Todas as três principais confissões cristãs ensinam em geral que cada alma, sobrevivendo após a morte, passa imediatamente depois por um julgamento separado, após o qual é enviada à felicidade ou a tormentos, de acordo com a forma como é encontrada nesse julgamento. No fim do mundo, haverá outro julgamento, o universal.
Oposto a este ensinamento está a teoria de que as almas evoluem infinitamente após a morte. Ela tem duas formas:
1. A primeira forma consiste na afirmação de que a vontade humana e o destino humano são indefinidamente variáveis. De acordo com esta teoria, o ser humano pode mudar de direção ao longo da vida futura. A vontade nunca é fortalecida definitivamente em uma ou outra direção, seja nesta vida ou na próxima, de modo que possa pronunciar julgamento sobre o ser humano imediatamente após a morte. A eternidade será uma sucessão infinita de existências felizes ou infelizes para os seres humanos, que são eternamente livres para levar uma vida boa ou uma vida má. Uma forma concreta desta doutrina é a teoria da reencarnação ou metempsicose, sustentada por antroposofistas e espíritas.
2. A segunda forma, denominada universalismo, sustenta que no fim todas as almas alcançarão o mesmo grau de felicidade, pois um ser livre pode se arrepender a qualquer momento, e no fim todos se arrependerão. O mal terminará em algum momento, pois todo mal é medicinal, e portanto temporal. [1]
Em geral, esta teoria se opõe em princípio a qualquer julgamento de Deus, seja individual ou universal, que dividiria eternamente as pessoas humanas com base na decisão delas durante sua breve vida na Terra. Entre os defensores desta teoria, mencionamos Gotthold Lessing, que, em nome da filosofia idealista panteísta, substituiu o fim duplo da humanidade por uma evolução sem fim. No âmbito teológico, Friedrich Schleiermacher, Otto Pfleiderer, Ernst Troeltsch, Reinhold Seeberg, Hermann Ludemann e Willy Hellpach apoiaram esta teoria evolucionista. [2]
Três argumentos são apresentados em apoio a estas teorias: (1) o caráter indecisivo da vida presente para determinar o destino eterno do ser humano, (2) a liberdade eterna da pessoa humana, e (3) a impossibilidade de conciliar o julgamento divino com a bondade divina.
1. Em apoio ao caráter decisivo da vida presente, primeiramente, apresentamos as palavras das Sagradas Escrituras, a partir das quais uma série de conclusões pode ser extraída.
As Sagradas Escrituras mostram que a vida na Terra é a arena na qual a pessoa humana decide seu destino para a eternidade, pois após a morte ela não pode mudar seu destino. Isto é mencionado primeiramente de uma maneira geral, considerando a vida como "o tempo" que temos. "Por isso, enquanto temos tempo, façamos o bem a todos os homens" (Gálatas 6:10). "Convém que eu faça as obras daquele que me enviou, enquanto é dia; a noite vem, quando ninguém pode trabalhar." (João 9:4) [3] Mas então as Escrituras especificam que a vida na Terra tem este caráter decisivo porque é a vida no corpo: "Porque teremos de comparecer diante do tribunal de Cristo. Ali cada um receberá o que mereceu, conforme o bem ou o mal que tiver feito enquanto estava no corpo." (2 Coríntios 5:10) "Quem semeia na carne, da carne colherá a corrupção; quem semeia no Espírito, do Espírito colherá a vida eterna." (Gálatas 6:8; veja também Ef 6:8; Rm 2:5-6).
A partir destas palavras e de todo o espírito das Sagradas Escrituras, vê-se que, segundo a revelação, o homem é um ser ativo e, portanto, completo apenas no corpo. Ele trabalha para sua perfeição espiritualizando o corpo, ou seja, pelo fato de fazer do corpo um meio para os sentidos e para as boas obras. [4]
Deus criou todo este mundo visível para que, através do homem, Ele pudesse se tornar tudo em todos. Esta é a missão específica da pessoa humana: ser o elo entre Deus e o mundo, um elo entre todas as coisas, através de seu espírito unido a Deus.
Deus tem um plano cósmico de salvação; Ele não salva mônadas espirituais singulares. A pessoa humana não pode cumprir esta missão única, exceto em um corpo intimamente conectado a este mundo. É por isso que o próprio Filho de Deus se fez homem em corpo e alma, para que através de Sua humanidade Ele pudesse reunir toda a criação em Si mesmo. Como então o homem poderia tornar-se perfeito como um ser espiritual se não agisse sobre o mundo, se não fosse fortalecido como um espírito - com a ajuda de Deus - em relação ao mundo visível? Além disso, somente nesta vida corporal o homem tem semelhantes necessitados a quem ele pode ajudar através de seu corpo. São João de Damasco diz: "Quando termina o dia do mercado, não há mais comércio de mercadorias. Pois então onde estão os pobres? Onde estão os liturgistas e a salmodia? Onde estão as boas obras? Antes da hora da morte, podemos ajudar uns aos outros, e podemos oferecer manifestações de amor fraterno a Deus, o amante da humanidade". [5]
Somente a teoria da reencarnação parece levar em consideração a necessidade do corpo para a perfeição do homem. Mas na realidade, ela priva de caráter decisivo qualquer vida pela qual uma alma passaria em suas sucessivas encarnações. Pois esta teoria vê o mundo ascendendo e descendo eternamente para cima e para baixo, sem nenhum objetivo final e, portanto, sem nenhum sentido. Não existe um nível absoluto de existência para o qual o mundo tenderia e no qual as encarnações chegariam totalmente ao fim. Se esse nível absoluto existisse, ele deveria ter sido alcançado desde a eternidade, porque se sobe eternamente os degraus em direção a ele. Mas estas encarnações não mantêm a mesma pessoa em uma continuidade real à medida que ela se move de uma encarnação para a próxima. Em qualquer reencarnação particular, o mesmo ser não se reconhece como idêntico a seu eu anterior. O "eu" atual não é idêntico aos "eus" das encarnações anteriores. A perfeição dos "eus" futuros não me interessa. Falando apropriadamente, todas as pessoas são perdidas - se ainda assim podem ser chamadas de pessoas. Que alegria tenho em minhas futuras encarnações superiores se eu não registrar conscientemente meu progresso desta encarnação para as futuras? [6]
De fato, a antroposofia sustenta que a série de reencarnações leva os seres a se fundirem em uma essência espiritual suprema, de modo que eles possam então se desprender novamente desta essência para se tornarem partes materiais individuais que são mais uma vez gradualmente espiritualizadas. Esta teoria combina o origenismo - que está ligado à teoria da formação de mundos sucessivos que caem e emergem de si mesmos - com encarnações sucessivas dentro destes mesmos mundos. Assim, a crítica do relativismo origenista insere-se ao lado da crítica das reencarnações, que tornam a pessoa humana ainda mais efêmera.
Com relação à forma origenista da teoria das descidas e ascensões sucessivas, São Máximo o Confessor se questionou como os seres espirituais poderiam ter se afastado da unidade original, pois nessa unidade eles experimentaram o bem supremo, e assim não havia mais espaço neles para qualquer outro desejo. [7] E qual é a garantia de que, uma vez reunidos na unidade original, eles não se moveriam novamente, repetindo sem cessar e sem sentido a série de quedas e retornos à plenitude? Isso significaria que os seres criados não poderiam encontrar a felicidade completa em nenhum lugar. São Máximo vê o significado do movimento no fato de que tendemos ao objetivo final: que os seres criados repousem eternamente na infinitude divina. Sem a tensão interna dirigida a esse objetivo final - perfeição absoluta na infinita plenitude divina - o movimento não tem sentido. [8] Ele nos engana com objetivos imediatos que na realidade não nos tiram do plano da relatividade, quer avancemos mais neste plano, quer retornemos sempre em um círculo. Neste caso, o tempo, no qual este movimento é produzido, não tem nenhum objetivo final dentro da eternidade e, portanto, nenhum significado. Falando corretamente, sem essa estabilidade eterna no Deus eterno, não há uma verdadeira eternidade. A distinção entre o tempo e a eternidade desaparece. Tudo se torna um tempo eterno ou uma eternidade temporal, com um movimento que não leva a nenhum significado último, a nenhuma plenitude absoluta. A ausência de uma distinção entre relativo e absoluto implica a ausência de uma distinção entre movimento e estabilidade no Um infinito; há um movimento eterno que não leva a lugar algum. O movimento perde seu grande valor como avanço em direção ao bem absoluto. [9] A distinção entre o bem e o mal também se torna relativa. Pois o movimento é tanto um produto da Queda como o meio de se elevar novamente a um lugar de onde a pessoa cai outra vez, pois ali não se encontra a perfeição, pleroma. Este mundo só tem valor real se ele for único. Só tem valor real se ele for a criação positiva de Deus no sentido de ser um ponto de partida para o ser criado, para que ele possa avançar de seu estado inicial para o estado de estar pleno de Deus (e para este avanço a criatura deve trazer sua própria contribuição). Isto é, a criação de Deus tem valor porque é um ponto de partida do estado de "ser" (ειναι) que o ser criado tem como dom de Deus, passando pelo estado de "bem-ser" (ευ ειναι) que ele obtém através do movimento implantado nele, mas positivamente atualizado por sua vontade, e para o "bem-ser eterno" (αεί ευ ειναι) como dom último e eterno de Deus.
Dessa forma, nossa existência na Terra tem uma importância única e decisiva. O tempo é sua forma exclusiva, e isto dá ao tempo um valor decisivo, um valor que corresponde ao da eternidade. A vida histórica na Terra é elevada acima da relatividade, se a obtenção da vida absoluta em Deus depende exclusivamente dela. Ela se torna absoluta através da participação, para traduzir a expressão patrística "deificação através da participação". Assim, o tempo também é uma graça. A eternidade não pode ser transformada em novas decisões e atos graduais; isto significaria que ela foi transformada em tempo.
Pelo contrário, se o tempo é eterno, se ele continua eternamente como uma piscina infinita, ele perde sua importância decisiva, e todo ato histórico perde sua importância única. Tudo pode ser feito a qualquer momento; tudo pode ser reparado a qualquer momento, em um sentido relativo. Nada está relacionado a um determinado momento histórico, a uma determinada pessoa. Não há progresso real; tudo se torna uma uniformidade cansativa. Não há pressa para responder a qualquer apelo. Pode-se adiar a resposta o tempo que se quiser. Sabendo que há um tempo infinito para decidir, pode-se continuar adiando a decisão. A eternidade não é um cenário para novas decisões, nem o tempo infinito é um cenário que requer uma decisão urgente. É por isso que a eternidade é apenas o cenário dentro do qual colhemos o benefício eterno das decisões no tempo. O tempo eterno não é mais um cenário para a verdadeira perfeição.
Não há nada de errado em adiar o cumprimento de uma decisão tanto quanto possível; não há nada de errado em não fazer o bem solicitado agora. Neste caso, a filosofia do torpor aparece como a mais sábia. No domínio eterno deste tipo de tempo, não há um período decisivo de existência.
Mas se não há mais tempo para decisões obrigatórias, então não há nenhuma importância atrelada a uma ou outra pessoa humana, nem à totalidade de pessoas que estão sendo aperfeiçoadas. Isto é, não há mais nenhuma pessoa que tenha um caráter único ligado ao seu próprio tempo. Se ainda podemos falar de pessoas, elas são uniformes. Qualquer pessoa pode ser morta porque qualquer outra pessoa pode substituí-la. Nem só uma pessoa nem todas juntas podem mover o tempo de sua relatividade, e tais pessoas não se movem em direção ao absoluto para que possam se tornar adequadas a ele. Se há, porém, uma eternidade paralela ao tempo eterno, ela é exclusivamente reservada à Pessoa eternamente perfeita de Deus, que não tem necessidade de perfeição. Mas que tipo de eternidade seria se a Pessoa divina não pudesse supervisionar e organizar o tempo, não pudesse criá-lo e agir dentro dele a fim de tornar outras pessoas eternas?
De fato, a única pessoa eternamente perfeita é Deus, que confere a cada pessoa humana um valor único. Se o tempo fosse eterno, aprisionado na platitude e na relatividade, não haveria lugar para a absolutez de uma Pessoa divina que manteria com cada pessoa humana uma relação de interesse absoluto. Este tipo de tempo não pode ter uma relação com a verdadeira eternidade, e não pode ser realmente preenchido com ela.
Uma evolução indefinida com (ou sem) reencarnações dentro da mesma forma do mundo, uma evolução manifestada nas quedas e ascensões de outros mundos ou dentro do mesmo mundo, implica um mundo sem pessoas eternas, um mundo no sentido panteísta. São Gregório de Nissa diz que reencarnações sucessivas ou mesmo uma evolução sem fim não é possível, exceto numa forma de pensar que confunde natureza racional com natureza irracional, natureza animal com natureza inanimada; em tal sistema toda a realidade é reduzida a uma única substância que se manifesta sob muitos aspectos, ou melhor, sob muitas aparências. [10]
São Gregório aponta como o bem e o mal são confundidos em tal concepção da seguinte forma: "É possível que o homem seja libertado do vício e do mal, uma vez que ele veio do vício" (através da queda do pleroma)? [11] Ou: "Se a virtude é tendência ao princípio criador e se o princípio criador é o vício (insuficiência de pleroma), não deveríamos concluir que a virtude é um movimento em direção ao vício?" [12]
A idéia de uma nova queda que leva a uma nova reparação e, portanto, a uma nova ascensão, implica uma ambiguidade irredutível: o mal da queda e o bom propósito da queda. A quem é feita a reparação se não há um Deus pessoal? E como aquilo que não se faz a partir da liberdade, mas com base em uma lei universal, pode ser chamado de reparação? E pode uma reparação que é feita por erros cometidos em uma existência anterior, erros pelos quais alguém não se sente responsável porque não os reconhece como seus, ser chamada de reparação pessoal? [13] Mencionamos também que na maioria das vezes, embora se diga que devemos ter passado por infinitas reencarnações pela eternidade, não levamos uma boa vida e, portanto, não mostramos que aprendemos algo com as vidas infinitas anteriores.
Não vou reparar nesta vida, através de uma reparação pessoal, erros de vidas passadas dos quais não tenho conhecimento, porque não posso me sentir responsável por essas vidas.
Todas as reencarnações parecem inúteis para a pessoa se elas são para o cumprimento de uma lei sem sentido da substância universal. Somente uma existência temporal única destinada a nos conduzir à eternidade dá pleno sentido a esta vida, durante a qual temos tempo suficiente para decidir. Pois nesta vida aprendemos não apenas com nossa própria experiência, mas também com a experiência de toda a história que nos precedeu, com a experiência de todas as gerações anteriores e de tantas pessoas que encontramos. Com essas experiências aprendemos infinitamente mais do que de vidas anteriores que não lembramos, mais do que desta sucessão de vidas que nos dividem forçosamente de qualquer solidariedade com uma importância única e absoluta. Aprendemos com o ensinamento irrepreensivelmente bom colocado à nossa disposição pela revelação de Deus, que é a Pessoa suprema e boa. Deus concentra toda a eternidade ao meu redor a fim de me convencer a decidir pelo bem na existência presente. Aprendemos na atmosfera que nos envolve de todos os lados e nos faz exigências através de tantos atos de amor para conosco. Estes atos de amor pertencem a Deus e também aos outros, e fazem desta vida uma vida de responsabilidade incessante e única. Aquele que por muitas razões não se deixa penetrar pela responsabilidade nesta vida, faria o mesmo em muitas outras vidas, todas sem a responsabilidade única de obter a eternidade. Se a existência eterna de meus semelhantes depende exclusivamente desta vida, o quanto isso aumenta minha responsabilidade para com eles?
Aprendemos, definitivamente e em grau supremo, com o Filho de Deus que se fez homem, foi crucificado e ressuscitou por nós; Ele habita em nós com Seu amor, dando-nos o poder divino para morrermos para o pecado e vivermos nEle, no próprio Deus, e para segui-Lo no bem que fazemos aos outros. A vida humana está aberta à vida divina de uma maneira tão direta que podemos ser elevados diretamente a ela sem uma escada que consiste nos intermináveis degraus de incontáveis reencarnações, que ainda não nos conduz à vida absoluta de Deus. Assim, ninguém pode se salvar - não importa quantas vidas ele viva e quantas evoluções ele passe - se a salvação é participação na vida divina, não uma ascensão em degraus relativos que nunca chegam ao absoluto e que nunca nos dão tudo. A salvação não é o resultado do cumprimento de certas leis; ninguém pode obter a salvação sozinho. A Salvação é um dom que temos que nos é dado por Deus, que vem até nós tornando-se homem, aproximando-se assim de nós no mais alto grau. Através disto, a vida na Terra torna-se de importância decisiva para a comunicação direta com Deus, que através de Seu Filho encarnado e ressuscitado estabelece a Si mesmo nesta vida, abrindo diretamente nossa temporalidade para a eternidade em Cristo.
Quando o Filho de Deus se fez homem e entrou em nosso plano, tornando possível para nós estarmos em comunhão com Ele, Ele transformou nossa vida na Terra em uma porta direta e aberta em direção ao absoluto. A vida na Terra não é mais uma vida entre muitas outras, uma vida perdida em algum degrau de uma evolução que nunca alcança a perfeição, mas uma vida com uma importância única que está em processo de ser preenchida com a vida eterna do Deus pessoal. [14]
Quando entramos em comunhão com Cristo, o Deus-Homem, somos imediatamente elevados a um horizonte de luz e vida infinita. Temos o potencial de entrar plenamente neste horizonte após a morte, e podemos fazer isso sem ter que procurá-lo ascendendo interminavelmente a escada de uma lei dentro de um sistema que em muitos aspectos é finito, ou relativo - um sistema do qual alguém nunca pode passar para o absoluto.
Entramos subitamente em uma relação íntima com a Pessoa divina, a fonte infinita de amor, que está além de qualquer movimento relativo dentro de uma realidade monista; entramos em uma relação com a Pessoa divina, que está acima de qualquer infinidade relativa de níveis tomados em si e que é a fonte do infinito absoluto.
A comunhão amorosa com uma pessoa humana nos introduz a um plano de vida totalmente diferente da forma como nos relacionamos com os objetos, ou da forma como nós, em nosso isolamento individual, cumprimos cada vez mais escrupulosamente certas normas para nossa vida. Se isto é verdade, muito mais a entrada na comunhão com Cristo nosso Deus, a Pessoa absoluta - que Ele mesmo está em comunhão com duas outras Pessoas absolutas - nos introduz através da graça no plano da vida que é infinitamente mais profundo que aquele da relação com todos os objetos e todas as pessoas humanas, infinitamente mais profundo que aquele de todas as experiências individuais. A lei de compensação ou de reparação, ou de uma evolução por si mesma, pode significar um processo de melhoramento gradual (embora isto seja muito problemático), prolongado em inúmeras existências, como em uma escada sem fim. Mas em comunhão com uma pessoa que ama poderosamente, a vida que eu não tenho como resultado da evolução ou de meus próprios esforços é subitamente derramada em mim, a um grau completamente revigorante, como um novo começo que não tem continuidade com a existência nestas coisas anteriores. Eu a sinto como uma súbita ruptura em relação à monotonia impotente do velho homem, como um renascimento. Mas experimento, infinitamente mais e de forma inteiramente perfeita, o evento de entrar em comunhão com a Pessoa de Deus, que tem infinito amor e poder e que em Cristo entrou no plano que é acessível a mim.
2. O argumento de que o espírito é essencialmente livre tem sido apresentado contra o julgamento divino, mas em favor da universalidade última da salvação, ou da variabilidade indefinida do estado das almas. Até mesmo Orígenes sustentou esta última teoria com este argumento. [15] Mas uma liberdade que leva todas as almas à salvação, ou que torna possível que todas elas passem eternamente do bem para o mal e vice-versa, não é mais liberdade propriamente dita. Se todos alcançam a salvação pela vontade de Deus ou por uma lei de evolução intrínseca, onde está a liberdade? Da mesma forma, se as almas são levadas contra sua vontade para uma encarnação após outra, ou para uma queda após outra, onde está a liberdade? E se ninguém jamais chega à perfeição no infinito da vida divina, e todos continuam se movendo dentro do plano da relatividade eterna, de que vale a liberdade?
A liberdade cristã pressupõe um absoluto pelo qual a pessoa humana pode lutar [por ele] ou pode recusá-lo. Sem este absoluto, a pessoa humana carece de todo apoio e de qualquer causa para afirmação. Em um plano de relatividade eterna e universal ou de um processo natural rigoroso, a luta pela liberdade, que por um lado é pressuposta pela liberdade e, por outro, a promove, perde qualquer incentivo. É por isso que a liberdade tem duas formas: a liberdade obtida pela luta para alcançar o bem absoluto, para impor sua vitória e para unir-se a ele; e a liberdade obtida pela luta para libertar a pessoa das paixões escravizantes, a fim de entrar em comunhão amorosa com outras pessoas, comunhão que é alimentada pela comunhão com a Pessoa suprema, com Deus. É nesta comunhão que se encontra o verdadeiro e completo bem. Aquele que o alcançou tem a verdadeira liberdade (idêntica ao bem verdadeiro e infinito) do qual ele não quer mais sair e do qual não pode mais sair, no sentido de uma impotência adquirida. Nesta comunhão, a pessoa tem uma novidade incessante e sem fim, através do bem que resplandece da Pessoa suprema e que se manifesta na comunhão interpessoal.
Existe também, porém, uma liberdade que se opõe a unir-se ao bem absoluto, ou que recusa a comunhão com a Pessoa suprema, a fonte do amor que torna possível a comunhão completa com outras pessoas. Esta liberdade tem algo de ambíguo em si mesma. Por um lado, ela se deixa levar pelo egoísmo das tendências escravizantes e, neste sentido, é uma falsa liberdade. Por outro lado, impelida por estas tendências, ela se opõe à verdadeira liberdade, que se deleita na comunhão com a Pessoa suprema, porque tem a impressão de que sua oposição é a verdadeira liberdade.
Ambas as formas de liberdade se acostumam a afirmar a si mesmas na eternidade, cada uma considerando a si mesma como a verdadeira liberdade. Assim, aquele que não está em comunhão com Deus jamais poderá ser mudado por Deus em sua negação a Ele, a qual ele considera como a verdadeira liberdade; da mesma forma, aquele que está em comunhão com Deus jamais a abandonará, sentindo-se muito mais justificado na verdadeira liberdade, na qual ele tem a incessante e eternamente nova plenitude de vida. Assim, Deus não impede ninguém de permanecer eternamente na estreiteza de seu egoísmo, um estreitamento que ele interpreta como a verdadeira liberdade.
Nas considerações precedentes conectamos a realidade da liberdade dos seres criados com a realidade da comunhão interpessoal e, em última análise, com a realidade da comunhão deles com Deus. É incompreensível conceber uma verdadeira liberdade sem pensar no tema da comunhão. É igualmente incompreensível imaginar uma comunhão perfeita - portanto uma liberdade na felicidade eterna entre pessoas humanas - que não é alimentada pela comunhão com a Pessoa suprema que se fez homem, isto é, com Cristo.
3. Ao não levar em consideração a abertura do homem à comunhão com Deus, aqueles que aderem à ideia de uma salvação universal (ou pelo menos à variabilidade eterna da salvação) acreditam que um inferno eterno estabelecido pelo julgamento de Deus é incompatível com Sua bondade.
Mas na realidade tais pessoas não levam a sério a existência de Deus como Pessoa, pois esta evolução eterna em direção a um bem universal sempre maior (ou esta eterna variabilidade) é feita com base em uma lei universal na qual Deus não pode intervir. Eles não percebem que sem Deus mesmo esta salvação ou variabilidade eterna universal não é, propriamente falando, salvação. Antes, é uma espécie de inferno, uma espécie de morte no tédio da relatividade eterna, que à medida que se prolonga e se mostra como um estado eterno, torna-se insuportavelmente torturante.
Paradoxalmente, aqueles que pensam que Deus institui o inferno através de um ato de justiça externa (Tomás de Aquino e Dante) e aqueles que negam o inferno demonstram o mesmo mal entendido sobre a felicidade como a comunhão do ser criado com Deus. Com isso, aqueles que negam o julgamento de Deus afirmam, assim como aqueles que o reconhecem como um ato de justiça externa, a mesma coisa, o mesmo inferno universal. Pois uma felicidade que é dada como um estado externo (o sobrenatural criado) e não como comunhão é também uma espécie de inferno de relatividade eterna.
Assim, aqueles que negam o inferno baseado na ideia de justiça divina caem na afirmação de um inferno que é estabelecido pela ausência de qualquer presença efetiva de Deus. Berdiaev comete o mesmo erro ao dizer que tanto a afirmação quanto a negação da eternidade do inferno representam uma racionalização não permissível do mistério. [16] Mas nem ele escapa desta racionalização quando nega o inferno. Desta forma, ele se aproxima da posição daqueles que afirmam que aqueles encontrados no inferno certamente escaparão; esta afirmação se baseia em uma lógica inevitável do movimento das almas, que passam do sofrimento ao arrependimento.
São Máximo o Confessor e São João de Damasco nos oferecem uma interpretação totalmente diferente do inferno. Eles não vêem o inferno como sustentado pelo ato positivo de Deus de condenação daqueles que O recusam; antes, eles o vêem precisamente na recusa dessas pessoas em amá-Lo. São Máximo afirma que Deus ama aquele que está no inferno e ele valoriza Deus; sua infelicidade consiste especificamente no fato de que ele está separado de Deus e vive com aqueles que odeiam a Deus, aqueles a quem ele mesmo odeia. "Uma prova mais terrível do que qualquer punição é estar eternamente junto daqueles que nos odeiam e daqueles a quem odiamos, mesmo sem qualquer outro tormento além desse, e estar separado daqueles que te amam ou são amados [estimados]. Pois Deus, quando Ele pronuncia um julgamento justo, não é odiado por aqueles que Ele julga, pois por natureza Ele é (e Ele é chamado) amor; e nem Ele odeia aqueles que são julgados, [sendo por natureza] livre dessa paixão." [17]
E São João de Damasco diz: "Deus oferece eternamente as coisas boas ao diabo, mas ele se recusa a recebê-las. E na era por vir, Deus oferece as coisas boas a todos, pois Ele é a fonte da qual as coisas boas fluem. Mas todos participam do bem, na medida em que ele mesmo se fez capaz". [18] Portanto, não é Deus que é o autor dos tormentos eternos do diabo, mas o diabo "atormenta a si mesmo" e "ele se fez a causa de punição ou, melhor dizendo, ele pune a si mesmo, desejando coisas que não existem". [19]
O cristianismo não mantém nem a visão impessoalista da evolução na relatividade eterna, nem a visão jurídica de um personalismo enfraquecido pela lei de princípios impessoais. Esta última visão interpõe entre as pessoas uma ordem de coisas, ou obras feitas em conformidade com certas leis. O cristianismo, e especialmente o cristianismo Ortodoxo, explica tanto o inferno quanto o paraíso - ou seja, tanto a infelicidade eterna quanto a felicidade eterna - através do prisma da comunhão. Pois, uma vez que a atitude em relação à comunhão é uma questão de liberdade, a questão do paraíso e do inferno também é uma questão de liberdade, e como tal não pode ser racionalizada. São João de Damasco diz, "Deus não está sujeito à lei; é o que Ele quer que é bom, não o que nós queremos, porque não somos os juízes de Deus." [20] Esta é uma afirmação clara da superioridade da Pessoa de Deus vis-à-vis a lei; a partir disto também resulta a superioridade da pessoa humana. São João de Damasco também diz: "A virtude é o cumprimento da lei de Deus. E a lei de Deus é a Sua vontade ... A vontade de Deus é o bem imutável, sempre o mesmo ... O mal é ... . a destruição do que existe". [21] O que verdadeiramente existe é a Pessoa divina e a pessoa humana como Sua imagem. São João de Damasco diz mais uma vez que a felicidade depende da vontade do seres humanos de estar em comunhão com Deus, pois aqueles que não têm esse desejo trazem infelicidade sobre si mesmos. "Os justos também se alegram quando desejam a Deus e quando O têm sempre dentro de si; os pecadores se punem e não têm consolo quando desejam o pecado e não têm a matéria [para poder] pecar, sendo consumidos como se fossem pelo fogo e pelo verme. Pois o que é o sofrimento, senão a ausência daquilo que é desejado?" [22]
O julgamento divino pode ser entendido como a entrada de uns em comunhão com Deus (através de Sua vontade) ou como a não entrada de outros nesta comunhão por causa da recusa deles. Mas como Deus não se comporta de forma totalmente passiva, o julgamento divino é necessário para definir firmemente o modo de vida eterna dos seres criados. Através de tal julgamento, o caráter pessoal de Deus, e também Seu interesse pelas pessoas humanas, vem à luz. Além disso, o critério último do bem e do mal é destacado. Este critério é o próprio Deus, e Ele é também o fórum de último recurso para este critério. Do contrário, não há um critério de valores nem um fórum supremo para decidir o que é bom e o que é mau; não é mais possível saber o que é bom e o que é mau, e não há um fórum final para decidir esta questão. O critério último do bem não pode ser conhecido exceto por Aquele que é Ele mesmo a bondade. Ele é a suprema realidade pessoal, a fonte última da vida.
Por ser uma questão de comunhão, o julgamento de Deus adquire um significado totalmente novo. O julgamento de Deus, através do qual uns participarão na felicidade eterna e outros na infelicidade eterna, apenas significa que Deus - que está aberto a todas as pessoas, porque todas são criadas para a comunhão - nota com pesar que algumas pessoas não aceitam, ou se tornaram incapazes de aceitar, esta comunhão; assim, elas permanecem na infelicidade através de sua própria liberdade. No afresco do muro exterior do Mosteiro de Sucevita, na Moldávia, Romênia, as almas sobem nos degraus em direção a Jesus, que as espera no topo da escada. No lado superior direito, muitas hostes de anjos as observam, ao passo que no lado inferior esquerdo, demônios as observam. Cada degrau representa um teste de uma das possíveis paixões da alma. A alma que se encontra possuída por uma paixão ou outra cai do respectivo degrau no abismo, que é agitada por demônios, e essa alma não alcança a comunhão com Cristo. Esta queda no fosso escuro que corresponde a uma certa paixão começa já nesta vida terrena, como uma queda na solidão escura que é a ausência de comunhão com Cristo, cujo amor resplandece como luz. É a queda no buraco estéril do egoísmo, do qual nenhuma luz resplandece e do qual ninguém pode sair, porque tal pessoa não quer sair: sua vontade enfraquecida acostumou-se à ilusão de que há liberdade nesta existência para si mesma.
Mas no âmbito desta interpretação do paraíso e do inferno, ainda devemos responder a esta pergunta: Por que, após o julgamento de Deus, aqueles que deixam esta vida sem fé nEle - e, portanto, sem qualquer abertura para a comunhão com Ele, e através dEle com outras pessoas humanas - têm que permanecer eternamente no inferno? Por que a avaliação de Deus a respeito deles (ou do estado em que Deus os encontra após a morte) tem como conseqüência a fixação eterna deles neste estado? Assim, outra pergunta é feita: Aqueles que deixam esta vida nesta situação caem em um estado de infelicidade maior do que aquele em que eles se encontravam aqui? Eles não são capazes de jamais entrar em comunhão com Deus e, portanto, de serem tirados do inferno?
O ensinamento da Igreja de que é possível que alguns sejam tirados do inferno durante o tempo entre o julgamento individual e o julgamento universal permite uma resposta adequada a esta pergunta.
De acordo com este ensinamento, aqueles com alguma fé - e portanto sem uma atitude totalmente contrária à comunhão com Deus - que vão para o inferno após o julgamento individual, poderão alcançar um estágio no qual a capacidade de comunhão que está presente neles poderá ser atualizada. Portanto, este inferno implica em duas possibilidades: que para alguns será eterno, e que para outros será não-eterno.
Embora não possamos afirmar com certeza para quais pessoas o inferno será eterno e para quais ele não será eterno, em princípio é possível que o inferno não seja eterno para algumas delas.
Mas o mistério da liberdade não nos permite dizer que o inferno deixará de ser eterno para todos. Aqueles que não foram capazes de sair do inferno no momento do julgamento universal nunca poderão sair dele.
Que base existe para o fato de que aqueles que serão deixados no inferno até o julgamento universal permanecerão para sempre nele, uma vez que Deus nunca deixa de ser um Deus amoroso e uma vez que eles mantêm para sempre uma certa liberdade? A base é a presciência de Deus, pela qual Deus sabe com certeza que eles nunca responderão a Sua oferta de amor. Esta ausência de resposta pode ocorrer porque eles não querem Seu amor ou porque criaram, através de sua recusa total de comunhão durante sua vida terrena e durante o tempo entre o julgamento individual e o universal, um tal estado dentro de si mesmos que eles não são mais capazes de aceitar a comunhão com Deus. São João de Damasco considera que uma falta de vontade de desejar a Deus se encobre com a pecaminosa "imutabilidade" em que se encontram aqueles que estão no inferno. Falando apropriadamente, após a morte estas pessoas são "imutáveis": aqueles no paraíso não podem ser movidos em relação ao bem, e aqueles no inferno não podem ser movidos em relação ao mal. [23]
O mistério do fato de que alguns poderão ser retirados do inferno antes do julgamento universal e que outros nunca sairão dele, mas passarão para o inferno eterno junto com aquelas pessoas vias que irão para lá no momento em que o mundo acabar - este é um mistério da liberdade do homem. É um mistério que diz respeito ao seu potencial para se tornar enrijecido em uma liberdade negativa que não pode ser superada; é um mistério que não podemos compreender.
Em nossa mente, é igualmente possível que aqueles que estão no inferno queiram ou não queiram sair dele. Somente Deus pode compreender e conhecer de antemão este mistério, e não há nada que possamos fazer a não ser crer no que Ele nos disse através da revelação; devemos esperar para descobrir somente no último julgamento quais pessoas entre nós serão enviadas para o inferno eterno.
Berdiaev admite que existe um inferno que consiste na rejeição da comunhão com Deus. No entanto, ele pensa que este é um inferno subjetivo, não ontológico, e declara que é impossível que este inferno dure para sempre. Além do fato de que isso significa racionalizar a liberdade humana, a afirmação dele não leva em consideração o fato de que em algum momento já não se pode mais fazer uma separação entre o subjetivo e o ontológico. Uma forma estreita de pensar, de sentir e de considerar as coisas e as pessoas humanas cria dentro da natureza humana um certo estado ontológico e distorce seu espírito mais profundo; o cristianismo não diz que o inferno é apenas uma circunstância externa que causa tormento, mas também um mundo de espíritos desfigurados, enrijecidos no mal, numa forma distorcida de olhar para a realidade.
A contribuição do fator subjetivo (ou mesmo imaginativo, fantasmagórico) para sustentar os sofrimentos no inferno é indicada por São João de Damasco quando diz que o fogo ali consiste nas paixões que não encontram a matéria para satisfazer seu desejo. Pois as paixões insatisfeitas atormentam através de sua incapacidade de dar às imagens de prazer uma consistência real. Como a incapacidade de dar a estas imagens uma realidade é prolongada, elas aumentam suas aparências encantadoras, e através destas aparências seu poder de atormentar também aumenta, dada a incapacidade de encontrar hipóstases reais correspondentes. A falta de matéria para satisfazer as paixões é o elemento objetivo dos sofrimentos no inferno. E a efervescência fantasmagórica da paixão, sustentada nesta ausência, é o elemento subjetivo. Aqui está o que diz São João de Damasco:
Dizemos que esse tormento nada mais é do que o fogo da paixão insatisfeita. Pois aqueles que obtiveram a imutabilidade na paixão não desejam a Deus, mas o pecado. Mas ali, naquele lugar, a perpetração do mal e do pecado não tem lugar. Pois não comemos nem bebemos, nem nos vestimos, nem nos casamos, nem acumulamos riquezas, nem invejamos ou nem qualquer outro mal. Portanto, ao desejar e não participar das coisas desejadas, eles são queimados pelas paixões como pelo fogo. Mas aqueles que desejam o bem - isto é, Deus apenas, que é e existe eternamente - e que participam dEle se alegram de acordo com a intensidade de seu desejo, segundo o qual também participam do Desejado. [24]
Isto significa que as almas que foram para o inferno após a morte não sofrem tormentos materiais ou um fogo material, como um ensinamento desenvolvido especialmente na teologia Católica mantém. Trata-se mais da incapacidade das almas de dirigir seu desejo em direção à comunhão com Deus como um bem espiritual; tais almas permanecem em contínuo pesar por não poderem mais desfrutar dos prazeres materiais (ou aqueles da arrogância) aos quais estavam acostumadas exclusivamente. Elas não podem obter o sabor dos prazeres espirituais cuja essência é a comunhão com Deus, a realidade pessoal e a suprema consistência (hipostática).
O inferno é um mal duplo: a vontade de cometer pecado, e a dor da incapacidade de cometê-lo. É um apego ao pecado que não pode mais ser realmente cometido e, portanto, uma recusa em buscar bens espirituais. Por incapacidade, o ser humano é até mesmo removido de sua relação com as coisas, e de qualquer relação egoísta e transitória com outra pessoa. Todas as suas conexões com a realidade são cortadas. Ele leva uma existência fantasmagórica e de pesadelo. Ele está totalmente aprisionado no poço da solidão. Apenas os demônios e suas paixões o mordem como serpentes. Para levar esta ideia adiante, pode-se dizer que sua subjetividade, crescida em proporções monstruosas, faz com que ele não seja mais capaz de ver a realidade dos outros. Ele não pode mais ter nem mesmo relacionamentos pecaminosos e fugitivos com eles. Sua imaginação subjetiva encobre a realidade dos objetos, porque os considera modestos demais para sua imaginação. Ele cai numa espécie de existência onírica na qual tudo se torna caótico em um absurdo sem sentido, sem qualquer consistência, sem qualquer busca por uma saída para fora da mesma, e sem qualquer esperança de uma saída.
Tudo é uma consequência rigorosa e enrijecida dos pecados cometidos na vida. São Máximo o Confessor descreveu este estado em algumas passagens de grande expressividade: "Se não estamos acostumados com os olhos, os ouvidos e a língua a olhar, ouvir, falar de acordo com a natureza, então teremos esta escuridão e este silêncio sepulcral." [25]. Se não desenvolvermos a comunhão, obteremos o silêncio de todos. Se não buscamos o verdadeiro significado das coisas e das pessoas, teremos a mentira e o absurdo; teremos "o verme do ódio" que nós cultivamos. Se amarramos nossa vida a coisas passageiras, ela perderá sua consistência junto com aquelas coisas que passaram como fumaça. Se não apagarmos o fogo das paixões com abstinência, vamos queimar nele sem nada para apagá-lo. "Recebemos a recompensa que nossa própria disposição deliberada merece: para o fogo do hedonismo teremos o fogo da Geena; para a escuridão da ignorância e para a peregrinação errante, a ignorância eterna." [26] Para a altura do orgulho vazio e das diversões, teremos a mais baixa queda e a tristeza contínua. A mentira e a insinceridade dissimulada que cultivamos nos cercarão por todos os lados. Os tormentos não consistirão tanto em uma simples solidão, mas em uma solidão imposta pelo ambiente atormentador. É uma solidão que você defende contra as serpentes que o atacam. Não consiste apenas na ausência de comunhão, pois se fomos cobras para com os outros, outros agora serão cobras para conosco. "Uma prova mais terrível do que qualquer punição é estar eternamente junto daqueles que nos odeiam e daqueles a quem odiamos... e estar separado daqueles que te amam ou são amados". [27] É a solidão em que você é aprisionado pelas faces hostis e feias dos outros sem poder livrar sua visão e seus pensamentos deles. É uma solidão que carece de qualquer olhar interior e de qualquer momento de paz; é sustentada pela ausência de qualquer palavra de amor ou compreensão e é cercada pela zombaria e pelo ódio de todos. Todos estão atormentando a todos; todos estão se defendendo de todos.
Aquele que deseja recebe. Aquele que é bom, recebe coisas boas ... O justo, desejando e tendo Deus, regozija-se para sempre; mas os pecadores, desejando o pecado e não possuindo os objetos do pecado, são atormentados como se fossem comidos pelo verme e consumidos pelo fogo, sem consolo; pois o que é o sofrimento, senão a ausência daquilo que é desejado? De acordo com a intensidade do desejo, aqueles que desejam a Deus se regozijam, e aqueles que desejam o pecado são atormentados. [32]Aqui na terra, quando inclinamos nosso desejo em direção a outras coisas e as obtemos ainda que parcialmente, encontramos prazer nelas. Ali, porém, quando "Deus será tudo em todos" [1 Co. 15:28] e não haverá nem comida, nem bebida, nem qualquer prazer corporal, nem qualquer injustiça, aqueles que não possuem nem prazeres habituais nem nada de Deus sofrerão grandes dores que não são produzidas por Deus, mas que preparamos para nós mesmos. [33]
Assim, temos o paradoxo de que é bom a afirmação da pessoa, mas a afirmação egoísta da mesma, fora da comunhão com Deus - a suprema realidade pessoal - é um mal. São João de Damasco diz isto em sua resposta à pergunta seguinte: Por que Deus não destrói aqueles que sofrerão tormentos eternos em vez de deixá-los sofrer dessa forma?
Para uma bondade imensa Ele [Deus] o fez, pois o Senhor disse: Eu o privarei inteiramente do bem e da subsistência por causa do fato de que ele se tornará mau e perderá todas as coisas boas que lhe foram dadas? De modo algum. Mesmo que ele se torne mau, não o privarei de sua participação em Mim, mas lhe darei este bem: participação em Mim através da existência, mesmo que ele não queira participar em Mim através da existência. Pois nenhum outro mantém e sustenta aqueles que existem, exceto Deus ... Todos os que existem têm sua existência em Deus ... Assim, aqueles que têm existência participam parcialmente do último grau de bondade. Portanto, há algo de bom na existência do diabo, e através da existência ele participa do bem. [34]Deus oferece eternamente as coisas boas ao diabo, mas ele se recusa a recebê-las. E na era por vir, Deus oferece as coisas boas a todos, pois Ele é a fonte da qual as coisas boas fluem. Mas todos participam do bem, na medida em que ele mesmo se fez capaz. [35]
Certamente o julgamento de Deus, com seus efeitos eternos, esconde um grande mistério - um mistério no ápice da realidade para o homem e para Deus. O grande mistério da parte do homem é que ele pode permanecer eternamente diante de tantos sinais da existência de Deus e no meio dos piores tipos de sofrimento, permanecer na monotonia insuportável, e ainda recusar-se a aceitar Deus; o grande mistério é que ele não tenta a solução de sair desses sofrimentos aceitando a comunhão com Ele. Ele pode aceitar mais prontamente a ausência de sentido, o absurdo em tudo, do que aceitar o sentido através de Deus. Isto se deve à grande tentação de sua autonomia. A pessoa humana defende sua autonomia porque através dela ela acredita que pode fazer qualquer coisa, que pode satisfazer todos os seus desejos, que a escravizaram, tornando-se paixões. São João de Damasco diz: "Se você diz que teria sido melhor para ele [homem] não existir do que sofrer eternamente, nós dizemos que isso nada mais é do que o fogo do apetite pelo mal e pelo pecado. Pois aqueles que alcançaram a imutabilidade do pecado como paixão não desejam a Deus". [36]
Se a alma é lógica e noética por causa do corpo, o corpo será tido em maior honra do que a alma que veio à existência por meio dele. Então é do corpo que provêm os poderes racionais e perceptivos [logos e nous], como a alma provém do corpo. Pois se sem o corpo a alma não pode perceber ou raciocinar, é somente através do corpo que a percepção e a razão pertencem à alma. E se é através do corpo que a alma recebe a capacidade de percepção e razão e, como dizem, a alma não pode ter esta capacidade sem o corpo, a alma não será de forma alguma auto-existente. Pois de fato, como poderia ser assim sem o corpo, não tendo em si o que a caracteriza? ... Portanto, após a dissolução do corpo, a alma não pode mais existir de forma alguma. E para aqueles que são tão insensatos, não haverá mais nada depois de negarem a imortalidade da alma.[38]
Através dAquele que nos seres criados ordena todas as coisas, a mente filosófica [nous], movendo o poder de suas faculdades noéticas em direção para o que é puramente imaterial, discerne Aquele que move com base naquilo que é movido. Entendendo que somente Ele é um e simples, existindo somente através dEle mesmo, através do restante [a mente] aprende sobre Aquele que é infinito por natureza, imutável porque Ele é inamovível. Pois Aquele que cria e leva à plenitude todos os seres, e que está acima dos seres, não é evidente para os seres criados ... Da mesma forma, por meio das diversas e múltiplas maneiras que os membros e as partes estão combinados juntos neste microcosmo, e pensando na causa que o move, o homem, digo eu, sabe que é algo outro, algo essencial em comparação com a existência orgânica do corpo ... Ele considera o simples e o indivisível dentro do disperso, o ilimitado dentro do composto, o que muda como movido e o movido como tendo um fim para o qual ele é movido. E ele conhece a causa dos tropoi deste movimento, não por natureza, mas por discernimento, mesmo que este último seja, no entanto, muitas vezes equivocado. [39]
A existência eterna da alma mesmo no inferno é equivalente a vida "espiritual" dela. Isto é muito importante para São Máximo, o Confessor: que sem a alma nada mais poderia durar. Tudo estaria em contínuo fazer e desfazer. Mesmo Deus não existiria mais, pois um deus que não pode mais criar seres com uma indestrutibilidade eterna, para que eles possam eternamente pensar nele (ou contrário a ele), provaria ser um deus que seria condicionado e limitado a uma relação com um processo impessoal e eterno, com uma lei eterna de fazer e desfazer. [40]
Mas todo o mistério do sofrimento no inferno, ou do conteúdo do inferno (que pode ter, mesmo em sua monotonia, reflexos continuamente variados na consciência do homem), não nos é dado a entender durante nossa vida terrena; podemos apenas fazer conjecturas sobre ele a partir de certas sombras que ele projeta nesta vida.
O estado daqueles que, como consequência do julgamento individual, estão no paraíso da comunhão com Cristo, será tratado em outro lugar.