segunda-feira, 24 de abril de 2017

A Filosofia não salva (São Gregório Palamas)

Eu tenho ouvido de certas pessoas que também devemos buscar a sabedoria secular, e que, se nós não possuíssemos essa sabedoria, torna-se impossível evitar a ignorância e as falsas opiniões, mesmo que tenhamos atingido o mais alto nível de impassibilidade; e que não se pode adquirir a perfeição e a santidade sem buscar o conhecimento de todos os lugares, sobretudo da cultura grega, que também é um dom de Deus - assim como foram os insights concedidos aos profetas e apóstolos através da revelação. Essa educação confere na alma o conhecimento dos seres criados e enriquece a faculdade do conhecimento, que é o maior de todos os poderes da alma, pois a educação não só elimina todos os outros males da alma. Pois a educação não só afasta todos os outros os males da alma - uma vez que toda paixão tem sua raiz e fundamento na ignorância - mas também conduz os homens ao conhecimento de Deus, pois Deus só é cognoscível através da mediação de Suas criaturas.

De forma alguma essas opiniões me convenceram quando me foram apresentadas, pois minha pequena experiência de vida monástica mostrou-me que exatamente o contrário era verdadeiro; mas eu era incapaz de fazer uma defesa contra eles. "Não nos ocupamos apenas com os mistérios da natureza", disseram orgulhosamente, "medindo o ciclo celeste e estudando os movimentos opostos das estrelas, suas conjunções, fases e ascensões, considerando as consequências dessas coisas (assuntos que temos muito orgulho); mas, além disso, como os princípios interiores desses fenômenos se encontram na divina e primordial criativa Mente, e as imagens desses princípios existem em nossa alma, temos o zelo de compreendê-los e desprezamos todo o tipo de ignorância a seu respeito pelos métodos de distinção, raciocínio e análise silogística; e assim, tanto nesta vida quanto depois, desejamos ser conformados à semelhança do Criador".

Senti-me incapaz de responder a esses argumentos, e assim mantive silêncio em relação a esses homens; mas agora vos peço, Pai, que me instrua no que deve ser dito em defesa da verdade, para que, seguindo a ordem do apóstolo, eu esteja "preparado para dar conta da fé que há em nós" (1 Pedro 3: 15).

Examinando a natureza das coisas sensíveis, essas pessoas chegaram a um certo conceito de Deus, mas não a uma concepção verdadeiramente digna Dele e apropriada à Sua natureza abençoada. Pois seu "coração desordenado foi obscurecido" pelas maquinações dos demônios perversos que os estavam instruindo. Pois se uma conceituação digna de Deus pudesse ser alcançada através do uso da intelecção, como então essas pessoas poderiam ter considerado esses demônios como deuses, e como poderiam ter acreditado nos demônios quando ensinavam o politeísmo ao homem? Desta forma, envolvidos nesta sabedoria insensata, tola e educação débil, caluniaram Deus e a natureza. Eles privaram Deus de Sua soberania (pelo menos no que lhes diz respeito); eles atribuíram o Nome Divino aos demônios; e estavam tão longe de encontrar o conhecimento dos seres - o objeto de seu desejo e zelo - que alegavam que as coisas inanimadas tem alma e participam de uma alma superior à nossa. Alegavam também que as coisas sem razão são racionais, já que são capazes de receber uma alma humana; que os demônios são superiores a nós e são até nossos criadores (tal é sua impiedade), classificaram entre coisas incriadas, não-geradas e coeternas com Deus, não só a matéria, e o que eles chamam de Alma do Mundo, mas também aqueles seres inteligíveis não revestidos na opacidade do corpo, e até mesmo em nossas almas.

Podemos então dizer que aqueles que possuem tal filosofia possuem a sabedoria de Deus, ou mesmo uma sabedoria humana em geral? Espero que nenhum de nós seja tão louco em afirmar isso, pois, como o Senhor declarou: "A árvore boa não produz frutos ruins" (Mateus 7:18). Na minha opinião, esta "sabedoria" não é nem mesmo digna da denominação "humana", pois é tão inconsistente a ponto de afirmar que as mesmas coisas são ao mesmo tempo animadas e inanimadas, dotadas e privadas de razão, e sustentam que coisas por natureza sem sensibilidade, e sem órgãos capazes de sensação, podem conter nossas almas! É verdade que, às vezes, Paulo fala disso como "sabedoria humana", como quando diz: "Minha proclamação não repousa sobre as palavras persuasivas da sabedoria humana" (1 Coríntios 2:13). Mas, ao mesmo tempo, ele acha correto chamar esses que adquiriram tal conhecimento "sábios segundo a carne" (1 Coríntios 1:26), ou "dizendo-se sábios, tornaram-se loucos." (Romanos 1:22), "questionadores desta era" (I Coríntios 1:20), e a sabedoria deles é qualificada em termos semelhantes: "sabedoria que tornou-se loucura" (1 Coríntios 1:20), "sabedoria que se acabou" (1 Coríntios 1:28), "vãs sutilezas" (Colossenses 2:8),  "sabedoria desta era", e que pertence aos "príncipes" desta era - que estão "chegando ao fim" (1 Coríntios 2:6) .

De minha parte, eu ouço o pai que diz: "Ai do corpo quando não consome o alimento que é de fora, e ai da alma quando não recebe a graça que vem do alto". Ele fala com justiça - pois o corpo perecerá uma vez que tenha passado para o mundo das coisas inanimadas, e a alma se enredará na vida demoníaca e nos pensamentos dos demônios se se desviar daquilo que lhe é própria.

Mas se alguém diz que a filosofia, na medida em que é natural, é um dom de Deus, então se diz a verdade, sem contradição, e sem incorrer a acusação que cai sobre aqueles que abusam da filosofia e a pervertem a um fim antinatural. Na verdade, eles tornam sua condenação mais pesada usando o dom de Deus de uma maneira desagradável a Ele.

Além disso, a mente dos demônios, criada por Deus, possui por natureza a faculdade da razão. Mas não acreditamos que sua atividade vem de Deus, mesmo que a sua possibilidade de agir venha Dele; pode-se com propriedade chamar essa razão de uma desrazão. O intelecto dos filósofos pagãos é também um dom divino, na medida em que possui naturalmente uma sabedoria dotada de razão. Mas tem sido pervertida pelas artimanhas do diabo, que a transformou em uma sabedoria tola, perversa e sem sentido, uma vez que apresenta tais doutrinas.

Mas se alguém nos diz que os próprios demônios têm um desejo e um conhecimento não inteiramente mau, uma vez que desejam existir, viver e pensar, aqui está a resposta correta que eu devo dar: não é correto questionar-nos porque dizemos que a sabedoria grega é "demoníaca" (Tiago 3:15), alegando que suscita discussões e contém quase todo tipo de falsos ensinamentos, e é alienada de seu próprio fim, ou seja, o conhecimento de Deus; mas ao mesmo tempo reconhecemos que pode ter alguma participação no bem de forma remota e incipiente. Deve-se lembrar que nenhuma coisa má é má na medida em que ela existe, mas na medida em que é desviada da atividade apropriada da mesma e, portanto, do fim atribuído a essa atividade.

Qual deve ser, então, o trabalho e o objetivo daqueles que buscam a sabedoria de Deus nas criaturas? Não é a aquisição da verdade e a glorificação do Criador? Isso é claro para todos. Mas o conhecimento dos filósofos pagãos distanciou-se de ambos os objetivos.

Há então alguma coisa proveitosa nesta filosofia? Certamente; pois, assim como há muito valor terapêutico mesmo em substâncias obtidas a partir da carne de serpentes - e os médicos consideram que não há remédio melhor e mais útil do que aquele derivado dessa fonte - então há algo proveitoso a ser obtido mesmo do filósofos profanos - mas de tal maneira similar a uma mistura de mel e cicuta. Por isso, é de maior importância que aqueles que desejam separar o mel da mistura devam ter cuidado que não tomem os resíduos mortais por engano. E se você fosse examinar o problema, veria que todas ou a maioria das heresias prejudiciais derivam sua origem dessa fonte.

É assim com os "iconognosts"*, que pretendem que o homem recebe a imagem de Deus pelo conhecimento, e que este conhecimento conforma a alma a Deus. Porque, como foi dito a Cain, "se você fizer sua oferenda corretamente, sem a partilhar corretamente..." (Gênesis 4: 7). Mas dividir bem é propriedade de poucos homens. Apenas esses que "dividem bem" possuem os sentidos inteiros da alma preparados para distinguir o bem e o mal.

Que necessidade há em correr esses perigos sem necessidade, quando se é possível contemplar a sabedoria de Deus em Suas criaturas não só livre de riscos, mas de forma proveitosa? Uma vida em que a esperança em Deus libertou de todo cuidado, naturalmente, impulsiona a alma para a contemplação das criaturas de Deus. Assim é atingida com admiração, aprofunda seu entendimento, persiste na glorificação do Criador, e através deste sentimento de admiração é levada adiante para o que é maior. De acordo com São Isaac, "Vem como tesouros que não podem ser expressos em palavras"; e usando a oração como uma chave, penetra nos mistérios que "o olho não viu, o ouvido não ouviu, e não entrou no coração do homem" (1 Coríntios 2: 9), mistérios manifestados pelo apenas Espírito àqueles que são dignos, como ensina São Paulo.

Você vê o caminho mais rápido, cheio de proveitos e sem perigo, que leva a esses tesouros sobrenaturais e celestiais?

No caso da sabedoria secular, você deve primeiro matar a serpente, em outras palavras, superar o orgulho que surge dessa filosofia. Como isso é difícil! "A arrogância da filosofia não tem nada em comum com a humildade", como diz o ditado. Depois de vencê-lo, então, você deve separar e lançar fora a cabeça e cauda, ​​pois estas coisas são más no mais alto grau. Pela cabeça, quero dizer opiniões obviamente incorretas sobre coisas inteligíveis, divinas e primordiais; e pela cauda, ​​as histórias fabulosas sobre coisas criadas. Quanto ao que está entre a cabeça e a cauda, ​​isto é, os discursos sobre a natureza, você deve separar ideias inúteis por meio das faculdades de exame e inspeção possuídas pela alma, assim como os farmacêuticos purificam a carne de serpentes com fogo e água. Mesmo se você fizer tudo isso, e fazer bom uso do que foi devidamente reservado, quanta dificuldade e circunspecção será necessária para a tarefa!

No entanto, se você fizer bom uso dessa parte da sabedoria profana que foi bem separada, nenhum mal pode resultar, pois naturalmente se tornará um instrumento para o bem. Mas mesmo assim, não se pode, num estrito sentido, ser chamada de dom de Deus e de natureza espiritual, pois pertence à ordem da natureza e não é enviada do alto. É por isso que Paulo, que é tão sábio em assuntos divinos, chama-a de "carnal" (2 Coríntios 1:12); pois, diz ele: "Considerai que dentre nós que fomos escolhidos, não há muitos sábios segundo a carne" (1 Coríntios 1:26). Pois quem poderia fazer melhor uso dessa sabedoria do que aqueles a quem Paulo diz "os que estão de fora" (1 Timóteo 3: 7)? Mas tendo esta sabedoria em mente, ele os chama corretamente de "sábios segundo a carne".

Assim como no casamento legal, o prazer derivado da procriação não pode ser exatamente chamado de dom de Deus, porque é carnal e constitui um dom da natureza e não da graça (embora essa natureza tenha sido criada por Deus); assim o conhecimento que vem da educação profana, mesmo quando bem utilizado, é um dom da natureza, e não da graça - um dom que Deus concede a todos sem exceção através da natureza, e que pode ser desenvolvido pelo exercício. Este último ponto - que ninguém o adquire sem esforço e exercício - é uma prova evidente de que se trata de um dom natural e não espiritual.

É a nossa sabedoria sagrada que deve legitimamente ser chamada de dom de Deus e não de dom natural, uma vez que até mesmo os simples pescadores que a receberam do alto tornam-se, como diz o Gregório o Teólogo, filhos do Trovão, cuja palavras abrangeram os limites de o universo. Por esta graça, até os publicanos são feitos mercadores de almas; e até mesmo o zelo ardente dos perseguidores é transformado, tornando-os Paulos em vez de Saulos, afastando-se da terra para alcançar o "terceiro céu" e "ouvir coisas inefáveis". Por esta verdadeira sabedoria também nós podemos nos conformar à imagem de Deus e continuar a ser assim até mesmo após a morte.

Quanto à sabedoria natural, diz-se que até Adão a possuiu em abundância, mais do que todos os seus descendentes, embora tenha sido o primeiro que não conseguiu garantir a conformidade com a imagem. A filosofia profana existiu como auxílio a esta sabedoria natural antes do advento Daquele que veio para recordar a alma à sua antiga beleza; por que então não fomos renovados por esta filosofia antes da vinda de Cristo? Por que precisamos, não alguém para nos ensinar filosofia - uma arte que passa com esta era, de modo que é chamada "desta era" (1 Coríntios 2: 6) - mas alguém "que tira o pecado de mundo", e que nos concede uma sabedoria verdadeira e eterna - ainda que esta apareça como "loucura" (1 Coríntios 1:18) aos homens sábios passageiros e corrompidos deste mundo, enquanto que na realidade a sua ausência torna verdadeiramente tolos aqueles que não são espiritualmente ligado a ela? Você não vê claramente que não é o estudo das ciências profanas que traz a salvação, que purifica a faculdade cognitiva da alma, e a conforma ao Arquétipo divino?

Esta é, portanto, a minha conclusão: se o homem que procura ser purificado no cumprimento das prescrições da Lei não obtém nenhum benefício de Cristo - mesmo que a Lei tenha sido manifestamente promulgada por Deus -, então a aquisição das ciências profanas também não trará proveitos. Pois, quanto mais Cristo não será de proveito para quem se volta para a duvidosa filosofia alheia para obter purificação para sua alma? É Paulo, o porta-voz de Cristo, que nos diz isso e nos dá seu testemunho.


*Palamas cria uma nova palavra: iconognost, "aquele que tem um ícone do conhecimento"


Por São Gregório Palamas (1296 - 1359) em "As Tríadas" 

sábado, 8 de abril de 2017

Um Cristo e Três Religiões (Vladimir De Beer)

O evento mais decisivo na história da humanidade foi o aparecimento do Deus-homem Jesus Cristo na terra. Isso ocorreu no início do primeiro século na contagem ocidental, no que era então a província Síria do Império Romano - para ser mais preciso, na Galiléia e na Judéia. A fé na vida, o ensinamento, a morte, a ressurreição e a ascensão de Jesus Cristo com o passar do tempo deu origem a três formas diferentes de religião cristã: Ortodoxa, Católica e Protestante. As três têm historicamente reivindicado basear-se no Evangelho de Cristo, e muitos conflitos ocorreram entre seus seguidores ao longo dos séculos.

A Ortodoxia, o Catolicismo e o Protestantismo são muitas vezes vistos como variações de um único tema, em outras palavras, como os três principais ramos do Cristianismo. Neste ponto de vista, a Ortodoxia e o Catolicismo representam as vertentes oriental e ocidental do Cristianismo até sua separação entre o séculos IX e XIII, com o Protestantismo rompendo com seu pais Católicos do século XVI em diante. No entanto, neste ensaio, sugeriremos que é mais correto ver estas três formas religiosas como religiões distintas. Isto não implica a igualdade entre a Ortodoxia, o Catolicismo e o Protestantismo; não pode haver dúvida de que a Ortodoxia representa a plenitude integrante da fé cristã, com o Catolicismo e o Protestantismo desviando em maior ou menor grau.

A base conceitual para a nossa tese é a visão orgânica da história, primeiramente defendida pelo filósofo alemão Oswald Spengler (1880-1936) em sua obra monumental, A Decadência do Ocidente. Neste tomo abrangente Spengler interpreta a história humana como uma sucessão de Altas Culturas, começando com a egípcia e suméria cerca de 3000 aC. Uma Alta Cultura pode ser compreendida como um organismo, uma vez que mostra as marcas essenciais de organismos vivos: nascimento, crescimento, maturidade, velhice e morte. Curiosamente, o pensador russo, Konstantin Leontiev, já tinha em 1875 sugerido que as civilizações espelhavam os padrões de vida de organismos vivos: o crescimento, a floração, o declínio e a morte. Este ponto de vista orgânico não nos surpreende: as culturas humanas consistem de seres vivos, e, portanto, estas culturas deveriam experimentar coletivamente o que os humanos experimentam individualmente.

A principal diferença entre uma Alta Cultura e outros organismos vivos, Spengler argumenta, é a duração. No caso do primeiro, o tempo de vida se estende por dez a doze séculos, enquanto a sua influência sobre uma cultura jovem no seu território pode permanecer por séculos a mais. Este fenômeno é denominado pseudomorfose e Spengler descreve-o particularmente por meio do Clássico tardio dominando o Árabe inicial. Nesse caso, a batalha de Actium (31 aC) foi determinante: a vitória de Otávio sobre Marco Antonio assegurou a dominação continuada Romana (e, portanto, Clássica) sobre o território da Cultura Árabe porvir: o Oriente Médio, Ásia Menor e África do Norte. 

Spengler argumentou ainda que algumas Altas Culturas também experimentaram uma fase tardia imperialista, situada entre a velhice e a morte. Nesta fase todas as energias remanescentes dessa cultura são gastas em uma expansão final. Mais uma vez a Cultura Clássica nos fornece um exemplo instrutivo: a ascensão do Império Romano sob Augusto e seus sucessores. Este império militarista explodiu num momento em que a Cultura Clássica parecia estar em seus espasmos de morte, e por volta do final do primeiro século cristão havia espalhado seu domínio mais amplamente do que qualquer Cultura anterior. De acordo com o modelo de Spengler, este imperialismo final cultural implica não só Cesarismo no nível político, mas também uma segunda religiosidade. Este renascimento da religião supera o racionalismo que caracteriza os últimos estágios de qualquer cultura, e implica um retorno parcial à religião da Cultura inicial.

As Culturas Egípcias e Sumérias foram seguidas pelo nascimento das Culturas Indiana, Chinesa e Clássica por volta de 1500, 1300 e 1100 a.C., respectivamente. Dessas Altas Culturas a Clássica estava em sua fase final quando a Cultura Árabe surgiu durante o século seguinte a vinda de Cristo à Terra. A Cultura Clássica iria exercer uma enorme influência sobre a jovem Cultura Árabe, moldando seu pensamento religioso e filosófico durante vários séculos por vir (pseudomorfose de Spenlger). Nos primeiros séculos do primeiro milênio a Cultura Mexicana apareceu na América Central, a única Alta Cultura que veio a nascer no hemisfério ocidental. Esta cultura também teve o trágico destino de ser a única cuja vida seria violentamente terminada por representantes de outra Alta Cultura - os conquistadores espanhóis.

Por volta do ano 1000 em nossa contagem, uma nova Cultura surgiu ao noroeste da Cultura Árabe. Esta era uma cultura ocidental, com uma relativa autonomia observada pela primeira vez por Spengler. Alemanha, França, Inglaterra e Itália eventualmente tornariam-se os centros nacionais da Cultura Ocidental. Antes deste modelo orgânico da história, o Ocidente geralmente era visto como uma continuação do mundo clássico através da Idade Média. Assim, a maioria dos historiadores ocidentais promoviam o esquema antigo-medieval-moderno das coisas, com o Ocidente moderno (ou seja, a Europa Ocidental e a América do Norte) representando o ápice do desenvolvimento cultural humano. Esta concepção chauvinista da história foi enfraquecida pela tese de Spengler dos ciclos de ascensão e queda das Altas Culturas.

Em termos da concepção orgânica da história, o Ocidente está em suas convulsões finais. Embora os países da Europa Ocidental (talvez toda Europa até oeste da Rússia) e da América do Norte ainda estejam funcionando como entidades políticas e econômicas, culturalmente falando, eles estão debilitados. As atividades culturais superiores de música, literatura, filosofia e assim por diante (isto é, nas suas formas mais ou menos tradicionais) ainda estão sendo praticadas por uma pequena minoria, mas a maioria dos ocidentais se contentam em viver em um estado não-reflexivo como consumidores enquanto adoram o grande deus do entretenimento. Pão e circo não se limitaram aos antigos romanos, para dizer o mínimo. A mesma crítica se aplica à maioria dos seres humanos em outras partes do mundo, uma vez que não há outras Altas Culturas vivas neste momento da história -, mas existe uma possibilidade de uma cultura existente florescer em uma nova Alta Cultura (veja mais adiante).

A pergunta pode ser feita quanto à validade desta abordagem para interpretar a religião em termos culturais. A fé autêntica religiosa não é, afinal, superior a todas as outras atividades humanas? Sim, de fato, mas devemos estar sob nenhuma ilusão de que a religião poderia ser a-cultural, por assim dizer. Todo ser humano é culturalmente condicionado desde o nascimento até a morte, em virtude de possuir uma alma espiritual e não apenas um corpo material. Antes de tudo, entre essas influências culturais onipresentes, está a forma da linguagem, através da qual muitas atividades humana são expressas. Nós até mesmo pensamos em termos de linguagem, o que levou o filósofo ateu Friedrich Nietzsche a lamentar que a fé em Deus não pode ser eliminada, pois as pessoas ainda acreditam na gramática. As atividades religiosas são, portanto, expressas em termos linguísticos, e isso deve ser aceito como providencial.

Seguindo os passos de Spengler, o historiador inglês Arnold Toynbee (1889-1975) escreveu um estudo abrangente da história do mundo. Embora tenha aceitado aspectos da concepção orgânica de Spengler da cultura, Toynbee declarou que a ascensão e queda das culturas não eram inevitáveis. Em vez disso, a maneira pela qual as civilizações respondiam a desafios físicos ou sociais determinava suas chances de sobrevivência.

Ele corretamente fez uma distinção entre as civilizações do mundo Greco-Romano (Cultura Clássica para Spengler), do mundo Ocidental pós-Romano (Cultura Ocidental para Spengler) e do mundo Ortodoxo da Rússia e dos Bálcãs. Contra a acusação de seu predecessor do século XVIII, Gibbon, de que o Cristianismo foi responsável pelo colapso do Império Romano, Toynbee argumentou que o Cristianismo, na verdade, contém a força interior para sobreviver o colapso de civilizações. Em vista do ensinamento de Cristo que o Reino de Deus não é deste mundo, Toynbee, sem dúvida, esteve mais perto da verdade da questão do que Gibbon.

* * *

A mais antiga das religiões cristãs é a Ortodoxia, a Igreja fundada pelos Apóstolos de Cristo. Por quase três séculos, a Igreja Ortodoxa, tendo o grego como principal língua bíblica e litúrgica, sofreu perseguições por diversos imperadores romanos pagãos. Esta hostilidade oficial terminou abruptamente quando o Imperador Constantino concedeu a liberdade religiosa aos cristãos em 313. Mais tarde moveu a capital imperial de Roma para Constantinopla, a Nova Roma, onde convocou o primeiro concílio ecumênico da Igreja em 325. Em seu leito de morte Constantino foi batizado como cristão, recebendo o nome de Basílio. A mãe de Constantino contribuiu para a descoberta dos restos da cruz de Cristo em Jerusalém. Por suas contribuições no estabelecimento da fé cristã Ortodoxa em todo o império, Constantino e Helena foram canonizados como santos pela Igreja. No final do século IV, a Ortodoxia se tornara a religião de estado do Império Romano Cristão.

Durante uma série de concílios ecumênicos que se ocorreram ao longo de um milênio (de 325 a 1349), as doutrinas e práticas da fé Ortodoxa foram formuladas. As decisões destes concílios eram afirmadas como leis imperiais pelo Imperador e assim tornaram-se obrigatórias para todos os cidadãos romanos. Infelizmente, o Império Romano Cristão logo se tornou tão intolerante à dissidência religiosa como o seu antecessor pagão havia sido, de modo que perseguição violenta de hereges (reais e supostos) ocorreram ao longo de sua história. Mesmo grandes teólogos, como Máximo o Confessor, foram perseguidos pela hierarquia da Igreja e / ou pelos governantes imperiais. No entanto, cada desvio em erro era eventualmente corrigido por um concílio ecumênico, devido à presença ubíqua do Espírito de Deus na Igreja, coletivamente falando.

A propagação da Ortodoxia coincidiu com a ascensão da Cultura Árabe, cuja existência foi notada pela primeira vez por Spengler. Em sua obra mencionada argumentou que a Cultura Árabe possuía uma alma mágica que veio a se expressar em suas religiões: persianismo (isto é, zoroastrismo), judaísmo, cristianismo, neoplatonismo e, finalmente, no islã. Em vez da compreensão usual do neoplatonismo como o florescimento final da Cultura Clássica, este é compreendido a partir desta perspectiva como Escolasticismo da Cultura Árabe, embora fortemente influenciado (como foi o caso do Judaísmo e do Cristianismo) pela filosofia clássica. Por sua vez, o neoplatonismo influenciou a Ortodoxia até certo ponto, no mínimo com sua terminologia.

No modelo cultural de Spengler cada Alta Cultura possui uma Alma-da-cultura distintiva que se imprime em todas as atividades humanas nessa Cultura. Assim, a alma mágica da cultura árabe é contrastada com a alma apolínea da persistente cultura clássica e a alma faustiana da cultura ocidental ainda por vir. Segundo Spengler, a alma mágica vê o mundo como uma vasta caverna, expressa no nível físico pelas basílicas abobadadas dos cristãos  e as mesquitas dos muçulmanos.

Dentro da teologia Ortodoxa, a cosmovisão mágica encontrou expressão em uma cosmologia que retratava o mundo em uma estrutura semelhante a uma caixa. Esta foi fundada em uma leitura literal do Gênesis, exposta notavelmente pela escola de Antioquia na Síria. Assim, a terra representava o fundo da caixa e o céu o teto. Acima desta caixa estava o reino do Céu, habitado por Deus e os seres celestiais. Entre os primeiros escritores da Igreja, Orígenes foi um dos poucos que se desviaram dessa cosmologia literalista com sua interpretação alegórica do Gênesis. Com o surgimento da astronomia moderna, tornou-se naturalmente impossível manter essa cosmovisão pré-científica, tendo em mente que os primeiros escritores da Igreja eram informados pela ciência de seu tempo.
Na época em que a Ortodoxia foi declarada a religião oficial do Império Romano (século IV), desenvolveu-se numa intrincada síntese da teologia bíblica / judaica, da filosofia helênica e do pensamento jurídico romano. Os dois últimos componentes foram obtidos através da prevalência da Cultura Clássica tardia, já em sua fase final imperial, em grande parte do Império Romano na época de Cristo. Esta confluência histórico-cultural tem de ser vista como providencial, já que contribuiu para que a Ortodoxia se tornasse mais universal e menos específica à Cultura do que qualquer outra religião anterior. Portanto, é completamente desnecessário que os cristãos Ortodoxos considerem a crítica de alguns de seus oponentes modernos de que sua fé não é suficientemente "bíblica" - tal "crítica" é totalmente irrelevante no esquema maior das coisas.

No entanto, o fato da teologia Ortodoxa se basear não só no pensamento judaico, mas também no pensamento helênico, acabou por provocar uma necessidade popular de uma religião mais consoante com o desenvolvimento da cultura árabe. Por isso, no século VII, o Profeta Maomé apareceu no centro árabe de Meca e Medina para proclamar a supremacia do único Deus (Allah em árabe), e a exigência de que todos os seres humanos se submetam à Sua autoridade - voluntariamente ou através da força. Após a morte de Maomé esta nova religião espalhou-se como um incêndio através dos antigos territórios cristãos do Oriente Próximo e Norte da África. De acordo com a filosofia da história de Spengler, a rápida expansão do Islã inicial foi na verdade uma recuperação dos territórios da cultura árabe do domínio da cultura clássica tardia - daí seu sucesso inicial. Dentro de cem anos os exércitos islâmicos tinham invadido a Península Ibérica, mas eles foram interrompidos na Gália por representantes dos povos que estavam sendo preparados para o nascimento da Cultura Ocidental. Estes guerreiros foram habilmente comandados por Carlos Martel, o 'Martelo' do Deus cristão.

Como resultado desta dramática expansão muçulmana, o mundo cristão Ortodoxo encolheu-se abrangendo então não muito mais do que a Ásia Menor, Grécia, Sul da Itália, Sicília, o Adriático e alguns territórios do Mediterrâneo oriental. Nos séculos seguintes, esses territórios seriam sistematicamente conquistados por invasores muçulmanos ou por "bárbaros" germânicos do noroeste. Uma das piores tragédias da história europeia ocorreu em 1204, quando os cruzados Católicos da Europa Ocidental, supostamente em seu caminho para recapturar Jerusalém dos muçulmanos, saquearam e pilharam Constantinopla, capital cristã Ortodoxa, com ajuda financeira e naval veneziana. Esta traição dos cristãos Católicos levou a uma duradoura desconfiança do ocidente entre muitos cristãos Ortodoxos - compreensivelmente.

Durante o último século ou dois, a religião Ortodoxa tornou-se amplamente difundida fora do coração Ortodoxo da Europa Oriental e dos Balcãs. Devido ao aumento da emigração de países como Grécia, Rússia, Sérvia e Romênia, juntamente com a atividade missionária esporádica, existem hoje numerosas igrejas Ortodoxas em toda a Europa Ocidental, América do Norte e do Sul, Austrália e partes da Ásia e África. Há também uma crescente presença monástica Ortodoxa em várias partes do mundo. Esta impressionante expansão é o resultado do declínio (em números e influência) do Catolicismo e do Protestantismo dominante em muitos desses países.

A presença da Ortodoxia no Ocidente pós-cristão humanista-secular de hoje representa um enorme desafio para aqueles que desejam viver uma vida cristã dentro dela. É de se esperar que os cristãos Ortodoxos no mundo ocidental serão cada vez mais retratados como anacrônicos, reacionários e atrasados. Esse ataque vem principalmente dos meios de comunicação de massa, sendo o instrumento mais eficaz dos poderes espirituais escusos que governam o mundo. Como resultado, muitos Ortodoxos, até clérigos, estão sucumbindo a esta ofensiva anticristã, adaptando-se aos costumes ocidentais humanistas. O mais notável entre estes compromissos é a rejeição do calendário da Igreja por partes do mundo Ortodoxo, e sua substituição pelo calendário Católico Romano e Protestante. Providencialmente, a maior parte da Igreja Ortodoxa permaneceu fiel aos concílios ecumênicos a este respeito.

* * *

A alma da Cultura Ocidental é caracterizada sobretudo pelo anelo ao infinito, como Spengler demonstrou por meio de exemplos numerosos retirados da matemática, da arquitetura, da pintura, e da música. Já em seu primeiro século, este esforço faustiano do Ocidente se expressou na esfera política e militar por meio das Cruzadas, apesar da piedosa reivindicação dos cruzados de estar lutando para reconquistar a "Terra Santa" por Cristo. Dentro de um século ou dois este mesmo anelo manifestou-se no nível artístico nas grandes catedrais góticas do Norte da Europa. Estes imponentes edifícios forneceriam o cenário espacial para o desenvolvimento do canto gregoriano, a música litúrgica do novo cristianismo gótico. Para Spengler, esta foi a segunda obra do cristianismo, mil anos após a religião cristã original ter aparecido no Oriente Próximo.
Quando a Cultura Ocidental começou a se expressar como um organismo jovem, naturalmente precisou de uma religião que fosse consoante com sua alma faustiana. Ou, como disse o filósofo grego Christos Yannaras, o "Sacro Império Romano" de língua latina, precisava de uma base cultural para diferenciá-lo do Império Romano Oriental de língua grega. Desde uma perspectiva metafísica, é concebível que a Ortodoxia, com suas fundações helênicas e do oriente médio, não poderia satisfazer inteiramente a busca religiosa ocidental. Portanto, os teólogos ocidentais desenvolveram uma versão da fé cristã que se baseava parcialmente na tradição teológica agostiniana e parcialmente na metafísica aristotélica redescoberta. A esta metafísica aristotélica foi dada uma interpretação cristã por Tomás de Aquino, e desta forma a religião Católica nasceu.
Um dos principais aspectos teológicos em que a religião Católica, ou o cristianismo gótico na terminologia de Spengler, desviou-se de seu parente Ortodoxo é o papel de Cristo. Enquanto Cristo no Oriente cristão sempre foi visto principalmente como o Cristo Cósmico, ou seja, o Logos Divino que é o criador do universo, a teologia Católica O viu principalmente em termos jurídicos. Assim, Jesus veio ao mundo para pagar a penalidade exigida por Deus pela a transgressão humana da Lei Divina. Como Anselmo afirmou, uma transgressão infinita exigiria um sacrifício infinito, de modo que nada menos que a morte de Cristo poderia apaziguar a majestade ofendida de Deus. Não pode haver dúvida de que essa interpretação jurídica da obra de salvação de Cristo é uma distorção da mensagem do Novo Testamento, mas que, no entanto, reflete a base latino-legalista da nova Cultura Ocidental.
Foi este mal-entendido legalista da teologia cristã que facilitou as tentativas incessantes - pelos papas Católicos e cardeais - de sujeitar reis e imperadores à sua autoridade. A Igreja era vista principalmente em termos jurídicos, e não em termos ontológicos, como na Ortodoxia. Essa eclesiologia desviada levaria, antes de tudo, aos métodos diabólicos da Inquisição, como os horrores da tortura e da estaca. A este respeito, devemos também mencionar o genocídio Católico dos albigenses e cártaros neo-gnósticos no norte da Itália e no sul da França, sancionado pela autoridade papal.
Durante a Idade Média houve um desenvolvimento litúrgico na Igreja Católica que contribuiria significativamente para a eventual ruptura no cristianismo gótico. Na Ortodoxia, o culto sempre foi visto como comunal, isto é, o clero e os leigos que estão juntos diante de Deus na adoração. Esta convicção é simbolizada pelo sacerdote de frente para o altar juntamente com a paróquia. No entanto, no ocidente franco-latino surgiu uma visão divergente - uma que via o sacerdote como mediador entre Deus e o homem e, portanto, como dispensador dos sacramentos. Esta divergência conduziu necessariamente ao empoderamento sacerdotal em detrimento dos leigos. A maior parte dos cristãos Católicos foi deixado à mercê do clero no que diz respeito à salvação. A excomunhão tornou-se a principal arma da Igreja, e permaneceu assim depois que o poder mundano passou às mãos de imperadores e príncipes, ao invés das mãos de papas e cardeais. Não é difícil compreender como esse estado de coisas inevitavelmente levou a uma revolta generalizada com o passar do tempo.
* * *
No século XVI, grande parte do mundo ocidental foi profundamente abalado pela revolução Protestante. O que começou como propostas de reforma para Igreja Católica - feitas por um monge alemão mergulhado na tradição agostiniana - logo se transformou em uma ruptura política contra os governantes Católicos nos grandes territórios no norte da Europa. No final daquele século, a Escócia, a Prússia, a Holanda, a Inglaterra e a Suíça se tornaram Protestantes. A colonização da América do Norte e da África do Sul por colonos dessas nações no século XVII garantiu que esses territórios também fossem Protestantes na fé, pelo menos nos estágios iniciais.

Dentro da cultura ocidental, o Protestantismo desempenhou um papel análogo ao do islamismo dentro da cultura árabe. Ambos surgiram como grandes tentativas de purificação, alegando ser um retorno à revelação divina original. Ambos reivindicam a autoridade da Sagrada Escritura para seus ensinamentos, seja o Alcorão ou a Bíblia. Ambos são iconoclastas, rejeitando as representações visuais de verdades sagradas como "idolatria". Ambos se espalharam com uma rapidez surpreendente e se tornaram a fé dominante em vastos territórios: o Oriente Próximo e Norte da África para um e o Norte da Europa para o outro. Destas regiões, ambas as religiões se estenderam ainda mais para outros continentes, uma mais para o Oriente e outra para o Ocidente.

No entanto, uma diferença fundamental entre o Islã e o Protestantismo se encontra nas concepções sobre a pessoa e a comunidade. Na concepção islâmica, a pessoa individual está sempre relacionada com a comunidade de fiéis. São comunidades inteiras que têm de se submeter a Deus, e não apenas pessoas individuais. Em contraste, o Protestantismo enfatizou desde o início o indivíduo perante Deus. Essa abordagem necessariamente (dada a natureza humana pecaminosa) levou ao individualismo excessivo ser uma marca do mundo Protestante ao longo de sua história. Até mesmo a doutrina Protestante da sola scriptura não pôde se proteger das interpretações individualistas da Bíblia, e esse fenômeno inevitavelmente levou à fragmentação do Protestantismo em milhares de denominações concorrentes, cada uma delas afirmando basear sua fé apenas na Escritura.

A religião Protestante tem Martinho Lutero como seu pai fundador. Seus escritos lançaram as bases para grande parte da teologia Protestante, sem mencionar sua tradução alemã da Bíblia. Além disso, a música litúrgica escrita por Lutero e seus seguidores tornou-se um pilar do canto coral Protestante em muitas partes do mundo. Esta tradição musical foi continuada por compositores como Praetorius, Scheidt, Schein, Buxtehude e outros, culminando em Johann Sebastian Bach, que em suas inúmeras obras sacras criou uma beleza espiritual transcendente - a mais alta expressão musical da alma faustiana.

Pouco depois que Lutero e seus companheiros evangélicos (como eles se chamavam) começaram sua reforma, surgiu outra corrente Protestante - que acabaria se tornando mais difundida do que a luterana. Esta é o Protestantismo reformado, também conhecido como calvinismo. A figura principal na teologia reformada é João Calvino, um francês que se instalou em Genebra. Sua magnum opus, Institutos da Religião Cristã, obteria um status de segundo lugar, ficando atrás somente da Bíblia entre muitos Protestantes. Calvino levou certos ensinamentos sobre a graça divina e a predestinação do grande pensador latino da Igreja primitiva, Agostinho, a conclusões extremas. Como resultado, o calvinismo tornou-se associado à doutrina da dupla predestinação: Deus predestina algumas pessoas para a salvação e outras para a condenação. É fácil observar como essa distorção inevitavelmente leva ao fatalismo - se a salvação é somente pela eleição de Deus, então por que se preocupar com qualquer tipo de esforço espiritual?

No século seguinte a Lutero, Calvino e seus companheiros, o Protestantismo tornou-se ainda mais extremo em sua rejeição do cristianismo gótico medieval. Este novo fundamentalismo tornou-se conhecido no século XVI como puritanismo. O tirano inglês e regicida Cromwell desempenhou um papel de liderança no estabelecimento da religião puritana na Grã-Bretanha, de onde foi levado para as novas colônias americanas. De acordo com a filosofia orgânica da história de Spengler, o papel de Cromwell na Cultura Ocidental é equivalente ao de Maomé na Cultura Árabe e Pitágoras na Cultura Clássica. Todos os três foram fundamentais para estabelecer uma religião puritana em suas culturas, cada uma vendo-o como um instrumento da vontade divina.

Desde então, a religião Protestante caiu gradualmente sob o domínio do racionalismo. Isso pode ser visto como um resultado inevitável da rejeição Protestante do misticismo, que foi ignorantemente ou arrogantemente confundido com superstição. De mãos dadas com a ascensão do racionalismo veio a explosão das ciências naturais a partir do século XVII em diante. Infelizmente, esse desenvolvimento inevitável trouxe não apenas o iluminismo, mas também a pseudo-religião do cientificismo. No século XIX, essa fé irracional na capacidade da ciência de explicar não apenas os fenômenos naturais, mas também o mundo espiritual-intelectual, tornara-se quase dominante entre as classes educadas da Europa Ocidental e da América do Norte.

No entanto, durante o século XVIII uma reação ao racionalismo surgiu nas mesmas partes do mundo onde o racionalismo e o cientificismo se estabeleceram. Essa reação ficou conhecida como Pietismo na Alemanha e como Metodismo na Grã-Bretanha. A devoção pessoal a Deus novamente veio à tona para muitos cristãos ocidentais, independentemente do escárnio proveniente dos sábios e poderosos. Essa reação pietista ao racionalismo é, na visão de Spengler, o equivalente ocidental do estoicismo na cultura clássica e o sufismo na cultura árabe. O pietismo Protestante eventualmente se espalhou por todo o mundo de língua inglesa, bem como pelos países mais germânicos da Europa.

Desde o início do século XX, o mundo Protestante foi perturbado com o chamado movimento pentecostal. Ele surgiu como a maioria dos cultos e seitas dos tempos modernos no bastião da liberdade, os Estados Unidos da América. O pentecostalismo vê-se como uma "nova efusão do Espírito Santo", sendo sua marca característica  o "falar em línguas". Este fenômeno auto-induzido é geralmente praticado em conjunto com emocionalismo, sendo este último incitado pelos ministros pentecostais. A partir da década de 1960, a aberração pentecostal começou a infiltrar-se nas grandes denominações Protestantes e, depois do Concílio Vaticano II, também na Igreja Católica. Nessa nova forma, tornou-se conhecido como o chamado movimento "carismático", seus proponentes afirmando arrogantemente de estarem "reintroduzindo louvor e adoração" na Igreja cristã (isto é, Protestante e Católico-modernista). O bem-aventurado escritor espiritual Ortodoxo Pe. Serafim Rose (1934-1982) escreveu uma exposição esclarecedora do movimento 'pentecostal / carismático', mostrando que não era outra coisa senão uma enganação satânica. Providencialmente, a Igreja Ortodoxa como um todo tem sido poupada deste fenomeno anti-cristão mascarado como "obra do Espírito Santo", embora uma parte modernista tenha tentado introduzir certos aspectos na Ortodoxia.

Dentro do Protestantismo, apenas o movimento anglo-católico na Comunhão Anglicana pode hoje ser entendido como representante de uma fé cristã mais ou menos tradicional, ainda que em sua forma ocidental. Este movimento começou em meados do século XIX, espalhando-se de Oxford para várias partes do mundo de língua inglesa. Desde então, os anglo-católicos vêm combatendo em conjunto com uma ação de retaguarda teológica, numa tentativa sincera de preservar o que resta da fé cristã em meio a um ambiente cada vez mais secularizado e humanista da igreja. Eles merecem o respeito de todos os cristãos.

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Até então consideramos brevemente a Ortodoxia (Grega), o Catolicismo e Protestantismo em termos do modelo orgânico de Spengler. Para concluir este ensaio, analisemos a fé cristã Ortodoxa dominante nos tempos modernos: a Ortodoxia Russa. Desde a sua criação por missionários Ortodoxos gregos no século X, a Igreja Ortodoxa Russa cresceu tornando-se o maior membro da família Ortodoxa. Ao longo dos últimos séculos, realizou um vasto trabalho missionário na Ásia Central, na China, no Japão, no Alasca e em outros lugares. Agora, no século XXI, a Ortodoxia russa está preparada para proclamar a mensagem cristã mais uma vez no mundo ocidental pós-cristão.

É de particular importância para nós o fato de que Spengler estava convencido do potencial da Rússia para se tornar a próxima Alta Cultura, em meio à morte cultural inescapável do Ocidente. O filósofo alemão observou que a Rússia repetidamente nos tempos modernos foi submetida a influências alienígenas por seus governantes, tornando-se um outro caso de pseudomorfose. A primeira foi a tentativa de Pedro, o Grande, de modernizar a Rússia segundo os moldes ocidentais, implicando entre outras ofensas a abolição do Patriarcado de Moscou. Após um hiato de 200 anos, o Patriarcado foi restabelecido na véspera da revolução bolchevique em 1918, embora sua liberdade tenha tido curta duração. Tendo consolidado seu poder sobre o antigo Império Russo, os comunistas bolchevistas estabeleceram um Estado totalitário baseado no pensamento marxista-leninista. Esse grandioso projeto de engenharia social representava uma ulterior ocidentalização da Rússia, uma vez que Marx e Lenin eram ambos produtos do pensamento revolucionário da Europa Ocidental. Ironicamente, foi o mais feroz inimigo da Ortodoxia russa, o tirano Stalin, que também se esforçou para desfazer alguma das ocidentalizações de seus predecessores.

Entre os famosos escritores russos, Tolstói representava o passado ocidentalizado, argumentou Spengler, enquanto Dostoiévski apontava para o futuro. Curiosamente, no mundo Ortodoxo, Dostoiévski, com seu profundo insight psicológico e visão mística, tornou-se um dos pensadores mais influentes desde o final do século XIX. Numerosos escritores Ortodoxos, incluindo teólogos e filósofos bem conhecidos, reconheceram sua dívida espiritual-intelectual a este profeta da Ortodoxia Russa dos últimos dias. É compreensível por que Spengler acreditava que uma "terceira grande obra do cristianismo" (ou seja, após a Ortodoxia grega e o Catolicismo) viria da Rússia.

A este respeito, é significativo que, em 1988, a Igreja Ortodoxa Russa celebrou o milênio desde o estabelecimento da Ortodoxia nas terras russas. Logo depois, a Rússia começou a se livrar da herança de 70 anos da revolução bolchevique, embora os novos governantes pós-soviéticos tenham errado em permitir que as influências americanas-globalistas causassem estragos socioeconômicos no país. Desde o início do terceiro milênio, o governo russo, liderado pela poderosa parceria de Vladimir Putin e Dmitry Medvedev, trabalhou arduamente para trazer uma identidade russa renovada ao seu povo muito sofrido. A hierarquia Ortodoxa russa cooperou ativamente a esse respeito, além de evangelizar uma população afastada de sua Igreja por décadas de propaganda comunista. Assim, surgiu o renascimento mais espetacular da história cristã, com milhares de paróquias, centenas de mosteiros e dezenas de seminários reconstruídos e reabertos na Rússia desde o início dos anos 90.

No entanto, para que uma auto-satisfação sobre este reavivamento da Igreja não se instale, deve ser reconhecido que ainda há muito a ser feito por parte da Igreja e do Estado na Rússia. Altos níveis de imoralidade representam um desafio contínuo, para não mencionar o assassinato periódico de clérigos por inimigos de Cristo. A condição socioeconômica da maioria da população é terrível, sendo a luta diária pela sobrevivência a norma, especialmente para os idosos e os enfermos. Inescusavelmente, as enormes receitas dos recursos naturais do país são restritas aos ricos e seus parceiros. E a corrupção desenfreada ocorre em todos os níveis de administração e serviço público, apesar das tentativas de Putin e Medvedev de estabelecer um sentido de responsabilidade entre os funcionários. Estes problemas e desafios terão de ser abordados com vigor e determinação para que a Rússia possa cumprir o seu potencial de ser uma força para o bem neste mundo.

Vladimir De Beer
14 de Março, 2010 

quarta-feira, 29 de março de 2017

A Terrível Guerra travada em nossas Mentes e Corações

Mesmo antes de encontrar o ancião, instintivamente sabia que uma tremenda e terrível guerra estava sendo travada na Terra, em todos os cantos do planeta. O campo de batalha onde esta guerra ocorre é a mente humana e o coração humano. Nossas escolhas e a maneira como lidamos com os eventos de nossas vidas nos apontam para a vida, o conhecimento e a alegria, caso contrário seguimos em erro para a morte, a ignorância, a dor e a tristeza.

O ódio de nossos inimigos por nós é ardente. Seu desejo é destruir-nos completamente, e assim, friamente, eles traçam pérfidas conspirações para nos conduzir à ruína, à miséria e, finalmente, à morte. Eles tentam capturar a mente humana, bloqueando qualquer janela capaz de admitir a luz do conhecimento real - o que permitiria a pessoa apreciar sua própria grandeza e valor. Eles persuadem a mente a para entregar-se por um baixo preço, por exemplo, por uma ninharia brilhosa, por assim dizer. Esses inimigos não são entidades impessoais. Eles têm rostos e nomes, pertencendo ao mesmo gênero e espécie. Eles são astutos, inescrupulosos, e trabalham incessantemente para alcançar seu objetivo. Eles lutam com a raça humana como um todo e com cada pessoa individualmente. Estamos quase sendo conquistados por eles: a humanidade está sob seu jugo, se não completamente, ao menos em grande parte.

Ao longo dos séculos, um número considerável de pessoas passaram para o lado desses nossos inimigos, voluntariamente ou porque foram enganados por eles. Alguma dessas agora encontram-se sob o poder direto desses inimigos, servindo-os, fazendo seu trabalho, e apressando seus esquemas. Em troca eles são muitas vezes ajudados materialmente nesta vida. Por exemplo, eles podem encontrar empregos facilmente, ou adquirir poder sobre os outros ou riqueza. Mas, embora tenham coisas materiais, eles não possuem a paz, de modo que não podem realmente se alegrar com o que têm e encontrar satisfação. Na verdade, eles vivem em perigo, num estado profundo e permanente de medo. Pois seus mestres têm um ódio por eles enquanto seres humanos, e para esses mestres eles existem para serem usados - e descartados, como costumam ser, depois de terem cumprido seu propósito.




Por Dionysios Farasiotis, no livro "The Gurus, the Young Man, and Elder Paisios"

quinta-feira, 23 de março de 2017

Uma nova Virgem Maria para uma "Nova Era"?

Uma edição recente da revista "Life" (Dezembro de 1996) publicou um artigo de capa intitulado "O mistério de Maria". Um leitor ortodoxo não pode deixar de se perguntar que tipo de "Maria". O artigo é muito revelador pela maneira particular em que a Theotokos é exposta, e também pela intenção da autora em influenciar a compreensão do público americano sobre a pessoa e o papel da Theotokos.

Antes de iniciar o texto, a autora nos apresenta uma montagem de imagens (ícones, estátuas e "arte sacra") que representa a Virgem Maria em várias maneiras: desde a Theotokos de Vladimir às Madonnas italianas, passando por pinturas japonesas e estatuetas africanas do tipo animista. A mensagem é clara, mas para esclarecer a autora cita a historiadora Karen Armstrong (ex-freira católica): "Maria é continuamente reinventada... Em todas as épocas, as pessoas modificaram sua definição para se adaptar as suas circunstâncias"

Em outras palavras, dizem que "Maria" nada mais é do que um produto de cada cultura e época. Qualquer sociedade tem o direito, na opinião dele, de criá-la "à sua imagem". Na cultura ocidental pluralista, não é permitido proclamar uma opinião como verdade absoluta. Portanto, qualquer opinião é considerada válida, desde que não seja afirmado nada além do que uma mera opinião. Qualquer ponto de vista é tolerado, exceto aquele que diz: "Esse é a Verdade".

No último século, testemunhamos como se manifestou esse tipo de "tolerância" em relação à pessoa de Cristo. Autores modernos escreveram suas próprias "biografias" de Jesus, como Renan e Schweitzer ou Tolstoi, tão popular no século XIX. Na verdade, cada um deles remodelou Cristo para atender seus próprios propósitos, para criar um deus a seu gosto e, muitas vezes, acabam por criar um reflexo de si mesmos. Assim, os eruditos liberais vêem Jesus como um rabino, os socialistas o retratam como revolucionário e os místicos da Nova Era veem nele um tipo de guru treinado no Tibete.

Outra forma em que Cristo foi reinterpretado tem sido os resultados de estudos realizados por antropólogos das religiões do Oriente Médio onde eles traçaram paralelos entre o Deus cristão e os falsos deuses da antiguidade, como o Mitra persa, o Osiris egípcio e o Tamuz babilônico (veja Ezequiel 8:14, onde as mulheres de Jerusalém são representadas de luto pela morte de anual de Tamuz antecipando sua ressurreição). Notando que as mitologias, muitas vezes, apresentam elementos como um herói que ressuscitou ou como um bebê ou escapou de ser morto por um tirano, esses estudiosos concluem que Jesus Cristo é nada mais do que um outro herói. No entanto, Jesus Cristo não é uma figura mitológica, mas uma pessoa real que andou nesta terra em um determinado momento na história cuja existência foi testemunhada até mesmo por autores não-cristãos, como o historiador judeu Flavio Josefo. Cristo não pode ser reduzido a um mero "arquétipo junguiano" (segundo os parâmetros do psiquiatra, psicólogo e ensaísta Carl Gustav Jung, nota do tradutor). Pelo contrário, a presença de um herói ressuscitado em muitas culturas pré-cristã pode ser entendida como uma expressão do clamor universal da alma humana pela antecipação da chegada de seu Redentor. A imagem distorcida de um herói sendo concebido como inferior ao Deus cristão é, naturalmente, uma consequência natural do homem que perdeu a imagem do Criador, tentando imaginar a vinda do Messias: a natureza decaída produz uma imagem distorcida.

Assim, o homem moderno acredita que não há apenas um Cristo, mas que cada um de nós estamos livres para criar o seu próprio. Mas Paulo disse aos Gálatas: "Mas, ainda que nós mesmos ou um anjo do céu vos anuncie outro evangelho além do que já vos tenho anunciado, seja anátema." (Gálatas 1: 8) O mesmo pode ser aplicado sobre "outra Maria", porque os mesmos métodos usados ​​para reinventar Cristo estão agora sendo usados com Sua mãe. Isso não deveria nos surpreender. São João de Xangai e São Francisco (São João Maximovitch) em seu tratado "A veneração Ortodoxa da Theotokos," sabiamente disse que "todos os que odiavam a Jesus Cristo, e não acreditavam nele, que não entenderam Seu ensinamento, ou, para ser mais exato, aqueles que não quiseram entender como a Igreja entendeu, que queriam substituir a pregação de Cristo com o seu próprio raciocínio humano, todos esses transferiram seu ódio a Cristo, ao Evangelho e a Igreja para a Puríssima Theotokos. Desejavam menosprezar a Mãe, para também destruir a fé em Seu Filho, para criar uma falsa representação dela entre os homens, a fim de ter a oportunidade de reconstruir toda a doutrina cristã sobre um fundamento diferente. No ventre de Maria, Deus e homem se uniram. Ela foi a Única que serviu como uma escada para o Filho de Deus, que desceu do céu. Atacar sua veneração significa atacar o cristianismo em sua raiz, destruindo-o em sua verdadeira fundação" (pp. 25-26).

Portanto, da mesma maneira que sempre existiu falsos cristos, também sempre existiu falsas Marias. O demônio sabe que para promover uma deve vender a outra. Assim, no antigo paganismo, Tammuz era acompanhado por sua mãe Semiramis, Isis e Osiris. O protestantismo está sempre pronto para identificar a veneração a Maria com a adoração de deusas pagãs, mesmo se, por uma questão de coerência, a adoração de Cristo deva ser associada com a de suas falsificações pagãs. Se os cristãos podem discernir entre o verdadeiro Cristo e os falsos, então também devem ser capazes de distinguir entre a Theotokos e as antigas deusas pagãs que reivindicaram o título de "Rainha do Céu" (cf. Jeremias 44).

"As deusas mãe" do tipo conhecido no mundo antigo não se limitam ao Oriente Médio e Mediterrâneo, mas são universais. Os índios Kogi, que viviam em Columbia, adoravam um espírito chamado Nabubi, a "Velha Mãe". Quando os missionários católicos romanos tentaram evangelizar os Cogi no século passado, eles usaram uma estratégia incomum para conduzir os pagãos ao redil de Roma: em vez de explicar as diferenças entre a mitologia pagã e a verdade cristã, encontram uma "equivalência". Cristo, sob sua visão sincrética, correspondia a Sejukukui (um deus trapaceiro que engana a sua própria morte, escondendo-se em uma caverna), ao passo que a Virgem Maria correspondia Nabubi. Esta confusão levou aos Kogi chamar seus templos pagãos de "cansamaria", uma corruptela de "Casa de Maria".

Tendo em conta estes "métodos evangelísticos" católicos romanos há mais de um século, é de admirar que as "aparições" contemporâneas de Maria sejam invariavelmente acompanhadas de mensagens ecumênicas que promovam a ideia de que todas as religiões são igualmente válidas e que o cristianismo ortodoxo é apenas um "caminho " entre muitos? Uma edição recente da Tradição Ortodoxa (1996) contém o relato da viagem de Matushka Katherine Swanson a Medjugorje, Croácia, para investigar o mais famoso dos recentes casos de aparições de Maria no mundo católico romano. Ela conta um episódio contundente:

Nosso guia levou o nosso grupo para uma audiência com os "videntes". Durante esta audiência, um peregrino perguntou a uma das crianças a seguinte questão: "A Virgem diz que a Igreja Católica é a verdadeira igreja?" A resposta dada pela criança fornece evidências claras do conteúdo ecumênico e do relativismo religioso que, curiosamente, cada vez mais marcam as "revelações" em Medjugorje: "Nossa Mãe Santíssima diz que todas as religiões são igualmente agradáveis ​​a Deus".
O artigo da revista "Life", então, é mais uma contribuição para essa linha de pensamento. Dada a ideia de que todos os caminhos são igualmente válidos, então todas as "Marias" são igualmente válidas, também. A autora descreve várias das Marias dos nossos tempos: a Maria Milagrosa (como em Medjugorje), a Maria Mediadora (que, como cita o Padre Andrew Greeley, deixa as pessoas no Céu através da "porta dos fundos"), a Maria Moderna das feministas e Mãe Maria. Esta última, Mãe Maria, é o papel que a autora considera mais atraente para os não-católicos: "A necessidade emocional por ela é tão irresistível para um mundo problemático que pessoas sem um vínculo óbvio com a Virgem estão sendo atraídas por ela. Sabe-se que os muçulmanos reverenciam Maria como santa e pura... Grupos de oração interdenominacionais marianos estão surgindo em todo o mundo. Muitos protestantes, mesmo alguns que ainda rejeitam noções de uma Virgem sobrenatural, sentem falta de Maria."

Para qual Maria os muçulmanos e protestantes estão sendo atraídos? A Reforma Protestante rejeitou a visão distorcida de Maria, que se desenvolveu no Ocidente desde o Cisma de 1054, e que acabaria por resultar na proclamação do dogma da Imaculada Conceição pela Igreja Romana. Mas o protestantismo não rejeitou apenas a visão ocidental de Maria; ignorou Ela completamente, negando de fato Seu papel na Encarnação e, consequentemente, a parte que Ela desempenha em nossa salvação. Como Roma começou a vê-la cada vez mais como uma "deusa", uma quarta Hipóstase da Trindade, por assim dizer, os protestantes reagiram por minimizar Sua posição e recusando-se a honrá-la, isto apesar das palavras do Evangelho: "Todas as gerações me chamarão bem-aventurada ".

Hoje, à medida que os cristãos heterodoxos se tornam cada vez mais ecumenistas e trabalham para a criação de uma "Igreja Mundial Única", iniciou-se a busca de uma Maria de reconhecimento universal, que apelará não apenas aos que carregam o nome de cristão, mas aparentemente aos muçulmanos e outros também, assim como também estão sendo feitas tentativas de identificar o "novo Cristo" com o conceito muçulmano do vindouro Mahdi e com o Messias ainda aguardado pelos judeus. Isto, naturalmente, não será Cristo, mas o anticristo. Aparentemente, o caminho também está sendo pavimentado para uma "anti-Maria". O artigo da revista "Life" termina com o caso de um ministro unitário que "tem um sonho - de uma Maria meio-termo, uma Sempre-Maria que pode transcender ideologias e dar a este mundo tumultuado a mãe que precisa. 'Eu gosto de pensar que ela poderia ser uma ponte entre as religiões', diz ele."

Que tais palavras sejam uma advertência para todos os cristãos ortodoxos, que podem estar intrigados por aparições como as de Fátima, Lourdes ou Medjugorje. Estas ocorreram fora da Igreja e como tal são suspeitas.

Outro aspecto perturbador do artigo é o uso degradante de frases jornalísticas cativantes comuns em referência à Mãe de Deus, por exemplo: "... a noção de que Maria permaneceu virgem durante toda a sua vida não estava no ar". "Isto impulsionou Maria para ser ... uma celebridade principal," e "como a mulher a mais famosa da Bíblia, Maria transformou-se uma peça simbólica na luta para a ordenação das mulheres..." Nossa posição é que a Theotokos não é uma "Sempre-Maria" abstrata que somos livres para reinventar e moldar a nosso gosto. Ela é uma pessoa real que andou nesta terra, e para entender quem Ela é, nós não precisamos buscar mais longe do que as Escrituras e a Sagrada Tradição de nossa Igreja, que permaneceu inalterada desde os tempos apostólicos. Ela não é nem a criatura super-humana inventada pelos católicos romanos, nascida sem uma natureza humana decaída, nem é meramente humana como os protestantes pensam. O ocidente, ao perder seus laços com a Ortodoxia, esqueceu o ensinamento patrístico da theosis ou "divinização". Ninguém nasce perfeito, mas tampouco somos humanos condenados a ser meras criaturas decaídas. Estas parecem ser as únicas alternativas que o cristianismo heterodoxo pode compreender. Mas nossos Pais da Igreja sempre ensinaram que "Deus se fez homem para que o homem possa tornar-se divino", isto é, que pudéssemos partilhar de Sua natureza (II Pedro 1: 4) e ser conformado à imagem divina na qual o homem foi originalmente criado. A salvação é um processo que começa com nossa natureza decaída e pecaminosa e conduz à participação na própria Vida da Trindade.


A Theotokos, a Igreja nos ensina, é a primeira e maior exemplo desse processo. Ela submeteu Sua vontade a Deus, concordando em ter Seu Filho. Sem Ela não teria havido nenhuma Encarnação e consequentemente nenhuma Redenção. Através da oração e do jejum, cresceu em santidade para se tornar um vaso puro para conter o Ilimitado. Depois do nascimento de Cristo, ela permaneceu sempre virgem e continuou Seu podvig [esforço espiritual, ascese, nota do tradutor] para tornar-se "mais  venerável que os Querubins e incomparavelmente mais gloriosa que os Serafins". Essa visão, Ortodoxa, evita os extremos ocidentais que consideram a Theotokos como quem nasceu perfeita ou como quem nunca tornou-se perfeita.

Os cristãos ortodoxos devem seguir o exemplo da verdadeira Mãe de Deus, "a própria Theotokos", e chamando-a à lembrança "comprometei-nos, uns aos outros e toda a nossa vida, a Cristo, nosso Deus".


A "New Mary" for a New Age? por Peter Jackson, revista Orthodox Life, No. 1, 1997, pp. 18-22.

quarta-feira, 8 de março de 2017

A Oração Cristã e as Meditações Orientais (Arquimandrita Sofrônio de Essex)

O caminho de nossos Pais requer uma forte fé e longanimidade, ao passo que nossos contemporâneos tentam adquirir dons espirituais, incluindo até a contemplação direta do Deus Absoluto, através da força em um breve espaço de tempo.

Muitas vezes, pode-se notar neles uma disposição em traçar um paralelo entre a oração do Nome de Jesus e yoga ou "meditação transcendental" e semelhantes.

Penso que é necessário apontar os perigos desta ilusão, o perigo de encarar a oração como um meio "técnico" muito simples e fácil de conduzir à união direta com Deus.

Considero essencial enfatizar a diferença radical entre a Oração de Jesus e todas as outras teorias ascéticas.

São iludidos aqueles que se esforçam mentalmente para se despojar de tudo que é transitório, relativo, a fim de que assim possam atravessar algum limiar invisível, para realizar seu ser "sem começo", sua "identidade" com a Fonte de tudo que é; a fim de retornar a Ele, se imergir Nele, no Absoluto transpessoal sem nome; a fim de - na vasta extensão daquilo que está além do pensamento - unificar a própria individualidade com a forma individualizada da existência natural. Esforços deste tipo permitiram alguns daqueles que se esforçam a elevarem-se, até certo ponto, à contemplação metalógica do ser; a experimentar um certo temor; a conhecer o estado quando a mente é silenciada, quando se vai além dos limites do tempo e espaço. Em semelhantes estados, o homem pode sentir a paz ao livrar-se das manifestações em constante mutação do mundo visível: podem descobrir neles mesmos a liberdade de espírito e contemplar a beleza mental.

O desenvolvimento último desse ascetismo impessoal levou muitos ascetas a perceber a origem divina na própria natureza do homem; a uma tendência à auto-divinização que está na raiz da grande Queda; ao ver no homem uma certa "absolutidade" que, em essência, nada mais é do que o reflexo da Divina Absolutidade na criatura criada à Sua semelhança; a sentir-se atraído para retornar ao estado de paz que o homem conhecia antes de sua aparição neste mundo.

Em alguns casos depois de tais experiências algumas formas de anomalias mentais podem surgir na mente. Não estou me impondo a tarefa de listar todos os tipos de intuição mental, mas direi, por experiência própria, que o Verdadeiro Deus Vivo, o EU SOU, não se encontra aqui. Aqui está o gênio natural do espírito humano em seus impulsos sublimados em direção ao Absoluto.

Toda contemplação alcançada por tal meio é uma contemplação de si mesmo, não uma contemplação de Deus. Nessas circunstâncias, abrimos para nós mesmos a beleza criada, não o Ser Primeiro. E em tudo isso não há salvação para o homem.

A fonte da libertação verdadeira reside na inquestionável aceitação - de todo o coração - da Revelação, "Eu sou o que sou ... Eu sou o Alfa e o Ômega, o primeiro e o último." Deus é o Pessoal Absoluto, Trindade Una e Indivisível.

Toda a nossa vida cristã é baseada nesta Revelação. Este Deus nos chamou do não-ser para a vida. O conhecimento deste Deus Vivo e o discernimento da maneira de Sua criação nos liberta da obscuridade de nossas próprias ideias, vindas de baixo, sobre o Absoluto; resgata-nos da nossa atração inconsciente de tudo o que prejudicial para nós mesmos.

Somos criados a fim de ser comunicantes no Ser Divino daquele que realmente é. Cristo indicou este caminho prodigioso: "Porque estreita é a porta e difícil o caminho que conduz à vida."

Apreendendo as profundezas da sabedoria do Criador, embarcamos no sofrimento pelo qual a eternidade Divina é alcançada. E quando Sua Luz brilha para nós, unimos em nós a contemplação dos dois extremos do abismo: de um lado, a escuridão do inferno e, do outro, o triunfo da vitória. Estamos existencialmente introduzidos na província da Vida Divina Incriada.

E o inferno perde poder sobre nós. É-nos dada a graça de viver o estado do Logos encarnado Cristo, que desceu ao inferno como Conquistador. Assim, pelo poder de Seu amor, abraçaremos toda a criação na oração: "Ó Jesus, Gracioso Todo-Poderoso, tem piedade de nós e do Teu mundo".

A Revelação deste Deus Pessoal transmite um caráter maravilhoso a todas as coisas. O Ser não é um processo cósmico determinado, mas a Luz do amor indescritível entre as pessoas Divinas e as criadas. É o movimento livre de espíritos plenos de sabedoria de tudo o que existe, e a consciência de si mesmo.

Sem isso não há sentido em qualquer coisa, mas só morte. Mas nossa oração se torna um contato vivo de nossa pessoa criada e da Pessoa Divina, isto é, algo absoluto.

E isso é expresso quando nos dirigimos ao Verbo do Pai: "Ó Senhor Jesus Cristo, Verbo de Deus Pai, tem piedade de nós. Salva a nós e Teu mundo."

Do livro "On Prayer" pelo Arquimandrita Sofrônio (Sakharov) p.168-170

sexta-feira, 3 de março de 2017

O Pecado não é um problema moral (Pe. Stephen Freeman)

Muitos leitores nunca antes ouviram dizer que não existe tal coisa como progresso moral - portanto não estou surpreso por terem pedido que eu escrevesse com mais profundidade sobre o tema. Começarei por focar na questão do pecado em si. Se entendermos corretamente a natureza do pecado e seu verdadeiro caráter, a noção de progresso moral será vista com mais clareza. Começarei por esclarecer a diferença entre a noção de moralidade e a compreensão teológica do pecado. São dois mundos muito diferentes.

Moralidade (na forma que utilizo a palavra) é um termo amplo que geralmente descreve a adesão (ou falta de adesão) a um conjunto de padrões ou normas de comportamento. Nesse entendimento, todo mundo pratica alguma forma de moralidade. Um ateu pode não acreditar em Deus, mas ainda terá um sentido interiorizado de certo ou errado, bem como um conjunto de expectativas para si mesmo e para os outros. Nunca houve um conjunto de padrões morais aceitos universalmente. Pessoas diferentes, culturas diferentes, têm uma variedade de entendimentos morais e formas de discutir o que significa ser "moral".

Tenho observado e escrito que a maioria das pessoas não irão progredir moralmente. Isto quer dizer que geralmente não conseguimos melhorar observando quaisquer normas e práticas que consideramos moralmente corretas. Em geral, estamos tão moralmente corretos como sempre seremos.


Isto difere fundamentalmente do que se chama "pecado" em termos teológicos. A falha em aderir a certos padrões morais pode ter certos aspectos de "pecado" por trás dela, mas as falhas morais não são a mesma coisa que o pecado. Da mesma forma, a correção moral não é de modo algum a mesma coisa que a "retidão". Uma pessoa poderia ter sido moralmente correta durante toda sua vida (teoricamente) e ainda estar enterrada no pecado. Entender o pecado tornará isso claro.

"Pecado" é uma palavra que é usada frequentemente de forma incorreta. Popularmente é utilizada para denotar infrações morais (violação das regras), ou, religiosamente, violação das regras de Deus. Assim, quando alguém pergunta: "É pecado fazer x, y, z?", o que eles querem dizer é: "É contra as regras de Deus fazer x, y, z?", mas isso é incorreto. Propriamente, o pecado é algo completamente distinto da violação das regras - São Paulo fala disso de maneira bem diferente:
Sei que nada de bom habita em mim, isto é, em minha carne. Porque tenho o desejo de fazer o que é bom, mas não consigo realizá-lo. Pois o que faço não é o bem que desejo, mas o mal que não quero fazer esse eu continuo fazendo. Ora, se faço o que não quero, já não sou eu quem o faz, mas o pecado que habita em mim. (Romanos 7:18-20)
"Pecado que habita em mim?" Obviamente "violar as regras" não é um significado que se encaixa neste uso em qualquer maneira possível. O pecado tem um significado completamente diferente. Podemos retomar seu sentido por São Paulo:
Porque, quando éreis servos do pecado, estáveis livres da justiça. E que fruto tínheis então das coisas de que agora vos envergonhais? Porque o fim delas é a morte.Mas agora, libertados do pecado, e feitos servos de Deus, tendes o vosso fruto para santificação, e por fim a vida eterna.Porque o salário do pecado é a morte, mas o dom gratuito de Deus é a vida eterna, por Cristo Jesus nosso Senhor. (Romanos 6:20-23)
Aqui o pecado é algo em que podemos ser escravos, e cujo fim é a morte. Então o que é pecado?

O pecado é uma palavra que descreve um estado de ser - ou, mais propriamente, um estado ou processo de não-ser. É um movimento para longe da nossa própria existência - do dom de Deus para Sua criação. Somente Deus tem o Verdeiro Ser - Só Ele é auto-existente. Todo o resto que existe é contingente - totalmente dependente em cada momento de Deus, que é a existência. Quando Deus nos criou, segundo os Padres, Ele nos deu existência. À medida que aumentamos nossa comunhão com Ele, avançamos para o ser. Seu dom final para nós, e é para essa união que devemos nos mover adequadamente, é o ser eterno.

Mas há um oposto a esta vida de graça. Trata-se de um movimento em direção à não-existência, um movimento para longe de Deus e uma rejeição do ser. É este movimento que é chamado de "pecado". Podemos ser escravos dele, como uma folha presa em um redemoinho na água. O pecado não é algo em si (pois o não-ser não tem existência). Mas é descrito nas Escrituras por palavras como "morte" e "corrupção". Corrupção ou "putrefação" (φθορά) é uma excelente palavra para descrever o pecado. Pois é a dissolução gradual (um movimento ou processo dinâmico) de uma coisa anteriormente viva - sua decadência gradual ao pó.

Isso difere notoriamente da idéia de pecado como a violação das regras morais. A ruptura de uma regra implica apenas um erro externo, uma infração meramente legal ou forense. Nada de substância é alterado. Mas as Escrituras tratam o pecado muito mais profundamente - é em si uma mudança na substância, uma decadência de nosso próprio ser.

E aqui é onde um re-pensar criativo torna-se necessário. O hábito de nossa cultura é pensar no pecado em termos morais. É simples, requer muito pouco esforço, e coincide com o que todos ao seu redor pensam. Mas é teologicamente incorreto. Isso não quer dizer que você não pode encontrar tais tratamentos moralistas dentro dos escritos da Igreja - particularmente dos escritos ao longo dos últimos séculos. Mas a captura da teologia da Igreja pelo moralismo é um verdadeiro cativeiro e não uma expressão da mente ortodoxa.

Então, como pensamos o certo e errado, o crescimento espiritual, a própria salvação, se o pecado não é um problema moral? Não ignoramos nossas falsas escolhas e paixões desordenadas (hábitos de comportamento). Mas nós os vemos como sintomas, como manifestações de um processo mais profundo em funcionamento. O cheiro de um cadáver não é o verdadeiro problema e tratar o cheiro não é de modo algum a mesma coisa que a ressurreição.

A obra de Cristo é obra da ressurreição. Nossa vida em Cristo não é uma questão de aperfeiçoamento moral. Estamos enterrados em Sua morte - e é uma morte real - completa com tudo o que a morte significa. Mas a Sua morte não foi para corrupção. Ele destruiu a corrupção. Nosso Batismo na morte de Cristo é um Batismo na incorrupção, a cura do rompimento fundamental em nossa comunhão com Deus.

Então, como é essa cura? É errado esperar algum tipo de progresso ocorrer?

Minha experiência de vida (34 anos como sacerdote) e a leitura dos Padres e da Tradição sugerem que tais expectativas são, de fato, enganosas. Eu me perguntei sobre isso por muitos anos. Passei a pensar em nossa salvação como sendo semelhante à realidade dos sacramentos. O que você vê na Eucaristia? O Pão e o Vinho sofrem uma mudança progressiva? Vemos uma transformação diante dos nossos olhos?

O que parece ser verdade é que nossa salvação está em grande parte escondida - às vezes até mesmo de nós. A fé cristã é "apocalíptica" em sua própria natureza - é uma "revelação do que está escondido." As parábolas estão repletas de imagens de surpresa: tesouro descoberto, etc A salvação tem um modo do simplesmente aparecer. Muitas vezes penso no drama litúrgico numa liturgia ortodoxa como se isso acontecesse - por isso as portas e a cortina e o "agora você vê - agora você não vê - agora você realmente vê" fluem do serviço.

Encontrar nossa salvação significa afastar-se da aparência das coisas. Requer uma profunda e fundamental reorientação interior de nossas vidas. Requer a obra interior do arrependimento. A vida moral é vivida na superfície - até mesmo os ateus se comportam de maneira moral. Quando nos voltamos para Cristo em nós, nos movemos abaixo da superfície. Começamos a ver como são efêmeras e confusas nossas ações.

Essas ações são em maior parte a obra de um eu falso, um ego que é débil e vergonhoso, que luta freneticamente "para ser melhor". Mas o coração da vida espiritual cristã não é por este caminho do ego aperfeiçoado, mas através do caminho da "morte a si mesmo", em que perdemos uma existência que não é nosso verdadeiro eu, e aprendemos uma existência que é nossa em Cristo. Mas o que vemos é muitas vezes outra coisa. Pois, enquanto estamos encontrando a verdade, o outro ainda se apega à sua falsa existência - e isto é primariamente o que vemos e o que os outros veem. A obra escondida da salvação permanece invisível.

Não é de todo incomum na vida dos santos que a santidade de um indivíduo permaneça escondida até a sua morte. Este foi o caso de São Nectarios de Egina. Ele foi desprezado por muitos, embora visto verdadeiramente por poucos. Mas na sua morte, milagres começaram a fluir dele e, de repente, as histórias começaram a surgir.

E misteriosamente, parece que esta vida escondida é muitas vezes escondida até mesmo do próprio santo (assim como nossa verdadeira vida está escondida de nós). Eu penso que Deus nos preserva do peso deste conhecimento por causa da nossa salvação.

Pensai nas coisas do alto, não nas que são da terra. Pois vocês estão mortos, e sua vida está escondida com Cristo em Deus. Quando Cristo, que é nossa vida, aparecer, então também vocês aparecerão com Ele em glória. (Col 3: 2-4)

Isto, novamente, é o caráter apocalíptico da vida cristã. Estamos mortos e nossas vidas verdadeiras estão escondidas com Cristo em Deus - e elas aparecerão quando Ele aparecer.

Então, o que vemos nesta vida? A resposta simples é clara: Cristo. Não é a nosso próprio aperfeiçoamento que buscamos, mas Cristo. Nosso próprio aperfeiçoamento passa gradativamente a ser algo desimportante quando encontramos Cristo. E quanto mais O encontramos, mais claramente a falsa natureza do ego parece clara para nós, e podemos dizer: "Eu sou o pior de todos os pecadores".

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2017

Atitude Ortodoxa em relação aos Cristãos Não-ortodoxos (Pe. Seraphim Rose)

Alguns anos antes de falecer, Pe. Seraphim recebeu uma carta de uma mulher afro-americana que, como catecúmena aprendendo sobre a Ortodoxia, estava lutando para entender a atitude pouco caridosa que alguns Cristãos Ortodoxos mostravam àqueles que estavam fora da Igreja, uma atitude que lhe lembrava de como seu próprio povo tinha sido tratado. "Estou bastante preocupada", esta mulher escreveu, "sobre a forma de como a Ortodoxia vê os Cristãos Ocidentais, isto é, Protestantes e Católicos Romanos. Eu li muitos artigos de muitos escritores Ortodoxos, e alguns usam palavras como "papistas", etc. que eu acho profundamente preocupante e bastante ofensivas. Eu acho ofensiva porque, como uma pessoa de uma raça que já foi submetida a muitos insultos, eu desprezo e não desejo adotar o hábito de xingar. Até mesmo o termo "herético" me perturba...

"Como fico com meus amigos e parentes? Eles não sabem sobre a Ortodoxia e eles não entendem isso. No entanto, eles acreditam e louvam Cristo... Devo tratar meus amigos e parentes como se eles não tivessem Deus, sem Cristo? Ou devo chamá-los de Cristãos, mas que não conhecem a verdadeira Igreja?

"Quando fiz essa pergunta, não posso deixar de pensar em São Inocêncio do Alasca quando visitou os mosteiros franciscanos na Califórnia. Ele permaneceu completamente ortodoxo, mesmo tratando os padres que encontrou lá com bondade, caridade e não com xingamentos. Isso, espero, é o que a Ortodoxia diz sobre como se deve tratar os outros Cristãos."

O dilema dessa mulher era bastante comum às pessoas que entram na Fé Ortodoxa. Aproximando-se do fim de sua curta vida e tendo abandonado sua amargura juvenil, Pe. Serafim respondeu o seguinte:
Fiquei feliz em receber sua carta - feliz, não porque você está confusa sobre a questão que lhe incomoda, mas porque sua atitude revela que na verdade da Ortodoxia pela qual você é atraída, você deseja encontrar uma espaço para uma atitude amorosa e compassiva para aqueles que estão fora da Fé Ortodoxa.

Eu acredito firmemente que realmente é isto o que a ortodoxia ensina ...

Explicarei brevemente o que acredito ser a atitude ortodoxa em relação aos cristãos não-ortodoxos.

1. A Ortodoxia é a Igreja fundada por Cristo para a salvação da humanidade e, portanto, devemos guardar com a nossa vida a pureza de sua doutrina e a nossa fidelidade a ela. Na Igreja Ortodoxa, apenas, a graça é dada através dos sacramentos (a maioria das outras igrejas nem sequer afirmam ter sacramentos em qualquer sentido sério). Só a Igreja Ortodoxa é o Corpo de Cristo, e se a salvação é suficientemente difícil dentro da Igreja Ortodoxa, quanto mais difícil deve ser fora da Igreja!

 2. No entanto, não cabe a nós definir o estado daqueles que estão fora da Igreja Ortodoxa. Se Deus deseja conceder a salvação a alguns que são cristãos na melhor maneira que eles conhecem, mas sem nunca conhecer a Igreja Ortodoxa - isso depende dEle, não de nós. Mas quando Ele faz isso, é algo que está fora do caminho normal que Ele estabeleceu para a salvação - que está na Igreja, como parte do Corpo de Cristo. Eu mesmo posso aceitar a experiência dos protestantes como "nascidos de novo" em Cristo; conheci pessoas que mudaram suas vidas inteiramente por meio do encontro com Cristo, e eu não posso negar sua experiência apenas porque elas não são ortodoxas. Eu chamo essas pessoas de cristãos "subjetivos" ou "iniciantes". Mas, enquanto não estiverem unidos à Igreja Ortodoxa, não podem ter a plenitude do cristianismo, não podem ser objetivamente cristãos como pertencentes ao Corpo de Cristo e receber a graça dos sacramentos. Penso que é por isso que existem tantas seitas entre eles - eles começam a vida cristã com uma genuína conversão a Cristo, mas não podem continuar a vida cristã de maneira correta até que estejam unidos à Igreja Ortodoxa e, portanto, eles substituem suas próprias opiniões e experiências subjetivas pelos ensinamentos e sacramentos da Igreja.

Sobre aqueles cristãos que estão fora da Igreja Ortodoxa, portanto, eu diria: eles ainda não têm toda a verdade - talvez ainda não tenha sido revelada a eles, ou talvez seja nossa culpa por não viver e ensinar a Fé Ortodoxa em uma maneira que eles possam entender. Com tais pessoas não podemos ser um na Fé, mas não há razão para que os consideremos totalmente estranhos ou iguais aos pagãos (embora também não devemos ser hostis aos pagãos - eles também não viram a verdade!). É verdade que muitos dos hinos não-ortodoxos contêm um ensinamento ou pelo menos alguma ênfase que é errado - especialmente a ideia de que quando alguém é "salvo", não é necessário fazer nada mais porque Cristo fez tudo. Essa ideia impede que as pessoas vejam a verdade da Ortodoxia, que enfatiza a idéia de lutar pela salvação mesmo depois de Cristo nos ter dado, como diz São Paulo: "Trabalhai vossa salvação com temor e tremor". [Filip. 2:12]. Mas quase todos os cânticos religiosos de Natal estão corretos, e eles são cantados por cristãos ortodoxos na América (alguns deles mesmo nos monastérios mais rigorosos!).
A palavra "herege" (como dizemos em nosso artigo sobre Pe. Dimitry Dudko) é, de fato, utilizada com muita frequência hoje em dia. Ela tem um significado e uma função definida para distinguir os novos ensinamentos do ensinamento Ortodoxo; mas poucos dos cristãos não-ortodoxos hoje são conscientemente "hereges", e realmente não faz bem chamá-los assim.

No final, acho que a atitude do Pe. Dimitry Dudko é a correta: devemos ver as pessoas não-ortodoxas como pessoas a quem a Ortodoxia ainda não foi revelada, como pessoas que são potencialmente ortodoxas (se pelo menos nós mesmos lhes déssemos um melhor exemplo!). Não há razão para que não possamos chamá-los cristãos e estar em bons termos com eles, reconhecer que temos pelo menos nossa fé em Cristo em comum, e vivermos em paz especialmente com nossas famílias. A atitude de São Inocêncio aos católicos romanos na Califórnia é um bom exemplo para nós. Uma atitude severa e polêmica é exigida apenas quando os não-ortodoxos estão tentando afastar nosso rebanho ou mudar nosso ensino...

Quanto aos preconceitos - estes pertencem às pessoas, não à Igreja. A ortodoxia não exige que você aceite quaisquer preconceitos ou opiniões sobre outras raças, nações, etc.

Do livro Father Seraphim Rose: His Life and pelo Hieromonge Damasceno