que assume tanto uma epistemologia fundacionista clássica quanto uma abordagem evidencialista aos fatos e significados. O erro aqui, que o coerentista corretamente aponta, é considerar que evidências, afirmações, significados e fatos são todos independentes de teorias e podem ser abordados universalmente de uma maneira neutra, ou seja, que existe uma base comum neutra onde podemos extrair fatos e teorias, construir argumentos, etc. Torna-se claro, mediante reflexão, que o que constitui como evidência ou fato diferirá de acordo com nossos próprios comprometimentos pressuposicionais e determinados por paradigmas epistêmicos/teóricos particulares. Por exemplo, a palavra "amor" significa algo totalmente diferente para um cristão Ortodoxo, em contraste com o que significa para um secularista, que tem um paradigma fundamentalmente diferente. A evidência parecerá muito diferente para um ateu em comparação para um teísta. Estes apontamentos ecoam o pensamento de Wilfrid Sellars que argumentou que apesar de receberem os mesmos dados sensoriais, toda visão será uma visão como, uma visão segundo um conceito [35] ou a rede de nossas próprias crenças e comprometimentos teóricos. O que podemos aprender a apreciar a partir das teorias coerentistas (holismo epistêmico), é que não há observações ou significados independentes de teorias. Todas as observações, portanto, são teoricamente contaminadas/carregadas-de-teorias e não há significados básicos ou dados epistêmicos. [36] Temos argumentos semelhantes encontrados na tese Duhem-Quine da sub-determinação de dados para as teorias científicas. A idéia básica da sub-determinação da teoria científica pela evidência é que a evidência disponível em qualquer momento será insuficiente para determinar que teoria ou crenças devemos adotar. Em outras palavras, perante uma "escolha entre duas teorias ou duas formas de revisar nossas crenças", seremos incapazes de determinar qual teoria escolher com base na "evidência" e, portanto, nossa teoria será sub-determinada, sendo transitoriamente sub-determinada simplesmente pela evidência no presente, ou permanentemente indeterminada por todas as evidências possíveis. [37] Isto se relaciona com nossas considerações epistemológicas, já que dentro do programa epistemológico, como o próprio Quine aborda, duas divisões são feitas: as divisões no 'conceitual' (referente ao significado) e no 'doutrinário' (referente à verdade).

Já abordamos a questão do projeto de redução conceitual acima, o que nos pareceu problemático, pois afirmações e palavras só têm seu significado dentro do grande "tecido" ou " rede" de crenças e estruturas ou paradigmas da linguagem. O projeto de redução doutrinária, por outro lado, está interessado em "se o nosso conhecimento das coisas físicas externas pode ser adequadamente justificado com base em conhecimentos puramente 'sensoriais'". [38] Isto se refere especificamente à questão da justificação dentro da epistemologia. No entanto, como os coerentistas [39] argumentarão: é impossível validar tanto a ciência quanto teorias epistemológicas como verdadeiras, deduzindo-as a partir de experiências sensoriais empíricas. Hume não apenas mostrou isso adequadamente, oferecendo seu problema da indução, como também Sellars fornece sua própria crítica aos teóricos dos dados-sensoriais em seu Mito do Dado. [40] Os teóricos dos dados-sensoriais, como comenta James O'Shea, "estavam geralmente empenhados em defender a idéia de um dado epistêmico, o que... exige que o dado seja o tipo de coisa que possa fornecer evidências fundacionais para nossas afirmações sobre como as coisas estão no mundo." [41] E como mostra a crítica de Sellars, nenhum item do conhecimento empírico pode servir à função de um dado epistêmico, o que dá o golpe devastador ao fundacionismo clássico, e consequentemente, à Teologia Natural. Embora as teorias coerentistas tenham alguma semelhança com uma abordagem Ortodoxa, haverá problemas fundamentais em relação a essas teorias epistemológicas autônomas também. Por exemplo, ao criticar o fundacionismo clássico, o coerentismo não escapa de fato à problemática e ao real problema fundacional. Ele apenas oferece outra "versão do fundacionismo que sustenta que todas as crenças são fundacionais". Além disso, as tentativas do coerentismo para contornar o problema da circularidade serão insatisfatórias, pois se nenhuma crença na rede de estruturas ou paradigmas da linguagem é justificada em primeiro lugar, então o que fará com que todo o paradigma se justifique? Como aponta Michael Depaul: "podemos dizer que o coerentismo parece ter tanta probabilidade de êxito quanto uma brigada de baldes [nota do tradutor: brigada de baldes é um método de transporte de água em baldes onde os baldes são passados de uma pessoa para a próxima numa fila] que não termina num poço, mas simplesmente se move em círculo".[42] O problema é o de determinar nosso critério epistêmico de justificação antes de podermos determinar nosso critério de justificação, o que não é possível. Isto direciona nossa atenção, portanto, para os argumentos transcendentais.

IV. Argumentos Transcendentais 

O que são Argumentos Transcendentais? Quando consideramos a existência do conhecimento, dos fatos, da validade da lógica e dos argumentos, das conclusões derivadas da experiência, uma questão importante surge para o questionador reflexivo. Como se determina que a razão humana, sem ajuda de qualquer outros poderes, pode realmente alcançar o que ela se propõe a fazer, ou seja, conhecer a realidade e o que é verdadeiro? Em outras palavras, exclusivamente dentro da esfera da razão humana, podemos determinar se o conhecimento existe? [43] Como todas as pessoas pressupõem algo, um pre-comprometimento no uso da lógica, da razão, da evidência, dos argumentos, etc., não há ninguém que seja pressuposicionalmente neutro quando se trata de questões factuais e da experiência. Consequentemente, o uso da razão, lógica, evidência, argumentos, etc. não é algo provado pela experiência ou pela razão. [44] É aquilo através do qual a pessoa procede para provar tudo o mais. O que encontramos em tal análise é que, em vez de provar fatos, inevitavelmente suscita-se a questão. Portanto, duas questões surgem imediatamente: (1) quais são as pré-condições necessárias para a inteligibilidade, ciência, lógica, experiência e moralidade que devem ser pressupostas para fundamentar e justificar o uso da razão, lógica, evidência, argumentos, etc., e (2) pode a razão humana, quando isolada apenas dentro da sua própria esfera da razão, determinar se seus processos são legítimos de tal forma que possamos conhecer qualquer coisa sem cair na circularidade viciosa do bootstrapping epistêmico?

Uma vez que o uso da razão, lógica, evidência, argumentos, etc. não é algo provado pela experiência ou dedução, mas sim aquilo através do qual procedemos para provar tudo o mais, a tarefa de descobrir as condições necessárias para a possibilidade do conhecimento situa-se no domínio dos argumentos transcendentais. Os argumentos transcendentais, inicialmente cunhados por Kant na dedução transcendental da sua Crítica da Razão Pura, são argumentos que tentam estabelecer as condições transcendentais para a possibilidade do conhecimento. Para Kant, esta é a tentativa da mente de estabelecer uma conclusão, não por meio da dedução, mas sim para chegar a uma conclusão de forma transcendental, [45] ou seja, o processo pelo qual se mostra que se a conclusão não é verdadeira, o conhecimento em si não seria possível.[46] Esta é uma característica essencial dos argumentos transcendentais. Em outras palavras, a forma de um argumento transcendental é a seguinte: X é uma condição necessária para a possibilidade de Y, de tal forma que Y não pode ser obtido sem X. Além disso, dado que X seria uma condição para Y, diz-se que a afirmação (Y [?] X) não é meramente uma verdade a posteriori necessária, estabelecida de acordo com as leis naturais que regem nosso mundo atual, mas que é uma verdade a priori necessária e metafísica. Em outras palavras, a verdade desta afirmação não é descoberta através da experiência das ciências empíricas (por exemplo, água = H20) [47], mas sim esta verdade se mantém metafisicamente tal que X é uma condição para Y em todos os mundos possíveis. Portanto, a afirmação feita por argumentos transcendentais, de que X é uma condição para Y, equivale a 'X é uma condição necessária para Y,' [48] e esta condição necessária possui força modal. Dentro dos argumentos transcendentais, não somente X é uma condição necessária para a razão ou o pensamento humano, como é uma condição necessária para a possibilidade da razão humana. Pois mesmo que não existisse pensamento ou razão humana, X ainda teria de existir, pois X é uma condição necessária para a possibilidade lógica do pensamento humano. Portanto, de acordo com a lógica modal S5, podemos atribuir operadores modais às nossas premissas ao representar formalmente nosso argumento transcendental (onde □ = necessariamente, e ◊ = possivelmente) no seguinte silogismo dedutivo válido:


Como James Anderson observa ao construir um argumento transcendental segundo a lógica modal S5 (como visto acima), quando a premissa transcendental (3) é expressa como uma afirmação sobre uma condição necessária para a possibilidade do pensamento humano, então o argumento transcendental conclui que X não é apenas transcendentalmente necessário, mas que ele é "necessário também no sentido mais amplo da lógica". [49] Isto fornece o tipo mais forte de argumento transcendental. Retornaremos a esta formulação lógica do argumento transcendental quando considerarmos o argumento transcendental para a existência de Deus.

O Argumento Transcendental para a Existência de Deus (ATD), que não deve ser confundido com um argumento do Deus-das-lacunas (uma falácia), simplesmente elimina todas as objeções e desculpas para não se acreditar em Deus. O ATD é um argumento pressuposicional e critica os pressupostos de outras cosmovisões. Uma vez que todas as pessoas pressupõem algo (por exemplo, um pre-comprometimento no uso da lógica, da razão, da evidência, da argumentação, etc.), não há ninguém que seja pressuposicionalmente neutro quando se trata de questões factuais e de experiência (como gostaria a Teologia Natural/fundacionismo clássico). Como dito anteriormente, o uso da razão, da lógica, da evidência, dos argumentos não é algo provado pela experiência. É aquilo através do qual procedemos para provar tudo o mais. No entanto, é preciso fundamentar e justificar que a razão, a lógica e os argumentos funcionam e são operações válidas para o que eles pensam que essas operações podem obter e estabelecer (trata-se de uma análise meta-lógica). O problema é que o homem, fechado dentro de sua própria esfera da razão, não pode apelar para aquilo que está em questão (isto é, razão, lógica e argumentos) para estabelecer que a razão, a lógica e os argumentos são válidos e funcionam. Isso seria cair na falácia do raciocínio circular (petição de princípio) e do bootstrapping epistêmico. Um Argumento Transcendental, portanto, tenta descobrir as pré-condições para a possibilidade da razão, da lógica e da argumentação. Ele faz isso tomando algum aspecto da racionalidade humana e investiga o que deve ser verdade (ou seja, a condição necessária) para que processos racionais válidos sejam possíveis. Mais uma vez, como já vimos, os argumentos transcendentais têm tipicamente a seguinte forma: Para que x seja verdade, y também deve ser verdade, pois y é a pré-condição (ou a condição necessária) de x. E dado que x é verdade, y é verdade.

O que o ATD demonstra é que existe apenas uma condição única que satisfará as condições para a possibilidade de conhecimento, racionalidade, lógica e argumentos. A pré-condição necessária (o que deve ser pressuposto) para se ter conhecimento, lógica e argumentos é a noção cristã Ortodoxa de Deus como Ele se revelou a nós (a revelação, portanto, é necessária, pois não conseguimos sair do pântano epistêmico da circularidade). Em outras palavras, o ATD argumenta a partir da impossibilidade do contrário. O contrário do cristianismo Ortodoxo (qualquer visão que negue a visão cristã Ortodoxa de Deus) mostra-se impossível. E se a negação do cristianismo Ortodoxo é falsa, então o cristianismo Ortodoxo prova-se verdadeiro. Ou seja, a estrutura do argumento é um silogismo disjuntivo. Ou A ou não-A; não-não-A; portanto A. Consequentemente, se o ATD estabelece que o cristianismo Ortodoxo é a pré-condição conceitual necessária para a racionalidade, a lógica e a argumentação, então, segue-se que devemos manter (pressupor) a cosmovisão cristã Ortodoxa como ela nos foi revelada para sermos racionais. Além disso, se alguém se recusa a aceitar a cosmovisão cristã Ortodoxa ou a existência de Deus, então ele não tem fundamento para a racionalidade e, sem tal fundamento, não tem base racional para formular uma objeção contra o ATD ou a conclusão do ATD, de que a noção Ortodoxa de Deus (que não é uma noção teísta genérica de Deus, mas um Deus pessoal único à Ortodoxia, a única condição que satisfaz as exigências colocadas) não existe. Portanto, o Deus do cristianismo Ortodoxo existe.

Mais uma vez, a obtenção das condições necessárias para a possibilidade do conhecimento não pode ser logicamente ou epistemicamente dependente de argumentos lógicos ou epistemológicos, uma vez que isso resultaria em suscitar a questão [assumir a conclusão] e equivaleria a um bootstrapping epistêmico. Nem a veracidade da afirmação de que tais e tais condições são necessárias para a possibilidade do conhecimento (se são as condições necessárias) dependeria de lógica, argumentos ou demonstrações silógicas. Pois o que está sendo buscado e identificado não está sendo feito por meio de uma análise lógica ou epistemológica, mas sim de uma análise meta-lógica ou meta-epistemológica. Estamos buscando os fundamentos epistêmicos próprios que tornariam possíveis a lógica, os argumentos, os silogismos e a razão. Portanto, as condições necessárias que justificariam o nosso conhecimento devem ser tanto metafisicamente quanto epistemicamente anteriores à epistemologia e aos argumentos. No entanto, uma vez obtidas tais condições, que fundamentariam e justificariam o uso da lógica e dos argumentos, isso não impede que se formule de forma recursiva/retroativa o argumento de forma silogística para ilustrar pedagogicamente o argumento transcendental feito, se você reconhecer que a verdade da conclusão do argumento não depende do argumento em si, mas sim do que é anterior ao argumento.

Portanto, um argumento transcendental para a existência de Deus pode ser formulado em dois silogismos para ilustrar que Deus é a condição necessária para a possibilidade da razão e da experiência. O primeiro é um silogismo do modus ponens:



Isto pode ser traduzido na forma de argumento modal construída anteriormente:


Uma vez que se pode questionar se a existência de Deus (Y) é de fato uma condição necessária para a possibilidade de conhecimento e experiência (X), em oposição a algo mais que satisfaria a condição necessária para a possibilidade de conhecimento, formamos o segundo argumento (silogismo disjuntivo):


Naturalmente, precisaremos ver porque Deus satisfaz a condição necessária para a possibilidade do conhecimento, e porque a variedade de outras pré-condições possíveis não satisfaria. Isto é voltar à nossa análise anterior. Pois o que a história da filosofia e da epistemologia nos ensina é que o homem isolado dentro de sua própria esfera da razão e comprometido com uma epistemologia autônoma, à parte a revelação teísta, não pode justificar a existência do conhecimento nem estabelecer se seus processos racionais são legítimos. [50] Tragicamente, o homem em sua pretensa autonomia e rebelião contra Deus é incapaz de conhecer "a natureza de si mesmo, a lógica, o mundo, os universais, ou como todos eles estão, ou poderiam estão, relacionados. Em suma, ele não pode alcançar uma teoria coerente do conhecimento. Consequentemente, nenhuma crença pode ser justificada, e nenhuma crença pode alcançar o nível de conhecimento". Como explica São Justino Popovich: "Há um abismo intransponível entre o homem e a verdade. O homem está em um lado desse abismo e não consegue encontrar nenhuma maneira de chegar ao outro, onde a Verdade transcendente se encontra". A razão, sem auxílio ou ajuda de alguma forma, é incapaz de determinar se seus processos são legítimos e se ela pode conhecer qualquer coisa. Portanto, a razão humana requer a ajuda do divino (ou seja, a assistência sobrenatural pela graça) através da fé, e é esta fé que permite ao participante receber o conhecimento como um dom de Deus. Esse conhecimento ultrapassa os limites da filosofia (razão humana) e fundamenta (e justifica) a existência do conhecimento alcançado por meio do intelecto humano. Como explica São Justino Popovich:
O poder da Verdade, do outro lado, responde à impotência do homem deste lado. A Verdade transcendente atravessa o abismo, chega no nosso lado e se revela - Ele mesmo - na pessoa de Cristo, o Deus-homem. Nele, a Verdade transcendente torna-se imanente no homem. O Deus-homem revela a verdade em e através de Si mesmo. Ele a revela, não através do pensamento ou da razão, mas pela vida que é Sua. Ele não apenas tem a verdade, Ele é Ele mesmo a Verdade. Nele, o Ser e a Verdade são um só. Portanto, Ele, em Sua pessoa, não apenas define a Verdade, mas mostra o caminho para ela: aquele que permanece Nele conhecerá a Verdade, e a Verdade o libertará (cf. João 8:32) do pecado, da falsidade e da morte. [53]
A solução para nossa situação difícil epistêmica, que a razão autônoma do homem não pode obter dentro de sua própria esfera de raciocínio, é uma verdade que é tanto pessoal quanto obtida através da vivência de uma vida de fé na humildade, permanecendo no único que está numa posição de conhecer a Verdade. Unindo-se a Cristo desta maneira, o homem pode alcançar o verdadeiro conhecimento. Pois, como na "pessoa do Deus-homem, Deus e o homem estão indissoluvelmente unidos" [54], o abismo entre o homem e a verdade torna-se superado. Através do theoanthropos nossos intelectos são "renovados, purificados e santificados... aprofundados e divinizados e tornados capazes de captar as verdades da vida à luz do Deus-feito-homem. No Deus-homem, a Verdade absoluta foi dada na sua totalidade de uma maneira real e pessoal." [55]

Portanto, a única condição que satisfará a possibilidade do conhecimento e a transpor o abismo entre o homem e a verdade é a idéia única de Deus coerentemente articulada na teologia da Igreja Ortodoxa que preservou a doutrina correta de Deus recebida na revelação divina [56] da Santíssima Trindade. Pois somente na doutrina Ortodoxa de Deus veremos que Deus (a condição necessária) é racional, onisciente, transcendente, não-contingente (necessário), intencional em Sua criação (em oposição à criação sendo acidental), um ser pessoal e comunal (tendo a perichoresis dentro de Sua Trindade), tendo energias divinas incriadas distintas da essência comum, que se encarna como o Deus-homem (o único que pode transpor a lacuna epistêmica), envia Seu Espírito Santo para iluminar e resolver a dificuldade epistêmica do homem, e revela estas verdades aos Seus Apóstolos e institui a Igreja una, santa, católica e apostólica [57] para preservar esta revelação inalterada e transmitida aos fiéis, não apenas para resolver nossa dificuldade epistêmica, mas para nos salvar da morte e do demônio. Essas condições só podem ser encontradas unicamente na Igreja Ortodoxa, que nos dá uma visão coerente de quem é Deus e como podemos conhecê-Lo. Além do mais, ao refletirmos, veremos que, sem isso, permaneceremos na mesma dificuldade epistêmica delineada anteriormente das diversas epistemologias autônomas e, consequentemente, não teremos qualquer justificativa para a existência do conhecimento. Portanto, devemos pressupor [58] o Deus que é "o Senhor e que se revelou a nós" [59] como o fundamento e a pré-condição necessária do conhecimento, a fim de possuir qualquer conhecimento. Ao pressupor Deus como condição necessária para a possibilidade do conhecimento o homem entrega sua "autonomia à revelação de Deus, não como uma conclusão que tenha cumprido as normas de seu critério epistemológico, mas como o fundamento e a pré-condição do próprio critério epistemológico. Sem uma revelação vinda de Deus, não podemos saber que todos os objetos do mundo estão racionalmente relacionados e que nossos atributos são apropriados para conhecer [o mundo]." [60] Isso nos leva a dirigir a nossa reflexão à apologética pressuposicional.

V. O que é a Apologética Presuposicional?

Embora o conceito, seu uso e aplicação na apologética cristã remonte aos Apóstolos e aos primeiros Padres da Igreja, a frase "apologética pressuposicional" foi popularizada pela primeiramente com a obra do teólogo reformado holandês Cornelius Van Til e seus alunos Greg Bahnsen e John Frame. Embora houvesse certos problemas com essas apologéticas pressuposicionais calvinistas devido à sua teologia reformada e concepção particular de Deus, sem dúvida há semelhanças com os métodos apologéticos dos Padres da Igreja, os quais eles certamente tomaram emprestados. Portanto, vale a pena dar uma olhada no que se entende por apologética pressuposicional e como ela difere das abordagens clássica ocidental e evidencialista. A apologética pressuposicional, antes de mais nada, rejeitou a idéia comum à maioria dos apologistas que assumiram que poderia haver uma posição epistêmica neutra e autônoma ao confrontar a descrença ou um ponto de partida neutro a partir do qual seu oponente poderia argumentar contra a existência de Deus - uma negação do fundacionalismo clássico. Em contraste com a teologia natural dos apologistas evidencialistas que concediam uma pretensa autonomia epistêmica aos seus oponentes, Van Til argumentou que como Deus é o ponto de partida epistemológico último, não pode haver argumentos para a fé cristã derivados de algo outro que não seja a própria fé e o que é recebido a partir da revelação divina. Como a revelação divina mostra que a autoridade de Deus é última, qualquer tentativa de argumentar a favor da fé cristã baseada em outra autoridade para além da de Deus é, como salienta Van Til, conceder que existe de fato uma autoridade superior ao próprio Deus. Isso, porém, necessitaria ser demonstrado; e uma vez que qualquer tentativa de argumentar a favor de uma autoridade superior a Deus seria autodestrutiva, o homem deve renunciar a um comprometimento com uma epistemologia autônoma e pressupor a verdade da fé cristã como o próprio fundamento da epistemologia. Portanto, contra Teologia Natural, Russell Manion resume:
Deus é provado, não como a conclusão de argumentos teísticos racionais ou empíricos, mas como o próprio fundamento do argumento em si. É com a rendição à visão de Deus sobre Si mesmo, sobre o mundo e sobre nós mesmos, que podemos articular uma teoria coerente do conhecimento. A revelação de Deus não é validada por alguma epistemologia autônoma. Ao contrário, nossa epistemologia é validada pela revelação de Deus e pela história contida nessa revelação. A revelação de Deus é auto-autenticante, porque, através dela, tudo mais é autenticado. [61]
VI. Conclusão: Apologética Presuposicional nos Padres da Igreja 

Não apenas encontramos nos Padres um sistema epistêmico diferente dos princípios epistêmicos da Teologia Natural e do fundacionismo clássico, o modo de apologética também é significativamente diferente. Como mencionamos anteriormente, uma teoria Ortodoxa do conhecimento tem mais semelhanças em comum com as teorias coerentistas do que com as epistemologias fundacionistas. Consequentemente, os métodos apologéticos se assemelharão a "um método comum a todas as formas de metodologia apologética pressuposicional, ou seja, a da destruição de todo o sistema. Por exemplo, como Bahnsen observa em relação à metodologia de Van Til: 'sistemas inteiros estão em oposição'. [62]"[63] Aqui os sistemas têm a conotação de um paradigma, derivado do grego συστηµατικός, que significa "de ou como um todo organizado". Pe. Joshua Schooping explica que no "neste contexto, então, um 'sistema' pode ser entendido como aquilo onde os elementos coalescem, pelo menos na 'intenção', de tal forma que o que está no fim se alinha holisticamente com o que está no início e também com o que está no meio". [65] Por isso que Florovsky, a respeito da concepção dos Padres, afirma que a "verdade era, segundo Santo Irineu, um 'sistema bem fundamentado, um corpus (adv. haeres. II. 27. I - veritatis corpus), uma 'melodia harmoniosa' (II. 38. 3)".   Portanto, os Padres - como Irineu - não só concebem as posições heréticas como sistemas/paradigmas (embora paradigmas incoerentes) in toto, possuindo falsos pontos de partida pressuposicionais (cânones da verdade [67]), eles consideram a fé Ortodoxa e a dogmática como um sistema coerente capaz de destruir outros sistemas em oposição a ele. Pois como Schooping salienta a respeito da concepção dos Padres sobre o sistema de fé, "não apenas oferece demonstração construtiva e prova dos fundamentos do sistema cristão [por exemplo, argumentos transcendentais], [68] mas também é ofensivo na medida em que procura, como um verdadeiro sistema, colocar o todo de um falso sistema diante de si para destruí-lo in toto, como um todo em oposição a outro todo". [69] Portanto, mais uma vez estamos diante do nosso argumento disjuntivo, que afirma, como aponta Bahnsen: "Ou se mantém todo o sistema do cristianismo ortodoxo... ou se nega todo o sistema." [70] Entretanto, ao negar o sistema da Fé Ortodoxa, a pessoa é levada a uma descrição incoerente tanto do mundo quanto do conhecimento e assim a sua posição se torna auto-contraditória. Pois ao explorar a questão: "Qual é o fundamento do intelecto e do conhecimento?", encontramos, como explica São Justino Popovich, que o homem, em sua pretensa autonomia epistêmica, "tenta explicar a si mesmo em termos de coisas, mas com um total fracasso, pois ao explicar a si mesmo em termos de coisas, o homem no final se reduz a uma coisa, a matéria... Ao tentar explicar o homem pelo homem, a filosofia alcança um resultado bizarro: apresenta uma imagem espelho de uma imagem espelho. Em última análise, tal filosofia, qualquer que seja seu caminho, centra-se na matéria e no homem. E de tudo isso decorre uma coisa: a impossibilidade de qualquer conhecimento verdadeiro do homem ou do mundo". [71] Por outro lado, tendo nossos primeiros princípios epistemológicos, que são pressupostos como as condições necessárias para o conhecimento, colocados dentro do que Santo Irineu chama de cânone da verdade encontrado em Cristo, [72] a Fé Ortodoxa não apenas obtém seguramente a única condição para a possibilidade do conhecimento, a Ortodoxia fornece uma descrição coerente de Deus, do homem e do mundo. Portanto, se o conhecimento é de alguma forma possível, então a epistemologia teonômica da Igreja Ortodoxa e a epistemologia autônoma são sistemas antitéticos, nos quais um deve ser verdadeiro e o outro falso. Como, tendo mostrado que os sistemas de epistemologia autônoma não são possíveis, [73] devemos concluir que a única pré-condição para o conhecimento é a existência de Deus e a veracidade de Sua revelação como transmitida "de uma vez por todas aos santos" [74] e preservada na Igreja Ortodoxa.

An Orthodox Theory of Knowledge: The Epistemological andApologetic Methods of the Church Fathers pelo Diácono Dr. Ananias Sorem

Notas

[1] Engelhardt, After God, 216

[2] O Padre da Igreja, Tertuliano, ao considerar o que Atenas tem a ver com Jerusalém, comenta os escritos de Paulo, afirmando: "Ele esteve em Atenas, e teve suas conversas (com os filósofos) familiarizando-se com aquela sabedoria humana que alega conhecer a verdade, mas que apenas a corrompe, e é ela mesma dividida em suas próprias múltiplas heresias, pela variedade de suas seitas mutuamente repugnantes. O que Atenas realmente tem a ver com Jerusalém? Que concórdia existe entre a Academia e a Igreja? O que há entre os hereges e os cristãos? Nossa instrução vem do "alpendre de Salomão" [Atos 3:5] que ele mesmo ensinou que "o Senhor deve ser buscado na simplicidade de coração" [Sb. 1:1]. Para longe com todas as tentativas de produzir um cristianismo maculado de tipo estoico, platônico e dialético! Não queremos nenhuma disputa curiosa depois de desfrutar do evangelho! Com a nossa fé, não desejamos mais crenças. Pois esta é a nossa fé louvável, e não há nada em que devamos crer além desta". (Tertuliano 1994, "Prescrição contra os hereges" VII, p. 246)

[3] "A teologia natural é um programa de investigação sobre a existência e os atributos de Deus, sem fazer referência ou apelar a qualquer revelação divina. Na teologia natural, pergunta-se o que significa a palavra "Deus", se e como os nomes podem ser aplicados a Deus, se Deus existe, se Deus conhece as futuras escolhas livres das criaturas, e assim por diante. O objetivo é responder a essas perguntas sem utilizar nenhuma afirmação extraída de qualquer texto sagrado ou revelação divina, ainda que alguém possa manter tais afirmações". (https://www.iep.utm.edu/theo-nat/#H2)

[4] Por exemplo, "Dentro da teologia cristã ocidental, Deus foi considerado cada vez mais como uma idéia filosófica, ao invés da Pessoa do Pai, que gera o Filho, e a partir de Quem somente procede o Espírito Santo. Deus como o mais pessoal de tudo foi obscurecido por uma teologia com uma robusta cobertura filosófica que tornou a abordagem teológica de Deus primariamente de erudição, não de esforço ascético de oração". (Engelhardt, After God, 35)

[5] Tomás de Aquino, Summa Theologica, pars. I, q.2, a.2.

[6] Deus é a causa do fato de conhecermos, mas o nosso conhecimento não depende que reconheçamos Deus como a causa do nosso conhecimento. Portanto, diz-se que na ordem real das coisas (ontológica) a causa é primeiro, mas na ordem temporal do nosso conhecer (epistemológico) os efeitos são conhecidos primeiro.

[7] Para saber mais sobre a distinção de Aristóteles em "O que é melhor conhecido por nós" vs. "O que é melhor conhecido em si mesmo/por natureza" veja Analíticos posteriores 71b32; Analíticos anteriores 68b35-7; Física Α.1, 184a16-20; Metafísica Ζ.3, 1029b3-12; Tópicos Ζ.4, 141b2-142a12.

[8] "A forma natural de fazer isso é partir das coisas que são mais conhecíveis e óbvias a nós e proceder para aquelas que são mais claras e mais conhecíveis por natureza; pois as mesmas coisas não são "conhecíveis relativamente a nós" e "conhecíveis" sem qualificações. Portanto, na presente investigação devemos seguir esse método e avançar do que é mais obscuro por natureza, mas mais claro para nós, para o que é mais claro e mais conhecível por natureza." (Aristóteles, Física 184a15-21)

[9] João Paulo, Fides et Ratio, Cap. 1, 8-9.

[10] Dimitrue Staniloae, The Experience of God, 1.

[11] Tomás de Aquino, Summa Theologica, pars. I, q. 2, a. 6

[12] "Dentro da teologia cristã ocidental, Deus foi considerado cada vez mais como uma idéia filosófica, ao invés da Pessoa do Pai, que gera o Filho, e a partir de Quem somente procede o Espírito Santo. Deus como o mais pessoal de tudo foi obscurecido por uma teologia com uma robusta cobertura filosófica que tornou a abordagem teológica de Deus primariamente de erudição, não de esforço ascético de oração". (Engelhardt, After God, 35)

[13] "Quando Deus estava conversando com Moisés, Ele não disse: "Eu sou a essência", mas "Eu sou Aquele que é". Assim, não é Aquele que é que deriva da essência, mas a essência que deriva Dele, pois é Ele que contém todo o ser em Si mesmo."  (São Gregório Palamas, Tríades em Defesa dos Santos Hesicastas, III.ii.12)

[14] “ordo theologiae: Farrell enfatiza que o método patrístico (ou seja, Ortodoxo) de abordar as questões teológicas é, em parte, um fiel cumprimento da ordem correta na qual as próprias questões teológicas são colocadas. Os Padres Ortodoxos da Igreja começam com as pessoas Pai, Filho e Espírito Santo; através de sua experiência de Deus o Padre iluminado entende que ele não se fundiu com a essência divina, porque sabe que está em comunhão com um Deus amoroso; Ele não se tornou Deus". (James Kelley, "Joseph P. Farrell: An Overview of the Theological works).”

[15] John Zizioulas, Being as Communion, 27.

[16] O Padre da Igreja, Tertuliano, ao considerar o que Atenas tem a ver com Jerusalém, comenta os escritos de Paulo, afirmando: "Ele esteve em Atenas, e teve suas conversas (com os filósofos) familiarizando-se com aquela sabedoria humana que alega conhecer a verdade, mas que apenas a corrompe, e é ela mesma dividida em suas próprias múltiplas heresias, pela variedade de suas seitas mutuamente repugnantes. O que Atenas realmente tem a ver com Jerusalém? Que concórdia existe entre a Academia e a Igreja? O que há entre os hereges e os cristãos? Nossa instrução vem do "alpendre de Salomão" [Atos 3:5] que ele mesmo ensinou que "o Senhor deve ser buscado na simplicidade de coração" [Sb. 1:1]. Para longe com todas as tentativas de produzir um cristianismo maculado de tipo estoico, platônico e dialético! Não queremos nenhuma disputa curiosa depois de desfrutar do evangelho! Com a nossa fé, não desejamos mais crenças. Pois esta é a nossa fé louvável, e não há nada em que devamos crer além desta". (Tertuliano 1994, "Prescrição contra os hereges" VII, p. 246)

[17] John Zizioulas, Being as Communion, 40.

[18] Vladimir Lossky, Orthodox Theology, 21.

[19] Em jogo está um choque de mundos morais e metafísicos. O cristianismo tradicional está ancorado em uma experiência noética do Deus transcendente a Quem todos devem se conformar em termos contrários à moral e aos sentimentos de secularidade e modernidade. O cristianismo pós-tradicional, em contraste, tem raízes profundas no empreendimento escolástico cristão ocidental, que desde a Idade Média tem procurado relocar o divino dentro dos limites da razão e de uma lei natural que pode ser entendida em termos seculares... Essa compreensão racionalista e liberal da religião busca uma unidade na razão com o divino entendido como um princípio geral ou idéia que orienta as aspirações humanas". (Englehardt, The Foundations of Christian Bioethics, 149)

[20] Claro, há o exemplo da encarnação, mas explicar como a encarnação acontece quando se está comprometido com uma doutrina da simplicidade divina absoluta se torna filosófica e teologicamente problemático.

[21] Alguns "acham que todas as verdades são demonstráveis... supondo que não há outra forma de saber senão pela demonstração, acham que isso equivale a um regresso infinito, argumentando que se por detrás do anterior não há um primário, não poderíamos conhecer o posterior através do anterior (nisto eles têm razão, pois não se pode atravessar uma série infinita)... A nossa doutrina é a de que nem todo o conhecimento é demonstrativo, mas que o conhecimento das proposições imediatas é, pelo contrário, independente da demonstração. (Que tal seja uma necessidade, eis o que é evidente. Se for necessário conhecer as premissas anteriores, das quais a demonstração deriva, e se a regressão deve terminar no momento em que atingimos as verdades imediatas, estas verdades serão necessariamente indemonstráveis)." (Aristóteles, Analíticos Posteriores 72b5-23)


[23] "Uma crença particular é básica apenas no caso em que é epistemicamente justificada e deve sua justificação a algo diferente das outras crenças justificadas ou suas inter-relações; uma crença é não-básica apenas no caso em que é epistemicamente justificada, mas não básica. Os fundacionistas concordam que se alguém tem uma crença não-básica, então - no fundo - ela deve sua justificação a pelo menos uma crença básica. Existem crenças justificadas porque - e somente porque - existem crenças básicas. Tal é o gênero Fundacionismo. Uma espécie é o Fundacionismo Experiencial, a concepção de que uma crença básica pode dever sua justificativa à experiência."  Daniel Howard-Snyder, “On an ‘Unintelligible’ Idea: Donald Davidson’s Case Against Experiential Foundationalism.” The Southern Journal of Philosophy (2002), 523.

[24] Sellars, SRLG, 40.

[25] Sellars, “Empiricism and the Philosophy of Mind,” I.3.

[26] Donald Davidson, “A Coherence Theory of Truth and Knowledge,” 428.

[27] Davidson também concorda que "uma explicação causal de uma crença não mostra como ou porque a crença é justificada". (Ibid.)

[28] De acordo com o coerenteismo acerca da justificação epistêmica, as crenças são justificadas "holisticamente" ao invés de uma forma linear e fragmentada. Cada crença é justificada em virtude de sua coerência com o resto do que se acredita, ou seja, em virtude de pertencer a um conjunto coerente ou rede de crenças. O coerentista evita o aparecimento de uma circularidade viciosa, insistindo que não se precisa primeiro ter justificativa para acreditar nas outras proposições em seu sistema de crenças". (https://plato.stanford.edu/entries/justep-foundational/)


[30] Veja Quine e Ullian 1970, cf. Neurath 1983/1932 and Sosa 1980.

[31] Quine, “Two Dogmas of Empiricism,” 42. 31

[32] Ibid., 44.

[33] Ibid., 40.

[34] Ibid., 41.

[35] O próprio Kant trata dessa mesma idéia quando afirma: "pensamentos sem conteúdo são vazios, e intuições sem conceitos são cegas. É, portanto, tão necessário tornar nossos conceitos sensíveis, ou seja, acrescentar-lhes o objeto a eles na intuição, quanto tornar nossas intuições inteligíveis, ou seja, submetê-las a conceitos". (Kant, The Critique of Pure Reason, [A51/B76])

[36] A idéia de um "dado" epistêmico muitas vezes depende da teoria dos dados sensoriais, que é explicada na famosa citação de H.H. Price: "Quando vejo um tomate há muito que posso duvidar... Uma coisa, porém, não posso duvidar: que existe uma mancha vermelha de forma redonda e mais ou menos volumosa, destacando-se de um fundo de outras cores, e tendo uma certa profundidade visual, e que todo esse campo de cor é apresentado à minha consciência..." (Price 1932: 3)


[38] Stroud, "Naturalized Epistemology", 222.

[38] Como diz Donald Davidson: "o que distingue uma teoria de coerência é simplesmente a afirmação de que nada pode valer como razão para uma crença, exceto outra crença." (Davidson, "A Coherence Theory of Knowledge and Truth", em Truth and Interpretation)

[39] O argumento de Wilfrid Sellars de que o dado é um mito, do "Empirismo e a Filosofia da Mente".
1. Um estado cognitivo é epistemicamente independente se possuir o seu status epistêmico independentemente de ser inferido ou inferível a partir de algum outro estado cognitivo. [Definição de independência epistêmica]. 
2. Um estado cognitivo é epistemicamente eficaz - é capaz de suportar epistemicamente outros estados cognitivos - se o status epistêmico desses outros estados puder ser validamente inferido (formal ou materialmente) a partir do seu status epistêmico. [Definição de eficácia epistêmica]. 
3. A doutrina do dado é que qualquer conhecimento empírico que p exige algum (ou é ele próprio) básico, ou seja, um conhecimento epistemicamente independente (que g, h, i, ...) que é epistemicamente eficaz em relação a p. [Definição de doutrina do dado].
4. As relações inferenciais são sempre entre itens com forma proposicional.
[Pela natureza da inferência]. 
5. Por conseguinte, os elementos não proposicionais (como os dados do sentidos) são epistemicamente ineficazes e não podem servir como aquilo que é dado.
[A partir de 2 e 4]. 
6. Nenhum estado mental adquirido inferencialmente, estruturado de forma proposicional, é epistemicamente independente.
[A partir de 1]. 
7. O exame de múltiplos candidatos a estados cognitivos não-inferencialmente adquiridos, estruturados de forma proposicional, indica que o status epistémico dos mesmos pressupõe a posse pelo sujeito conhecedor de outros conhecimentos empíricos, tanto de particulares como de verdades empíricas gerais.
[Da análise de Sellars das afirmações sobre dados dos sentidos e aparências nas Partes 1-IV da EPM e sua análise da autoridade epistémica na Parte VIII]. 
8. A pressuposição é uma relação epistémica e, portanto, inferencial.
[Assumido (veja PRE)]. 
9. O conhecimento empírico não-inferencialmente adquirido que pressupõe a posse pelo sujeito conhecedor de outro conhecimento empírico não é epistemicamente independente.
[A partir de 1, 7, e 8]. 
10. Qualquer cognição empírica, proposicional, é adquirida inferencialmente ou não-inferencialmente.
[Meio excluído]. 
11. Por conseguinte, as cognições estruturadas de forma proposicional, adquiridas inferencialmente ou não-inferencialmente, nunca são epistemicamente independentes e não podem servir como o dado.
[6, 9, 10, dilema construtivo]. 
12. Toda cognição ou está estruturada de forma proposicional ou não.
[Meio excluído]  
13. Portanto, é razoável acreditar que nenhum item de conhecimento empírico pode servir para a função de um dado.
[5,11, 12, dilema construtivo]. 
 https://plato.stanford.edu/entries/sellars/
[41] James O’Shea, Wilfrid Sellars: Naturalism with a Normative Turn, 111.

[42] “Coherentism” em The Cambridge Dictionary of Philosophy, 134.

[43] "Pode-se ser tentado aqui a responder que, porque nenhum contra-exemplo pode ser imaginado, a universalidade da lógica é inegável. Mas, será que o simples fato de estarmos psicologicamente inclinados de tal maneira que não podemos pensar no mundo em outras categorias além das categorias lógicas, nos justifica concluir que o mundo está vinculado por essas categorias? Por que devemos pensar que nossas limitações psicológicas são descritivas de todo o universo? A incapacidade psicológica de modificar a maneira como pensamos sobre a universalidade da lógica não prova que ela seja, de fato, universal. Significa apenas que não podemos modificar a maneira como pensamos sobre ela". (Russell M. Manion, "The Contingency of Knowledge and Revelatory Theism").

[44] Como observa Clemente de Alexandria: "Se alguém disser que o conhecimento científico é provável com a ajuda da razão, ele precisa perceber que os primeiros princípios não podem ser provados.... Somente pela fé é possível chegar ao primeiro princípio do universo". (Clemente de Alexandria, Stromateis, Livro II, Cap. 4, 13.4-14.1)

[45] Um argumento transcendental é, segundo Kant, "aquele que prova uma conclusão ao mostrar que, a menos que ele seja verdadeiro, a própria experiência seria impossível". (Simon Blackburn, The Oxford Dictionary of Philosophy, 380)

[46] Karl Popper, seguindo Kant, afirma que um argumento transcendental é "um argumento que apela ao fato de que possuímos conhecimento ou que podemos aprender a partir da experiência, e que conclui deste fato que o conhecimento ou a aprendizagem a partir da experiência deve ser possível, e ainda, que toda teoria que implica a impossibilidade de conhecer, ou de aprender a partir da experiência, deve ser falsa, pode ser chamado de 'argumento transcendental'". (“The Logic of Scientific Discovery” p.368 nota)

[47] Veja Kripke, Naming and Necessity (1972) sobre necessidade a posteriori vs. necessidade lógica ou metafísica.

[48] A primeira característica, e talvez a mais definitiva, é que esses argumentos envolvem uma afirmação de uma forma distintiva: a saber, que uma coisa (X) é uma condição necessária para a possibilidade de algo outro (Y), de modo que (diz-se) este último não pode ser obtido sem o primeiro. Ao sugerir que X é uma condição para Y desta forma, esta afirmação é presumida ser metafísica e a priori, e não meramente natural e a posteriori: isto é, se Y não pode ser obtido sem X, isto não é apenas porque certas leis naturais que regem o mundo atual e que podem ser descobertas pelas ciências empíricas tornam isso impossível (da forma que, por exemplo, a vida não pode existir sem oxigênio), mas porque certas restrições metafísicas que podem ser estabelecidas pela reflexão fazem de X uma condição para Y em todos os mundos possíveis (por exemplo, a existência é uma condição para o pensamento, pois ela é metafisicamente necessária para fazer ou ser qualquer coisa).” (Stern, Toward a Transcendental Argument, 3)

[49] James Anderson, “No Dilemma for the Proponent of the Transcendental Argument: A Response to David Reiter,” Philosophia Christi, 11.

[50] "Você pode reconhecer isto como um simples silogismo disjuntivo. Uma vez que o conhecimento é de todo possível, a Epistemologia Teonômica e a Epistemologia Autônoma são sistemas antitéticos. Um deve ser verdadeiro e outro deve ser falso. Se um é falso, então o outro é verdadeiro. Já vimos que, por princípio, a Epistemologia Autônoma não é possível. Partindo desta premissa, todos os fatos e toda a experiência são ininteligíveis. Portanto, devemos concluir que a pré-condição para o conhecimento, para a ciência e para a filosofia é a existência de Deus e a veracidade de sua revelação." (Russell M.Manion, “The Contingency of Knowledge and Revelatory Theism.”)

[51] Ibid.

[52] São Justino Popovich, “The Theory of Knowledge of St. Isaac the Syrian,” 68.

[53] Ibid.

[54] Ibid.

[55] Ibid.

[56] "Deus é o Senhor e Se revelou a nós; bendito aquele que vem em nome do Senhor." (Salmo 117: 27, 26)

[57] Para Irineu a Igreja é o repositório da verdade: 'Como temos, portanto, tais provas, não é necessário buscar a verdade entre outros, que é fácil de obter da Igreja'. (AH, III.IV.1). Isto também aponta a um princípio metodológico para a apologética especialmente fundamentada na Igreja".
(Pe. Joshua Shooping, Irenaeus and Orthodox Apologetic Methodology: A Neopatristic Presuppositionalism, nota, 76)

[58] "Argumentamos, portanto, através da "pressuposição". O cristão, como fez Tertuliano, deve contestar os próprios princípios da posição do seu oponente. A única "prova" da posição cristã é que, a menos que sua verdade seja pressuposta, não há possibilidade de "provar" o que quer que seja. O atual estado de coisas como pregado pelo cristianismo é o fundamento necessário da própria "prova"." (Cornelius Van Til, “My Credo” in Jerusalem and Athens: Critical Discussions on the Philosophy and Apologetics of Cornelius Van Til)

[59] Salmo 117:27.

[60] Russell M. Manion, The Contingency of Knowledge and Revelatory Theism (1999). 

[61] Ibid.

[62] Van Til’s Apologetic, 268.

[63] Pe. Joshua Shooping, Irenaeus and Orthodox Apologetic Methodology: A Neopatristic Presuppositionalism, 69.

[64] Henry George Liddell and Robert Scott, A Greek-English Lexicon. 

[65] Pe. Joshua Shooping, Irenaeus and Orthodox Apologetic Methodology: A Neopatristic Presuppositionalism, 71.

[66] Georges Florovsky, Bible, Church, Tradition: An Eastern Orthodox View, 79. 

[67] Irineu provavelmente se referiria ao cânone da verdade, pois é este cânone que integra as peças no mosaico apropriado. (Pe. Joshua Shooping, Irenaeus and Orthodox Apologetic Methodology: A Neopatristic Presuppositionalism, 71).

[68] Itálico meu. 

[69] Ibid., 69.

[70] Greg Bahnsen, Van Til, 263.

[71] São Justino Popovich, “The Theory of Knowledge of Saint Isaac the Syrian,’ Man and the God-Man, 68.

[72] "Como consideração epistemológica, no entanto, Cristo parece funcionar como um primeiro princípio epistemológico. Assim parece que o Pai funciona como primeiro princípio metafísico ou ontológico de Irineu, aquele sobre o qual seu sistema metafísico está estabelecido, enquanto que Cristo como primeiro princípio epistemológico revela o que é ontologicamente (embora não cronologicamente) anterior."  (Joshua Schooping, Irenaeus and Orthodox Apologetic Methodology: A Neopatristic Presuppositionalism, 75).

[73] Ao colocar nossa fé em uma epistemologia autônoma (em coisas fora de Deus ou dentro da esfera isolada da razão apenas), nós nos separamos de nosso entendimento. Pois, como explica São Justino Popovich, ao fazer isso, nos consideramos a nós mesmos e a nossa própria mente "como a principal fonte da verdade e a medida máxima de tudo o que é, atribuindo-lhe todo o valor, tornando-a absoluta e idolatrando-a, ao mesmo tempo em que menosprezamos os outros poderes psíquicos e físicos do homem," (São Justino Popovich, “The Theory of Knowledge of Saint Isaac the Syrian,’ Man and the God-Man, 67) o que "arrasta o entendimento, e o homem junto com ele, para o nível dos sentidos", e invalida qualquer possibilidade de conhecimento.

[74] Judas 1:3.